Um
capítulo triste para a história da mídia impressa brasileira foi recentemente
escrito por O Estado de S.Paulo. No dia 14 de junho, o jornal publicou
editorial, intitulado “O lugar de Dilma na História”, que condena a
participação de historiadores no movimento em defesa da democracia. Não nesses
termos, evidentemente. A histórica relação do periódico com grupos políticos
conservadores, e o poder econômico que eles representam, não é nenhum segredo.
Seus malabarismos verbais para esconder a realidade também não são novos. No dia
2 de abril de 1964, por exemplo, o jornal noticiava o golpe militar que iniciou
a última ditadura brasileira com a seguinte manchete: “Vitorioso o movimento
democrático”. Mas talvez seja inédito um ataque tão explícito a profissionais
que estudam o passado.
No
cerne desse ataque encontra-se uma disputa pela imagem social da disciplina
acadêmica e escolar de História, incluindo a definição do lugar dos
historiadores na sociedade.
Memória
e ideologia no editorial do Estadão
Há,
pelo menos, três tipos de artifícios empregados na ofensiva contra o movimento
“Historiadores pela Democracia”: a autolegitimação do emissor (autor/veículo do
texto), a desqualificação do oponente/objeto do ataque; a deturpação da
realidade. Em todos os níveis do discurso, o editorial do Estadão apela a
representações equivocadas do senso comum. Como lembrou Pierre Bourdieu, a
ideologia é “uma ilusão interesseira, sem deixar de ser bem fundamentada”. Ou,
dizendo de outra forma, socialmente ancorada em verdades aparentes.
O
texto começa e termina com a primeira estratégia. Afirma um autor supostamente
iniciado na historiografia profissional, que cita, de maneira
descontextualizada, um dos fundadores da chamada Escola dos Annales na França,
Marc Bloch. Esquece, no entanto, que o “grande mestre desse ofício”, nas
palavras do próprio editorial, se envolveu com a luta política de seu tempo (um
dos alegados crimes dos historiadores brasileiros, como veremos), defendeu a
democracia e foi fuzilado por tropas nazistas em 1944. Esse tipo de dado
biográfico, assim como uma leitura densa da obra de Bloch, evidentemente não
interessa ao Estadão. A referência é apenas um recurso de autoridade. Tão
frágil, vale dizer, quanto sua descrição da tarefa dos historiadores:
“reconstituir o passado para entender o que somos no presente”. Aqui predomina
a visão ultrapassada da história-memória pré-acadêmica, que enxerga no passado
uma entidade autônoma e absoluta, passível de reconstituição factual neutra.
Não é preciso demonstrar que esse passado apresentado como puro — “a História
como realmente aconteceu”, na fórmula do historiador alemão oitocentista
Leopold von Ranke — é sempre uma seleção daquilo que interessa ser lembrado
pelo seu defensor. Uma interpretação que esconde a operação interpretativa que
a gerou.
A
segunda estratégia, a da desqualificação do movimento, começa pela alegação de
que os profissionais da área não estão cumprindo seus deveres, ao privilegiar
sua “militância”. Assim, o texto advoga um isolamento do historiador de seu
entorno social, principalmente da atividade política. Essa construção do
editorial seria apenas mais uma visão positivista ingênua e simplista do
trabalho intelectual, se não fosse também uma artimanha ideológica comum na
disputa política atual: criminalizar as posições consideradas de esquerda, ao
mesmo tempo em que se apresentam posições de direita como verdades universais
incontestáveis e, no limite da dissimulação, apartidárias. É o mesmo mecanismo
utilizado por políticos profissionais de direita para surfar na atual rejeição
pública da atividade política, quando esses atrelam os problemas de corrupção
no país ao Partido dos Trabalhadores e creditam a crise econômica às opções de
governo próximas da pauta da esquerda (como os programas sociais e os investimentos
em setores como o da cultura), ao invés das políticas monetárias recessivas
adotadas por Dilma em resposta às suas próprias demandas; políticas de
austeridade reforçadas e aprofundadas por Temer no governo provisório, vale
lembrar. Dessa maneira, historiadores reconhecidos internacionalmente por
trabalhos rigorosos de pesquisa são apresentados pelo editorial como agentes do
“lulopetismo” ou “intelectuais a serviço de partidos que se dizem
revolucionários”. Forçando ainda mais a nota, o Estadão afirma que os
historiadores profissionais são “incapazes de aceitar a democracia”, reduzida
pelo periódico ao respeito à Constituição. Como se os historiadores não
estivessem se apoiando, também, na Constituição Cidadã de 1988. Como se a
democracia fosse apenas uma questão de legislação, não de voto e de soberania
popular (todo regime autoritário recente, aliás, conta com uma carta
constitucional).
A
terceira estratégia é ainda mais preocupante, pois revela o baixo nível
intelectual e a falta de compromisso profissional da empresa com a atividade
jornalística. Acusando os historiadores de prescreverem uma versão
conspiratória da história, o Estadão constrói uma narrativa mirabolante de
conquista das almas. Para começar, haveria nas escolas e nas universidades a imposição
de “pensamento único”. Entrincheirados na academia, os historiadores teriam a
missão de fazer crer que o PT transformou o Brasil no país da justiça social.
