O governo interino de Michel
Temer continua a tentar emplacar suas medidas econômicas, em meio à recessão e
desemprego que se prolongam. Enquanto o novo presidente do Banco Central avalia
a política inflacionária e a redução dos juros como motores da estabilidade do
tripé macroeconômico, o Correio da Cidadania entrevista o economista e
professor da Unicamp Eduardo Fagnani, que fez severas análises das pretensões
do novo governo, a seu ver bastante calcadas em vontades políticas e
ideológicas.
"Na gestão macroeconômica,
há o reforço das políticas de austeridade que fracassaram na Europa pós-crise
de 2008, cujo propósito não é o crescimento e o bem estar social, mas preservar
a riqueza financeira. Diversos dispositivos para turbinar o ‘tripé
macroeconômico’ (câmbio flutuante, superávit fiscal e regime de metas de
inflação) estão tramitando no Congresso Nacional (dentre outras, autonomia
jurídica para o Banco Central e a criação de uma Autoridade Fiscal
Independente, por exemplo)".
Em suas respostas, Fagnani destrincha
os principais pontos das propostas fiscais e orçamentárias, em especial por
meio da ampliação da Desvinculação de Receitas da União, a retirar recursos de
áreas sociais. Assim, mantém a análise política ao lado do debate econômico,
posto que as medidas a serem tocadas pelo ministro da Fazenda Henrique
Meirelles se concentram nos pilares que conformam a renda do trabalhador médio
e os serviços que acessa.
"Mais grave é a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/16, que congela gastos públicos por
20 anos. Chamada de ‘Novo Regime Fiscal’, a PEC limita as despesas primárias da
União aos gastos do ano anterior corrigidos pela inflação. Estudos realizados
por especialistas apontam que, se for adotada essa PEC, em dez anos haverá
redução de gastos superiores a 40% em áreas como saúde, educação e
previdência", apontou.
Pesquisador do Centro de
Estudos Sindicais e do Trabalho da Unicamp, com especialidade em questões
previdenciárias, Fagnani volta a ressaltar que a dupla Temer-Meirelles, antes
de qualquer recuperação da economia e do emprego, visa apenas satisfazer os
anseios do mundo financeiro. Dessa forma, coloca outros elementos na mesa da
discussão de eventuais mudanças no regime de previdência.
"Somos um dos países
mais desiguais do planeta e seremos campeões mundiais em exigências para
aposentadoria. A experiência de países desenvolvidos revela que a reforma da
Previdência tem por objetivo aperfeiçoar o sistema para enfrentar as
transformações demográficas. A reforma Temer-Meirelles não considera a questão
social e não tem por objetivo aperfeiçoar o sistema", resumiu, sem dar
trégua ao caráter das ideias liberais que voltaram a hegemonizar o debate
público.
A entrevista completa com
Eduardo Fagnani pode ser lida a seguir.
Passados quase dois meses do
mandato provisório de Michel Temer, qual avaliação geral, política e econômica,
você faz desse governo e das propostas até aqui apresentadas?
O Brasil é um dos países
mais desiguais do mundo. Em pleno século 21, sequer foi capaz de enfrentar suas
desigualdades históricas. Nos últimos dez anos, enquanto o assassinato de
mulheres brancas caiu 10%, o assassinato de mulheres negras subiu 54%, por
exemplo. Nosso estágio civilizatório é rudimentar. Somos o país que mais mata
travestis e transexuais no mundo (uma morte é registrada a cada 28 horas), por
exemplo.
A construção de uma
sociedade menos desigual e minimamente civilizada requer que aperfeiçoemos
nossa democracia; que reforcemos o papel do Estado (não há, na história
econômica do capitalismo, nenhum caso de país que se tenha desenvolvido sem o
concurso expressivo do próprio Estado nacional); políticas sociais universais
que assegurem o acesso a serviços sociais básicos e ampliem a cidadania; requer
também que se consolidem e preservem-se direitos sindicais e trabalhistas; e
requer uma gestão macroeconômica voltada para criar um ambiente favorável à
redução continuada das desigualdades.
