Professor de História da
Universidade de Harvard, a mais prestigiada instituição de ensino do planeta,
nos próximos dias o brasileiro Sidney Chalhoub estará no centro dos debates
acadêmicos internacionais sobre o impeachment contra Dilma Rousseff.
Naquele mesmo encontro de
Nova York ao qual Fernando Henrique Cardoso desistiu de comparecer pelo receio
de ser hostilizado em função de sua postura favorável ao golpe parlamentar de
abril-maio, o Conselho Executivo do XXXIV Congresso da Associação de Estudos
Latino Americanos (LASA), decidiu formar uma comissão de cinco acadêmicos, de
cinco países diferentes, que deverá produzir um relatório para responder a uma
questão específica: "determinar se as acusações contra a Presidenta Dilma
Rousseff estão de acordo com os parâmetros constitucionais estabelecidos para
processos de impeachment, se elas têm credibilidade e se o parlamento
brasileiro segue as regras processuais devidas."
Único brasileiro da
comissão, cinco livros publicados, com uma carreira construída na Universidade
de Campinas, onde se aposentou após 35 anos,
Sidney Chalhoub foi escolhido como coordenador dos trabalhos.
Entre 18 e 27 de julho, os
integrantes da comissão passarão uma temporada entre Brasília, São Paulo e Rio
de Janeiro, consultando documentos e ouvindo políticos, assessores e
outros profissionais envolvidos no caso,
sejam aliados da presidente afastada, sejam de personalidades ligadas ao
governo interino de Michel Temer. Pelo prestígio da LASA, a maior e mais
respeitada entidade de pesquisadores sobre América Latina no mundo, o trabalho
está destinado a ter uma repercussão política evidente no desfecho da crise,
até porque as conclusões do relatório devem ser divulgadas dias antes da
decisão final do Senado. Autor de estudos que ajudaram a renovar a visão
convencional sobre a abolição da escravidão, demonstrando o papel real dos
cativos na conquista da liberdade,
Chalhoub deu a seguinte entrevista ao 247:
247 -- Você costuma dizer
que, vista em processos de longa duração, a história brasileira tem um traço
marcante: a cada momento de ampliação de direitos das camadadas subalternas,
segue-se uma reação forte das camadas superiores, que procuram paralisar o
processo e até fazer o país retroceder, muitas vezes através da violência
política.
SIDNEY CHALHBOUB -- Acho que
podemos enxergar isso em pelo menos três eventos importantes de nossa história.
Não acontece apenas no Brasil, é claro, mas aqui é um processo marcante.
Podemos falar em grandes avanço e retrocessos no período da Abolição, no final
do século XIX. Também assistimos a uma situação semelhante no início dos anos
1960, que foi enfrentada pelo golpe militar de 1964. E podemos falar do mesmo
processo agora. Após um longo período de ampliação de direitos, que na verdade
teve início antes do governo Lula, temos a ascensão de um governo que pretende
não só barrar a ampliação este processo, mas revogar conquistas e melhorias
acumuladas ao longo de décadas, que podem chegar inclusive a CLT, que é de
1943.
247 -- Como podemos explicar
os avanços e retrocessos no século XIX?
CHALHOUB- No caso da abolição, foi tudo muito claro e
explicito. A cada passo favorável a emancipação dos escravos, seguia-se uma
reação contrária. A lei de 1871, que permitia aos escravos comprar a própria
liberdade, pagando pela alforria, foi produto de uma disputa duríssima, que
durou um ano inteiro e paralisou o país numa das grandes crises do Império. O
debate envolvia convicções profundas do Brasil daquele tempo. Os proprietários
de escravo não só achavam que era natural manter uma pessoa sob o regime de
cativeiro. Também consideravam inaceitável que alguém tivesse o direito de
comprar a própria liberdade, mesmo pagando um valor equivalente ao que se
poderia definir como valor de mercado.
