A visão convencional sobre a
transferência das investigações sobre Lula para o juiz Sérgio Moro costuma ser
apresentada numa lógica de aparência imbatível. A ideia é simples: depois que o
Senado decidiu afastar Dilma provisoriamente de seu posto, encerrando a
possibilidade de Lula assumir a Casa Civil, não faria o menor sentido manter o
caso sob os cuidados do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, respeitando
uma prerrogativa de foro que só deve ser assegurada a quem ocupa a cadeira de
ministro de Estado. A realidade é um pouco diferente, porém.
Em 2002, três ministros do
governo Fernando Henrique Cardoso -- Pedro Malan, Pedro Parente e José Serra --
receberam prerrogativa de foro no julgamento de dois casos pendentes no
Supremo. O governo Fernando Henrique terminou no ano seguinte. Pela regra
aplicada a Lula, os direitos especiais de Malan, Serra e Parente deveriam
ter-se encerrado nesta data. Não foi o que aconteceu. A prerrogativa dos três
prolongou-se por longos 14 anos. Atravessou os dois mandatos de Lula, o primeiro
mandato de Dilma e só foi encerrar-se em março de 2016. Durante este período,
no qual o PSDB foi derrotado em quatro eleições presidenciais consecutivas, os
três ex-ministros respondiam aos casos RCL 2130m e RCL 2186 como se ainda
fossem titulares de seus respectivos cargos. Encarregado do caso, o ministro
Gilmar Mendes poderia ter revogado as prerrogativas. Não o fez.
Gilmar é um ministro com
reconhecidas simpatias políticas, mas sua postura neste caso tem apoio numa
visão geral que vários juristas respeitam. Acredita-se que o julgamento de réus
em condição politicamente exposta -- como ex-ministros e ex-presidentes --
costume provocar muitas pressões indevidas, a favor ou contra, que um tribunal
de primeira instância pode ter muito mais dificuldade para enfrentar com
serenidade do que uma corte superior. A pergunta aqui consiste em saber por que
este raciocínio, que integra a melhor tradição da defesa de direitos e
garantias individuais, foi aplicado para beneficiar os acusados do PSDB e não
vale para Lula. Afinal, se a sua prerrogativa caducou quando havia se passados
apenas três meses e meio depois que deixou o cargo, a dos três ministros
tucanos sobreviveu por um período 89 vezes mais longo.
Não é preciso montar uma
força-tarefa para descobrir o efeito prático da transferência de Lula para a
Lava Jato de Sérgio Moro. Faz parte de um longo esforço para colocar sua
liderança à margem da luta política, onde tragédias e farsas se sucedem em repetição
infinita.
Não vamos falar da prisão em
1980, quando dirigiu um movimento operário que se tornou um instrumento
poderoso contra a ditadura militar. Nem da campanha de 1989, quando foi vencido numa disputa que nos dias finais
reuniu tortura -- dos sequestradores de um dos maiores empresários brasileiros
-- e suborno -- de uma antiga namorada.
Em 2010, a simples hipótese
de que Lula pudesse tentar mudar as regras eleitorais para disputar um terceiro
mandato -- coisa que ele sempre desmentiu -- foi suficiente para que todas as
iniciativas de seu segundo mandato governo fossem mantidas sob suspeita. No
início de 2014 ocorreram pressões violentas contra o Volta Lula pelos
adversários do governo. E é óbvio que as chances de um retorno em 2018 fazem parte dos cálculos reais para o
afastamento de Dilma sem qualquer prova consistente.
A experiência histórica
ensina que no Brasil de 2016, Lula ocupa um lugar preciso. Enquanto mantiver a
plenitude dos direitos políticos poderá exercer um papel decisivo -- seja no
caso de Dilma vir a recuperar o mandato, seja na hipótese de Michel Temer
garantir sua permanência no Senado. Numa saída favorável a Dilma, terá a tarefa
de auxiliar a reconstruir o governo. Num desfecho favorável ao golpe, será
referência principal de um esforço
destinado a recuperar o Planalto em 2018 e transformar o governo Temer numa
janela lamentável, mas de curta duração.