Entretanto, no governo
Temer, todos esses pressupostos estão sendo aviltados. A começar pela
democracia, que parece ser um corpo estranho ao capitalismo brasileiro (menos
de 50 anos de democracia, e interrompidos, em mais de 500 anos de história). O
último ciclo democrático, inaugurado em 1988, começou agora a ser dizimado. Em
vez de fortalecer o Estado, o objetivo de Temer é "privatizar tudo o que
for preciso" na infraestrutura econômica e na área social.
A cidadania social também
parece ser corpo estranho ao capitalismo brasileiro, que não tolera sequer
conquistas marginais de direitos fundamentais. Em vez de consolidar os direitos
sociais conquistados em 1988, o objetivo é destruir o que ainda restou do
Estado Social e implantar o Estado Mínimo. Nesse particular, os ideólogos
liberais tiveram êxito ao induzir um "consenso" segundo o qual o
ajuste fiscal requereria a revisão do "pacto social da
redemocratização". Argumentam que os gastos "obrigatórios"
(previdência social, assistência social, saúde, educação, seguro-desemprego)
têm crescido num ritmo que compromete as metas fiscais. Estão dizendo que as
demandas sociais da democracia não cabem no PIB. Não escrevem uma linha sequer
sobre gastos com juros, por exemplo. Mas decretam a necessidade de interditar a
cidadania social inaugurada pela Carta de 1988. No caso dos direitos sindicais
e trabalhistas, os retrocessos nos levam de volta para o início do século 20
(fim da regra de valorização do salário mínimo; prevalência do "negociado
sobre o legislado"; e terceirização sem limite, que leva à precarização
das relações de trabalho, por exemplo).
Na gestão macroeconômica, há
o reforço das políticas de austeridade que fracassaram na Europa pós-crise de
2008, cujo propósito não é o crescimento e o bem estar social, mas preservar a
riqueza financeira. Diversos dispositivos para turbinar o "tripé
macroeconômico" (câmbio flutuante, superávit fiscal e regime de metas de
inflação) estão tramitando no Congresso Nacional (dentre outras, autonomia
jurídica para o Banco Central e a criação de uma Autoridade Fiscal
Independente, por exemplo).
O reforço do
"tripé" é incompatível com o crescimento, geração de empregos e
ampliação da cidadania. Recentemente, um professor de Oxford afirmou que
"não é nenhum exagero dizer que austeridade mata". O próprio papa
Francisco, referindo-se a políticas de austeridade, também sentenciou que
"esta economia mata". A austeridade econômica é desacreditada
inclusive por setores do establishment internacional. Expressões como
"estagnação secular" e "nova mediocridade" passaram a ser
utilizadas por órgãos como o FMI e Banco Mundial para sinalizar os riscos do
baixo crescimento associado à "explosão da desigualdade". Na semana
passada, três economistas do FMI alertaram que "em vez de gerar
crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, colocando
em risco uma expansão duradoura". E apontam que cortes de gastos do
governo, privatização, livre comércio e abertura de capital podem ter custos
significativos em termos de maior desigualdade. Mas aqui, a "equipe
econômica dos sonhos" (dos detentores da riqueza?), na contramão do mundo,
vai aprofundar ainda mais a gestão ortodoxa.
Em suma, com Temer, estamos
assistindo ao impeachment do processo civilizatório. Todos os instrumentos
necessários para o desenvolvimento econômico e social estão sendo destruídos. O
golpe contra a democracia representa oportunidade histórica para aprofundar
radicalmente a agenda liberal conservadora – projeto que foi derrotado pelo
voto popular nas últimas quatro eleições.
Estão sendo anunciadas
diversas medidas de cortes de gastos públicos, que impactarão áreas sociais.
Qual é a extensão real, a seu ver, do déficit público? E como enxerga,
primeiramente, as novas regras que estabelecem que despesas de um ano não
possam ser maiores do que a inflação do ano anterior, ao lado da desvinculação
das despesas com saúde e educação como uma proporção da receita? São medidas de
fato necessárias para controlar o déficit fiscal?