Além da perda econômica, eles não aceitavam a conquista de direitos da outra
parte. Não se podia conviver com a ideia de que um antigo escravo pudesse
tornar-se uma homem livre por sua própria iniciativa. Para além das questões de
natureza econômica, havia essa questão fundamental, política. De certa forma,
este era o ponto mais importante.
247 -- O que veio depois?
CHALHOUB -- Nos anos
seguintes, com mais intensidade na década de 1880,a obtenção de alforria a
revelia da autorização dos senhores era uma realidade social inegável. Os
escravos nem sempre tinham recursos para comprar a liberdade mas se organizavam
coletivamente, de uma forma que hoje poderíamos chamar de cooperativas,
conseguindo libertar um bom número de cativos. Faziam coletas, recebiam apoio.
Com o tempo, eles se tornaram uma força social e política ponderável. Uma das respostas a isso foi a lei eleitoral de 1881, que proibia o voto
dos analfabetos. Até então, achava-se natural que toda pessoa livre pudesse
votar em eleições. A ausência de educação formal, num país onde o ensino era
acessível a poucas famílias, fez com que a lei que proibia o voto dos
analfabetos vedasse o exercício de direitos políticos por parte da geração de
negros que emergia da escravidão na década de 1880. O mesmo ocorreu com seus
descendentes, pois a exclusão política dos analfabetos só seria abolida um
século depois, em 1988, na Constituição escrita após a ditadura. A proibição do
voto dos analfabetos, se não visava explicitamente, de fato alijou os
ex-escravos da política formal. Foi uma medida contra os direitos políticos dos
negros. Isso parece ser uma tradição em sociedades onde o cativeiro teve uma
função social importante. Mesmo nos Estados Unidos, onde as condições da
abolição foram inteiramente diferentes, essas restrições ao voto dos negros
sempre existiram e ainda existem.
247 -- Muitas pessoas
definem a proclamação da República como uma reação dos fazendeiros contra a
Monarquia que aboliu a escravidão. Está correto?
CHALHOUB -- Não há dúvida de
que uma das causas do golpe republicano de 1889 foi a insatisfação dos
cafeicultores fluminenses e paulistas com a Abolição e o fato de eles
atribuíram a Coroa um certo protagonismo no processo. O papel da Coroa não deve
ser exagerado, porém. Quaisquer que fossem as convicções da família imperial, a
Coroa conviveu com a escravidão por várias
décadas e, em 1888, respondeu a uma pressão crescente da sociedade e
também ao isolamento do país no mundo -- vanguarda da retaguarda, o Brasil foi
o último país da América a abolir a instituição da escravidão. Naquele momento, de afirmação de noções
típicas da sociedade burguesa, como democracia, liberdade, direitos do
indivíduo, o cativeiro era um fator insuportável, que colocava o país em
descompasso com o mundo dito civilizado. Também era um elemento de crise
interna. Nos processos de alforria, o judiciário dava ganho de causa aos
escravos com frequência, o que acelerava as contradições de uma sociedade
fundamentada no trabalho escravizado, de homens e mulheres que em tese não
podiam ter acesso a nenhum direito. Um dos componentes da crise final da
escravidão, no verão de 1887-8, foi uma fuga massiva de escravos das fazendas
de café, num processo de luta e rebeldia que demonstrava uma situação fora de
controle.
247 -- Neste contexto, como
foi a reação dos antigos senhores de escravos?
CHALHOUB -- Foi
violentíssima. Em linguagem de hoje, eles criaram uma ação afirmativa ao
contrário.
247 -- Como assim?
CHALHOUB -- Sem negar que a
República é uma forma de governo mais compatível com os valores de nossa época,
cabe reconhecer que ela nasceu, em nosso país, em grande medida para
interromper a ampliação de direitos que necessariamente deveria ter seguido o
fim da escravidão. Esta é uma de suas origens. Não por acaso, os fazendeiros de
São Paulo decidiram criar um programa de imigração subsidiada de europeus. Estes foram trazidos
ao país em condições que, mesmo
incluindo dificuldades e sacrifícios, certamente não tinham comparação com a
realidade dos navios negreiros, até porque eram programas voluntários. Aqui, o
imigrante entrava no sistema de colonato, que lhe permitia acesso a uma parte
da terra para o plantio. Não era o ideal mas era vantajoso em relação a
experiência anterior dos escravos. No caso da Província de São Paulo, a
imigração em massa de europeus e o racismo dos empregadores dificultaram a
incorporação dos ex-escravizados e seus descendentes ao mercado de trabalho.