Com o advento da operação Lava-Jato e o início do impeachment de Dilma Rousseff
(outro serviço prestado à desinformação, como se pesasse alguma denúncia de
corrupção contra a presidenta no processo de impedimento), caberia a eles fazer
vencer a tese do golpe. O que os historiadores ganhariam com isso? Segundo o
Estadão, “a glória de ditar os termos da história”. Delírio e difamação pura e
simples.
Não
é preciso muito para mostrar que a fábula do pensamento único não se sustenta.
A universidade, como instituição, é principalmente um espaço de debate. O campo
historiográfico é pautado por regras sólidas de construção de conhecimento
(como a crítica das fontes, a definição refletida de problemas de investigação,
a seleção adequada de teorias e conceitos explicativos, a pesquisa empírica
exaustiva), sempre passível de confirmação e de revisão. Não é o plano do
vale-tudo narrativo, muito menos de imposição de visões unidimensionais. Quanto
ao suposto compromisso dos historiadores com o governo petista, basta
lembrarmos que houve duas grandes greves de professores universitários nos
últimos anos (em 2012 e 2015), com grande envolvimento da área de História.
Além disso, muitos historiadores estão na linha de frente da crítica à política
econômica da era PT, junto a sociólogos e economistas progressistas. Por fim, a
justificativa para a ação dos historiadores soa patética. É óbvio que esses não
possuem o monopólio da representação do passado, mas o aparato científico e
institucional no Brasil, hoje, dá sustentação e legitimidade à história dos
historiadores profissionais. E nunca, na história da historiografia brasileira,
houve tanta autonomia no trabalho do historiador. Aí residem duas das grandes
insatisfações do Estadão.
O
cerco ao pensamento livre e à educação crítica
O
ataque do Estadão, portanto, se baliza em pressupostos da memória histórica
refutados pelos historiadores profissionais contemporâneos, mas que ainda ecoam
no senso comum (como noções simplistas de verdade e de passado). Dessa forma,
cumpre sua função político-ideológica: deturpa a realidade para fazer valer
seus interesses. Cabe tudo na tarefa. Inclusive a contradição. Logo no início
do editorial, há a afirmação de que o “lulopetismo” posicionou bem os
historiadores na academia, lugar de onde eles pretendem difundir sua versão dos
fatos. Mais adiante, diz que o patrulhamento dos historiadores engajados tem
levado ao isolamento dos colegas dissidentes, justamente, nas universidades,
“como se fossem doentes cujo contato se deveria evitar”. O contrassenso seria
até risível, se não demonstrasse a trágica pobreza argumentativa de um dos
maiores jornais em circulação no Brasil.
Não
é possível levar o editorial do Estadão a sério. Mas acredito que ele não tenha
a ambição de ser considerado com seriedade. Aí mora todo o perigo. Como
artefato ideológico, procura, antes de tudo, disseminar preconceitos políticos
e, mais do que nunca, reforçar o cerceamento às vozes que denunciam o processo
de (re)tomada do poder pelas forças mais conservadoras do país. Por isso ele
precisa ser desconstruído. É esse tipo de discurso que tem buscado coibir as
demandas sociais e a possibilidade de efetivação da democracia brasileira, com
mais avanços nas conquistas das classes trabalhadoras rurais e urbanas, dos
movimentos feminista, negro, LGBT e ecológico. É esse tipo de discurso que tem
pavimentado a aceitação pública de projetos de censura à educação, como o
“Escola Sem Partido”. A tentativa de retirar os historiadores (e outros
intelectuais) do espaço público, ou de deslegitimar sua atuação para além da
academia, é só o começo de um processo mais amplo de restrição das liberdades
de pensamento e de expressão.
Na
esteira do editorial do Estadão, por exemplo, que recebeu contraponto de
diversos historiadores, o geógrafo Demétrio Magnoli publicou artigo na Folha de
São Paulo, no dia 25 de junho, criminalizando o movimento, rotulado por ele de
“quadrilha”. O novo ataque segue estratégias muito semelhantes às do primeiro.
Afirma conhecer o ofício do historiador, supostamente violado pelos
profissionais que se posicionam no debate público atual, e o define de maneira
(neo)positivista como “reconstrução da trama dos eventos”. Chega, ainda, a
indicar “vocação totalitária” na iniciativa do grupo, que excluiria do universo
democrático os historiadores não alinhados. Recurso retórico para esvaziar o
sentido do nome adotado pelo movimento e desacreditar os seus propósitos. Logo
se alcança a razão mais profunda de seu texto, lutar pela classificação social
do processo político atual, minando a compreensão de que o impeachment é um
golpe político contra a presidenta eleita Dilma Roussef e o sistema democrático
brasileiro: “Eles decidiram (ou, de fato, o Partido decidiu) que o impeachment
é ‘golpe’ – e isso, antes mesmo da deliberação final do Senado”, diz Magnoli.
*****
Como
sabemos, o golpe de 1964 foi chamado, por muito tempo, de “Revolução”. E, para
legitimar o episódio, agentes da mídia da época encontraram até mesmo uma dose
de “democracia” nas motivações dos militares. Disputar a representação da
história, portanto, é fundamental para o pensamento autoritário com o qual,
mais uma vez, o Estadão (e parcela majoritária da grande mídia brasileira), se
imiscui, na media em que ela justifica determinados projetos políticos para o
presente.
Nesse
contexto, o lugar dos historiadores só pode ser o da resistência.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/07/historiadores-incomodam-velha-midia.html
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