A crise financeira
internacional de 2008 abalou a confiança, destruiu riqueza, paralisou o crédito
e levou à contração da atividade em quase todo o planeta. A crise global do
capitalismo, associada aos equívocos domésticos, bem como ao fim de um ciclo de
expansão ancorado parcialmente no mercado interno, desaceleraram gradativamente
a economia ao longo do primeiro governo de Dilma Rousseff. Mas, para os
economistas liberais brasileiros, o mundo viajava em "céu de
brigadeiro" e os problemas econômicos eram exclusivamente fruto do
"excesso de intervenção do Estado". O "terrorismo"
econômico intensificou-se com a proximidade das eleições de 2014. Com o apoio
dos meios de comunicação, criou-se um cenário de "crise terminal". O
principal argumento estava relacionado ao déficit primário de 0,6% do PIB
ocorrido em 2014. Essa construção ideológica não leva em conta que entre 2002 e
2013 a relação dívida líquida/PIB reduziu-se quase à metade (de 60% para 33% do
PIB); e que o Brasil foi um dos poucos países do mundo que gerou expressivos
superávits primários (em média, cerca de 3% do PIB ao ano).
Os países desenvolvidos e
alguns emergentes incorreram em expressivos déficits primários durante o
período 2009-2014. Nos casos dos EUA, Japão, Inglaterra e Índia, por exemplo, o
déficit primário anual médio nessa quadra atingiu, respectivamente, -7%, -8,6%,
-5,8% e -3,6% do PIB. Nos países mais duramente afetados pela crise de 2008
(Irlanda, Portugal, Espanha e Grécia, por exemplo), os patamares são
dramaticamente superiores. Se um país que gerou superávit fiscal por mais de
uma década e, num único ano, apresentou déficit primário de apenas 0,6% do PIB,
está em "crise terminal" e imerso em dramática "irresponsabilidade
fiscal", o que dizer de países que desde 2009 apresentam déficits
primários elevadíssimos (EUA, Japão, Canadá, Reino Unido, Portugal, Irlanda,
Espanha, Grécia e Índia, por exemplo)? Qual o problema de haver déficit
primário de cerca de 1% ou 2% do PIB ao ano, por exemplo, durante um curto
período, para enfrentar e superar o final de um ciclo econômico, sem perder a
perspectiva do longo prazo?
O fato grave é que, num
contexto em que a comunicação do governo Dilma optou por não disputar ideias,
não enfrentar o debate e sequer defendeu as suas ações, a narrativa liberal
passou a ser hegemônica junto à opinião pública. O próprio governo alterou a
sua rota e cometeu "haraquiri" após a vitória eleitoral, ao ceder às
pressões do mercado, adotar o projeto derrotado nas urnas e colocar no
Ministério da Fazenda um dos porta-vozes do "terrorismo econômico". O
atual funcionário do FMI fez seu serviço, colocando o país, que não estava em
crise severa, numa grave recessão.
O governo Temer vai duplicar
a aposta de Joaquim Levy. Vende a ilusão de que sem ajuste fiscal nada será
possível (baixar juros, crescer, criar emprego etc.). Como disse o professor
Pedro Rossi, da Unicamp, para os liberais brasileiros o ajuste fiscal (das
contas primárias, que exclui as despesas financeiras) transformou-se numa
espécie de Posto Ipiranga. Essa centralidade equivocada não é técnica nem é
neutra. Ela serve de justificativa para destruir o Estado Social e implantar o
Estado Mínimo liberal. "Não há alternativas", voltam a sentenciar, a
não ser ampliar as severas restrições ao gasto social que estão em curso.