A motivação em todos estes
casos é a mesma e bem diagnosticada. Através de uma medida de força, tenta-se
evitar o risco de deixar a decisão para o eleitorado, alvo de eterna
desconfiança -- e não o personagem principal dos regimes democráticos. Por sua
própria natureza, um veto está acima do cidadão comum e suas escolhas.
Justifica-se a partir de um argumento de valor moral, contra o qual nada se
pode fazer a não ser conformar-se. Para isso, a base jurídica é necessária --
com base na convicção comum de que se trata de uma decisão isenta, acima das
preferências políticas.
O que está em curso, aqui,
através de Lula, é um retrocesso de dimensão histórica: suprimir o caráter
popular da democracia nascida a partir da Carta de 1988, para criar um regime que, mesmo tolerando
determinadas franquias democráticas, limita lideranças legítimas e reprime a
organização dos trabalhadores e da população mais pobre -- como ocorria no Brasil de 1946 a 1964 -- que
ficam impedidas de disputar o poder de Estado. Este é o ponto.
Num processo que guarda
semelhanças óbvias com o ambiente de perseguição e violência contra militantes
e instalações do Partido dos Trabalhadores, o passo fundamental para a
construção de uma inviável democracia para as elites foi dado em 1947, quando o
Superior Tribunal Eleitoral cassou o registro do Partido Comunista Brasileiro.
A medida colocou fora da lei uma legenda que possuía a quarta maior bancada do
Congresso Nacional, a terceira maior força parlamentar da Assembleia
Legislativa de São Paulo -- maior que a própria UDN, superada em seu próprio
berço -- e, acima de tudo, uma respeitável base no movimento operário. Só para deixar claro que se tratava, também
naquela época, de uma medida politicamente seletiva. Em 1949 o mesmo tribunal
examinou uma denúncia contra os integralistas -- versão verde-amarela do
fascismo -- e manteve seu partido na legalidade, num voto coberto de elogios
proferido pelo ministro Djalma da Cunha Mello. Conforme o ministro, o fascismo
brasileiro havia se mostrado digno do "toque de sensatez" que uniu a
nação em 1945, no grande condomínio que permitiu a derrubada de Vargas.
Contada por este ângulo, a
história política do país nos últimos setenta anos pode ser descrita como um
conflito permanente da maioria da população para enfrentar golpes e golpistas.
Em 1950, quando o vulto popular do retorno de Getúlio Vargas pelas urnas estava
no horizonte, o Congresso aprovou uma lei de impeachment de forte conteúdo
parlamentarista -- e não é difícil saber para que. Depois que uma tentativa
de impeachment de Getúlio foi rejeitada
pela Câmara, teve início a articulação que o levou ao suicídio. Numa conspiração
que incluiu o vice, Café Filho, tentou-se impedir o governador de Minas Gerais
Juscelino Kubistcheck de disputar a presidência. Embora JK tenha sido eleito, o
próximo passo foi tentar impedir sua posse. Novo fiasco dos golpistas. Mesmo
assim, Juscelino foi alvo de dois golpes
militares. Passou a faixa presidencial a Jânio Quadros que, permaneceu sete
meses no posto. Foi substituído pelo vice João Goulart, que contornou um golpe
para tomar posse e não pode resistir ao segundo, que o afastou do poder. Vinte
e um anos depois, na democratização, o veto militar impediu a saída natural,
pelas eleições diretas, forçando um acordo pelo alto chamado Nova República,
que deu posse à mais conservadora das opções em pauta naquela circunstância.
No país de 2016, Lula
representa a essência de toda democracia: a possibilidade de alternância de
poder, sempre uma ameaça num país governado há cinco séculos pelos 1% de
sempre.
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/241908/A-decisiva-resist%C3%AAncia-de-Lula.htm
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