Historicamente,
a mídia nativa apega-se a eufemismos para classificar as rupturas políticas no
Brasil. Em 1964, o termo “revolução” foi adotado pelos principais veículos do
País para celebrar o golpe civil-militar que impôs 21 anos de ditadura. Neste
ano, a conspiração de Michel Temer para desencadear o impeachment de Dilma
Rousseff assumiu a fachada perfumada de um “governo de salvação nacional”. Em
meio à narrativa única dos jornais brasileiros, sempre dispostos a rechaçar
qualquer ilegalidade no afastamento da presidenta eleita, o contraditório
depende da solidariedade militante para se fazer ouvido.
Em
abril e maio de 2016, quando o Congresso aprovou o afastamento provisório de
Dilma, a editora Boitempo correu para reunir destacados nomes do campo
progressista brasileiro para uma reflexão sobre os destinos do País. A obra Por
Que Gritamos Golpe?, a ser lançada neste mês de junho, carrega no título não
apenas a intenção de propor uma interpretação contracorrente da política
nacional, mas a de estreitar os laços entre os adversários do governo interino.
O
time de colaboradores é formado por representantes da política partidária
tradicional, entre eles o ex-senador pemedebista Roberto Requião (abaixo, um
trecho de seu artigo “Para mudar o Brasil”) e o ex-governador cearense Ciro
Gomes, lideranças de movimentos sociais como Guilherme Boulos, coordenador
nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), além de reconhecidos
pesquisadores e autores. Espécie de frente ampla intelectual contra o golpe, o
conjunto de textos é ilustrado por brilhantes charges de Laerte Coutinho,
originalmente publicadas na Folha de S.Paulo, e fotos registradas pela Mídia
Ninja.
Editora
da Boitempo e uma das organizadoras do livro, Ivana Jinkings afirma que a
empresa abriu mão da margem de lucro para vender o livro “a um preço menor do
que duas cervejas”. A versão impressa custará apenas 15 reais. Os colaboradores
também abriram mão de qualquer compensação.
Entre
os convites aos autores e a publicação do livro, passaram-se pouco mais de
quatro semanas. “Esse tom de urgência é algo que tomou conta dos colaboradores,
das pessoas que trabalham na editora e de boa parte da sociedade brasileira, na
qual a decepção e a indignação com esse verdadeiro tapetão institucional só
fazem aumentar.” Acima de tudo, o livro é uma resistência aos eufemismos
diários da mídia nativa. “As coisas precisam ser chamadas pelo nome: o Brasil
vive um golpe de Estado.”
*****
“Para mudar
o Brasil”
De Roberto
Requião
É
sempre a mesma coisa. Uniformemente, invariavelmente a mesma coisa. Eis aí,
mais uma vez, o País em convulsão. E o continente sob risco.
Todavia,
não me parece que seja o caso de se fazer aqui uma análise de conjuntura.
Porque não se trata de uma realidade momentânea, circunstancial. Não estamos
diante de um cenário fortuito. Reflete-se no palco toda uma história, longa,
secular e dolorosa história de agruras, angústias e tragédias.
A
triste Bahia que Gregório de Matos lastimava no século XVII, diante da
submissão da colônia ao sagaz brichote, é o triste Brasil de agora. Ontem,
condenados pelos deuses coloniais e, hoje, amaldiçoados pelos deuses globais, o
deus mercado, a carregar sem descanso o fardo do subdesenvolvimento, da
dependência, do atraso.
Todas
as vezes que nos aproximamos do topo com a carga excruciante, vemos rolar
ladeira abaixo o imenso sacrifício despendido em mais uma subida frustrada,
para recomeçar a maldita sina.
Na
verdade, é fácil prever: sempre que acontece algum avanço, do ponto de vista
dos interesses populares e nacionais, segue-se um retrocesso institucional,
político, social-econômico. Com uma diferença: os avanços, quase sempre, são
epidérmicos, pequenos arranhões na casca grossa que protege os proveitos, as
vantagens e os ganhos das classes dominantes, enquanto os recuos entranham-se
fundo no lombo desprotegido das classes populares.
Talvez
possamos dizer que a regressão nunca é total, que dos tantos ensaios malogrados
ficam pelo caminho pegadas, degraus e atalhos que servirão de referência e
apoio para a nova escalada. Além do que, às vezes, as circunstâncias e o vaivém
das placas tectônicas do capitalismo mundial criam janelas, frestas por onde
respirar. Mas é desalentador, desespera, andar tanto e quase não sair do lugar.
Assim
como desacorçoam, exasperam as reações a mais uma traquinada de nossa lúmpen
burguesia. De um lado, dissipam-se energias denunciando, vituperando o governo
interino por suas patacoadas, pelo revival do festival de besteiras que assolou
o Brasil depois do golpe de 1964.