A ampliação da Desvinculação
das Receitas da União (DRU) de 20% para 30%, recém-aprovada pelo Congresso,
alastrou a captura de recursos que a Constituição atrelava ao financiamento da
Seguridade Social e da Educação. Em breve, outras mudanças constitucionais que
visam acabar com a vinculação de recursos fiscais para Saúde e Educação serão
enviadas para o Congresso. Mais grave é a Proposta de Emenda à Constituição PEC
241/16 que congela gastos públicos por 20 anos. Chamada de "Novo Regime
Fiscal", a PEC limita as despesas primárias da União aos gastos do ano
anterior corrigidos pela inflação. Estudos realizados por especialistas apontam
que, se for adotada essa PEC, em dez anos haverá redução de gastos superiores a
40% em áreas como saúde, educação e previdência.
O dito "Novo Regime
Fiscal" desestrutura por completo o Estado Social. Se vier a ser aprovado
e cumprido, inviabilizará a vinculação de recursos (educação e saúde) e o atrelamento
do piso dos benefícios ao salário mínimo (Previdência e Assistência Social). Na
renegociação das dívidas com os governos estaduais, o governo federal impôs o
teto de gastos para estes entes federativos, o que também afetará essas áreas,
dado o caráter cooperativo da gestão federativa em áreas como educação, saúde e
assistência social.
Por que seria tão brutal o
impacto nas áreas sociais, conforme os números apresentados aqui?
Um corte brutal de gastos
estimados em mais de 40% em dez anos desarticulará ainda mais as ações dos
governos federal, estaduais e municipais em tais áreas. Eis um dos
"cavalos de Troia" para impor o Estado Mínimo: políticas pobres
dirigidas somente para os pobres definidos pelo establishment internacional (o
indivíduo que ganha menos de um ou dois dólares por dia). O restante da
população (os "não pobres") que comprem serviços sociais no
"mercado". O propósito é desestruturar o Estado Social e impor o
Estado Mínimo liberal.
Com o fim da vinculação de
recursos para a educação, retrocederemos ao início dos anos 1930. Como se sabe,
a Constituição de 1934 introduziu a obrigatoriedade de União, estados e
municípios aplicarem percentuais mínimos das receitas de impostos em educação.
Esse dispositivo foi excluído da Carta de 1937 e foi reincorporado na
Constituição de 1946. O regime militar manteve a obrigatoriedade apenas para os
municípios. Posteriormente, a Constituição de 1988 restabeleceu o mecanismo.
No caso da Saúde, voltaremos
ao chamado "buraco negro" do financiamento do SUS vivido no início
dos anos de 1990, quando o governo Itamar Franco decidiu utilizar integralmente
as contribuições de empregados e empregadores sobre a folha de salários para
cobrir os benefícios previdenciários. A subtração dessa base financeira vigente
desde a ditadura comprometeu estruturalmente o início da implantação do SUS.
Este ‘buraco negro’ permaneceu até 1996, quando o Congresso Nacional aprovou a
Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF).
Mas, como se sabe, uma vez
aprovada como contribuição "vinculada" ao SUS, a área econômica do
governo FHC passou a utilizar a CPMF segundo as conveniências da gestão das
contas públicas. Nesse cenário, ainda em meados dos anos 90, parlamentares
ligados ao movimento sanitário apresentaram proposta de Emenda Constitucional
que vinculava recursos à saúde. Após longa tramitação, somente em 2002 foi
aprovada a Emenda Constitucional n. 29/2002 que estabeleceu vinculação dos
orçamentos nos três entes federativos. Agora, querem enterrar essa emenda e restabelecer
o "buraco negro".
Outra medida que vem sendo
defendida é a mudança no regime geral da Previdência, com aumento de idade
mínima e desvinculação do reajuste das aposentadorias do ajuste do salário
mínimo. Você poderia comentar quais são as medidas que estão sendo estudadas e
qual a avaliação que faz sobre elas?
Somos um dos países mais
desiguais do planeta e seremos campeões mundiais em exigências para
aposentadoria. Entre as medidas ensaiadas está a desvinculação do reajuste dos
benefícios ao piso do salário mínimo. Revisitaremos práticas da ditadura
militar, quando o governo corrigia os benefícios previdenciários abaixo da
inflação, o que corroía sistematicamente o poder de compra dos aposentados.
Para enfrentar essa injustiça, os constituintes de 1988 instituíram a exigência
de que nenhum benefício seria inferior ao piso do salário mínimo. Com a reforma
Temer-Meirelles, os reajustes da Previdência voltarão a ser corrigidos pela
inflação ou por um índice arbitrário fixado pela área econômica, que certamente
será inferior à inflação. Em poucos anos, o poder de compra dos aposentados
pode regredir significativamente. Como consequência, os gastos da Previdência
serão reduzidos e recapturados para a gestão da dívida pública.
Outro item da reforma
Temer-Meirelles é exigir para todos os tipos de aposentadoria a idade mínima de
65 anos e 35 anos de contribuição. Essa regra se aplicaria às mulheres – que,
atualmente se aposentam com 60 anos de idade – e para a previdência rural –
que, hoje, exige idade mínima de 60/55 anos (homem/mulher). A visão fiscalista
não considera a especificidade da inserção da mulher na sociedade e no mercado
de trabalho, nem as enormes heterogeneidades da zona rural brasileira. Como se
sabe, mais de 70% da pobreza extrema está situada na zona rural do Nordeste.
Temer-Meirelles querem aplicar àquela zona rural nordestina o mesmo padrão de
idade que é exigido hoje na Dinamarca.
Também existe a intenção de
transformar a Previdência Rural em benefício assistencial, com a intenção de
fixar o valor desse benefício abaixo do piso do salário mínimo e sem regras
definidas para a correção monetária. O mesmo deve acontecer com um benefício da
assistência social, o Benefício de Prestação Continuada, que atende 4 milhões
de famílias cuja renda familiar per capita é inferior a ¼ de salário mínimo.
A reforma Temer-Meirelles
parece não respeitar sequer os direitos adquiridos. O ministro da Fazenda e da
Previdência afirmou que direito adquirido seria "um conceito
impreciso", sinalizando que seria necessário incluir na reforma os
contribuintes que já estão no mercado de trabalho.
Como encara os argumentos,
inclusive de alguns setores progressistas, que de fato veem um problema
explosivo à frente com respeito às contas da Previdência, em face do
envelhecimento da população do Brasil, que já se faz evidente?
A experiência de países
desenvolvidos revela que a reforma da Previdência tem por objetivo aperfeiçoar
o sistema para enfrentar as transformações demográficas. Nesses países, os
direitos adquiridos são preservados. O acréscimo na idade para a aposentadoria
é gradual ou passa a valer para as novas gerações que estão entrando no mercado
de trabalho. Em algumas nações, a idade de 67 anos será implantada num
horizonte temporal mais amplo.
Na Alemanha, por exemplo, a
idade mínima para se aposentar será gradualmente aumentada de 65 para 67 anos
até 2029. Seguindo a experiência internacional, o Brasil também deve promover
mudanças graduais no sistema de pensões para ajustar-se ao envelhecimento da
população.
É preciso alertar, no
entanto, que reconhecer a necessidade de reformas não implica aceitar o
fatalismo demográfico muito difundido pelos idealizadores da reforma. Por outro
lado, os ajustes devem ser fruto de amplo debate entre trabalhadores,
empresários e governos, sempre com o objetivo de buscar aperfeiçoar o sistema.
Nesse processo, não se pode perder de vista o fato de que a Previdência Social
é um dos pilares da proteção social brasileira. Ela beneficia direta e
indiretamente mais de 90 milhões de pessoas (uma família com três membros) e
tem efeitos importantes na redução da pobreza e da desigualdade social.
Entretanto, a reforma
Temer-Meirelles não considera a questão social e não tem por objetivo
aperfeiçoar o sistema. O propósito, unicamente fiscalista, é destruir o legado
de 1988, para recapturar cerca de 8% do PIB conquistado pelos movimentos
sociais das décadas de 1970 e 1980.