Tudo
bem, sigamos os latinos, ridendo castigat mores, mas é preciso adicionar ao
enredo de nossas respostas e atitudes mais que discursos, palavras de ordem,
passeatas e saraus democráticos. Enquanto nos ocupamos apenas da agitação, os
golpistas sentir-se-ão (eu também dedico essa mesóclise ao novo governo)
confortáveis.
De
outro lado, por exemplo, vemos um personagem central do governo deposto, o
ministro Nelson Barbosa, um tanto quanto enciumado, despeitado, declarando que
o ex-presidente do Banco de Boston está fazendo exatamente aquilo que ele fez
ou pretendia fazer. Um plagiador do Barbosa, esse Henrique Meirelles.
Ora
bolas, por que então reagir ao golpe se o condottiere da economia no governo
Dilma quer voltar à cadeira para fazer o que o condottiere da política
econômica de Temer está fazendo?
Como
se vê, não há diferença de substância entre as levyandades, as barbosidades e
as meirelladas. Quem se dispõe a se coçar para ver impostos ao Brasil os
pressupostos do neoliberalismo?
Assim,
toda a argumentação sobre a ilegalidade do afastamento de Dilma – a
caracterização do movimento como golpe – corre o risco de enfraquecer e
deslegitimar-se diante da ausência de uma proposta que una o País em torno dos
interesses populares e nacionais.
Um
programa para o Brasil, que não seja essa medíocre e falaciosa coleção de
receitas de ajustes e arrochos fiscais, de austeridade, de corte de gastos e de
investimentos públicos, de taxas de juro irracionais, de privatizações e
concessões, de avanço sobre os direitos trabalhistas e sobre a Previdência, de
desregulamentação dos gastos em saúde, educação, habitação popular e
saneamento.
(...)
É
uma questão de princípio a resistência nas ruas, nas escolas, nas fábricas, no
campo, nas igrejas, nos legislativos municipais e estaduais e no Congresso ao
golpe do impeachment.
Mas
é também uma questão preliminar, inaugural, estabelecer pontos mínimos de um
programa para orientar o governo em sua volta. Na verdade, até mesmo como
condição à sua volta. Um programa de recuperação do Brasil, de aceleração do
desenvolvimento econômico e social. Um programa que supere de uma vez por todas
os limites obtusos damacroeconomia de curto prazo.
(...)
Evidentemente,
não contamos, para essa nova jornada de nossa aventura brasileira, com as
classes dominantes, essa lúmpen burguesia “que tanto no plano intelectual como
moral perdeu o sentido da decência e do respeito” (cito aqui um autor
italiano).
Incivilizada,
inculta, gananciosa, medíocre, sem nenhum senso de história, nenhum sentimento
de nacionalidade, preconceituosa, teimosamente escravagista, patética,
pretensiosa, a nossa burguesia, diria o pessoal do Porta dos Fundos, é o ó do
borogodó.
Eliminando-a
da paisagem, sob uma visão histórica, o Brasil como Nação é um êxito: saindo de
levas populacionais marginalizadas, deslocadas de suas origens, criamos um povo
novo. Indígenas, portugueses e africanos, acrescidos depois de gente de todo
mundo, formaram o povo brasileiro, hoje uno e diversificado, dotado de
identidade, algo que inexistia há relativamente poucas gerações. Estruturamos
um sistema produtivo, habitamos um território bem definido, falamos a mesma
língua sem dialetos, fundamos um Estado Nacional, constituímos memória e
sentimentos comuns.
Estamos
unidos por uma clara identidade nacional. Ela não tem raízes em ideias de raça
ou de religião, em vocação imperial, em xenofobias e ódios, em qualquer tipo de
arrogância. Tudo nos une na construção exitosa de um mundo novo no Novo Mundo.
Olhamos sempre para o futuro, somos abertos ao que é novo, aceitamos a
diferença e temos na cultura – uma cultura de síntese – a nossa razão de
existir. Somos um grande país e temos o maior povo novo do mundo moderno.
No
entanto, miseravelmente, nossa história também registra um enorme fracasso:
esse povo, a imensa maioria, não assumiu até hoje o controle de sua Nação. O
estatuto colonial originário transmudou-se em dependência externa e o
escravismo prolongado, em gigantescas desigualdades sociais. Ao longo da
história, governado por uma elite que nunca se identificou com seu povo,
tampouco se sentiu nacional, o Brasil mudou, mas sempre de forma a conservar
relações com o passado.
(...)
Nossa
história recente é uma impressionante sequência de promessas frustradas. Muitos
brasileiros já se sentem cansados. Para que a desesperança não prospere,
devemos aproveitar as circunstâncias de mais uma tragédia para reunir as forças
que temos, não apenas para repor um governo e restabelecer a legalidade e sim
para, finalmente, começar a mudar o Brasil.
Não
está morto quem luta. Não morreu quem sonha.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/07/a-resistencia-urgente-temer.html
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