Ao colocar a Previdência
dentro do Ministério da Fazenda – fato inédito no mundo –, os detentores da
riqueza deixam claro que não precisam mais de intermediários. Não há
necessidade sequer de ministro da Previdência. A própria Fazenda vai completar
o serviço que tentam fazer desde 1989. Trata-se aí de disputar recursos. O
capital quer de volta a parcela capturada pela sociedade há trinta anos.
É paradoxal que a reforma da
Previdência seja vendida como "solução" para os problemas fiscais de
curto prazo. Se o objetivo for aperfeiçoar o sistema, ela somente terá impactos
fiscais no longo prazo. Mas se o objetivo for obter efeitos imediatos, nesse
caso deve-se prever radicalismo predatório e total desrespeito aos direitos
adquiridos.
O que você poderia comentar
também sobre a Previdência dos servidores públicos, no que diz respeito aos
argumentos que vêm sendo arrolados para a sua reforma e o sentido que possuem
momento atual?
A Reforma da Previdência do
Setor Público Federal já foi feita. Ela foi iniciada no Governo FHC (EC
20/1980); começou a ser regulamentada no início do governo Lula (PEC 41/2003);
e foi aprovada no governo Dilma Rousseff (Lei 12.618/2012), com validade para
os servidores que ingressarem no serviço público após a aprovação da lei que
introduziu o "regime de capitalização" baseado na "contribuição
definida". As regras são exigentes, se se considera o quadro internacional
(65 anos de idade e 35 anos de contribuição). Os efeitos na redução dos gastos
serão sentidos daqui a 30 anos. O que mais eles querem fazer? Aumentar a
exigência de idade para 67 anos? Também seremos campeões mundiais nesta
categoria?
Diante da situação em que
está o país, quais seriam as medidas econômicas mais adequadas, a seu ver, para
combater e contornar o déficit fiscal e ao mesmo tempo enfrentar a crise
econômica, de forma a começar a inverter a curva recessiva?
A medida principal e mais
eficaz é fazer crescer o Brasil, fazer crescer a economia. Com a economia em
queda livre, é impossível ter êxito em algum ajuste fiscal. O declínio da
arrecadação é sistematicamente superior ao corte das despesas. O crescimento da
economia exige ampliação de investimentos e reforço do papel dos bancos
públicos nos financiamentos de longo prazo. A ampliação do déficit no curto
prazo seria compensada com o crescimento das receitas públicas no médio prazo.
Mas, aqui, as tradicionais políticas anticíclicas passaram a ser
criminalizadas. O "impeachment de Keynes", ressaltado pelo Senador
Lindbergh Faria (PT-RJ), está em marcha.
O crescimento econômico
requer, pelo menos, tornar flexíveis os fundamentos doutrinários
consubstanciados no tripé macroeconômico, seguindo-se a vasta experiência
internacional. "Bandas" para a meta de superávit fiscal, excluir
investimentos do cálculo da meta do superávit primário, ampliar o
ano-calendário do Regime de Metas de Inflação, realizar o cálculo da inflação
pelo núcleo de preços (proteção contra choques conjunturais de oferta),
estabelecer duplo mandato do banco central (estabilidade de preços e emprego) e
controle do câmbio são exemplos de medidas adotadas por diversos países, antes
mesmo da crise financeira de 2008. Aqui, caminhamos na direção contrária.
Temer-Meirelles querem aprofundar a gestão ortodoxa do tripé.
O crescimento e o ajuste fiscal
também requerem redução da taxa de juros que transferiu para os detentores da
riqueza R$ 500 bilhões em 2015 (equivalente a mais de 50 anos de gastos
federais em saneamento, por exemplo). Não existem justificativas técnicas para
que o Brasil (com dívida bruta de 66,2% do PIB) pague 8,5% de juros, enquanto
que a Grécia, literalmente quebrada, com dívida bruta/PIB quase três vezes
superior (197% do PIB), pague menos da metade (4,2% do PIB). Por que não impõem
tetos para despesas com juros?
O ajuste fiscal pode ser
obtido pela radical revisão da política de isenções fiscais para setores
econômicos selecionados e famílias de alta renda. Essa política retira R$ 280
bilhões anuais dos cofres da União. Isso significa que anualmente o governo
federal simplesmente abre mão de arrecadar 25% das suas receitas.
O combate ao déficit fiscal
também requer fortalecer o Estado para combater a sonegação de impostos que,
segundo estudos do Banco Mundial, atinge 14% do PIB (cerca de R$ 800 bilhões
anuais deixam de ser arrecadados). Na mesma perspectiva, coloca-se a
necessidade de cobrar a dívida ativa, cujo estoque supera a cifra de um trilhão
de reais. Estudos recentes revelam que apenas 135 pessoas físicas e jurídicas
devem mais de R$ 370 bilhões ao fisco.
Finalmente, o ajuste fiscal
pode ser viabilizado mediante uma reforma tributária que incida sobre lucros,
dividendos, heranças e patrimônio. Estudos realizados por Rodrigo Orair e
Sergio Gobetti, pesquisadores do IPEA, revelam que 71 mil cidadãos, cujos
rendimentos atingiram R$ 297,93 bilhões em 2013 (renda per capita de R$ 4,170
milhões por ano), pagaram de impostos apenas 6,51% de sua renda. Isto ocorre
porque 65,8% da renda total são rendimentos considerados isentos e não
tributáveis pela legislação brasileira do Imposto de Renda (IR), como é o caso
dos lucros e dividendos, por exemplo.
Esse grupo de contribuintes,
que representa 0,3% do total de contribuintes do IR (0,05% da população
economicamente ativa), foi responsável por 14% de toda a renda declarada pelos
contribuintes ao fisco (mais de 26 milhões de pessoas apresentaram declaração
de imposto de renda no ano considerado).
Portanto, do ponto de vista
técnico, existem alternativas. Mas a questão é política e reflete a correlação
de forças favoráveis aos detentores da riqueza, dentro e fora do governo.
O que se pode esperar das
medidas do governo como resposta à crise que continua a paralisar o país e
provocar desemprego? Como enxerga a economia do país a curto e médio prazos?
O objetivo não é crescer e
gerar emprego. Isso é conversa para boi dormir. O objetivo é "colocar a
inflação no centro da meta" pela manutenção das taxas de juros elevadas e
pelo aprofundamento do ajuste fiscal (corte de despesas não financeiras). Isso
limita o crescimento, aprofunda o desemprego e a queda da renda do trabalho.
Por sua vez, a degradação do mercado de trabalho é funcional para combater a
inflação. Desde 2013, diversos economistas liberais alertam sobre a dificuldade
de reduzir a inflação com pleno emprego. Era preciso demitir, profetizavam.
Mas a recessão tem outras
serventias. Desde 2015, ela tem sido eficaz para realimentar a crise política e
insuflar as ações golpistas e antidemocráticas em curso. Ademais, ela é
funcional para rebaixar os custos trabalhistas, liquidar em poucos anos o
legado social dos governos petistas, construído por mais de uma década,
criminalizar quaisquer políticas distributivas (declaradas
"populistas", "irresponsáveis" e "bolivarianas")
e, por consequência, todos os partidos políticos e movimentos de esquerda.
A recessão também é
funcional para implantar o Estado Mínimo liberal, pois "não há
alternativa" a não ser o severo corte de gastos "obrigatórios"
nas políticas sociais universais, liquidando com a ordem social instituída pela
Constituição de 1988, uma oportunidade para que os rentistas concluam, em
poucos anos, o serviço que vêm tentando fazer desde a Assembleia Nacional
Constituinte dos anos de 1980. Nessa linha, não se recomenda crescimento. Por
que crescer? Talvez se observe algum esforço socialmente benéfico a partir do
final de 2017, para tentar ganhar as eleições de 2018.
Fonte. Correio da Cidadania
–
http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/241740/Fagnani-Temer-promove-impeachment-do-processo-civilizat%C3%B3rio.htm
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