247 -- Qual a semelhança
entre 1964 e 2016?
CHALHOUB -- A interpretação corrente para o golpe de 64
descreve uma radicalização de conflitos de classe que, em determinado momento,
se tornou tão acirrada que não cabia nas instituições existentes. Eu acho que
essa interpretação até ajuda justificar
um golpe, pois sugere que não havia outro jeito de sair da crise a não ser por
uma ruptura institucional. Só que a realidade não era esta, como mostram pesquisas mais recentes, que apontam para
outros fatores importantes. O que havia era a recusa política por parte de
setores da classe política e empresarial em aceitar avanços que ocorriam
normalmente dentro das instituições existentes, de modo pacífico e
perfeitamente legal. O grande foco de mudanças se processava pela Justiça do
Trabalho, que, após anos de existência, mostrava-se capaz de cumprir seu papel.
247 -- Como assim?
CHALHOUB -- Essa descoberta,
que permite reinterpretar todo um período histórico, não é minha. Encontra-se num trabalho essencial, de
livre-docência, do professor Fernando Teixeira da Silva que, infelizmente,
ainda não se encontra disponível em livro. O professor mostra que nos anos
anteriores ao golpe ocorre uma evolução na postura da justiça do trabalho, com
uma frequência grande de resultados favoráveis aos assalariados. Essa era a
grande mudança. Não era radicalização. O que havia era a ampliação de direitos,
como hoje. É outro exemplo de radicalização das elites, não dos trabalhadores,
como já ocorrera na crise de extinção da escravidão.
247 -- No livro Visões da
Liberdade, você critica estudiosos que não reconhecem o papel do escravo na
luta pela liberdade. Um dos criticados é Fernando Henrique Cardoso que, nos
tempos acadêmicos, fez pesquisas sobre a abolição da escravatura, em especial
nos estados do sul do país.
CHALHOUB -- No momento em
que publicou seus trabalhos, Fernando Henrique e outros intelectuais de sua
geração ajudaram a questionar a noção oficial da época, que dizia que vivíamos
sob uma democracia racial. Foi uma contribuição importante, que deve ser
reconhecida, e que teve início com os trabalhos de seu professor, Florestan
Fernandes. Todavia, a visão de Fernando Henrique sobre o escravo, enquanto
sujeito político, em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, é muito
negativa. No livro dele, os escravos aparecem como incapazes de ações políticas
autônomas. De certa forma, a visão do Fernando Henrique é calcada numa vertente
do abolicionismo do século XIX, em especial na figura do Joaquim Nabuco. Nabuco
achava que setores da classe dominante tinham de assumir a responsabilidade de
terminar com escravidão para não correr o risco de que os próprios escravos o fizessem.
247 -- Qual era o risco de que Nabuco e outros
autores falavam?
CHALHOUB -- Nabuco temia que
o suposto despreparo político dos negros, devido ao legado da escravidão,
fizesse com que eles recorressem a violência contra a sociedade inteira, se o
desespero os levasse a tomar a luta em suas próprias mãos. Por isso ele achava
importante o protagonismo da Coroa e do parlamento, sob pressão dos
abolicionistas. Ao final, a expansão dos direitos dos escravos durante o
processo de extinção gradual da escravidão (alforria por auto-compra, não
separação de mães e filhos nas vendas, etc) provocou a ira e a rebelião dos
senhores, o que ajudou a derrubar o regime monárquico.
247 -- Você acredita que a postura política de
Fernando Henrique em relação aos governos Lula-Dilma reproduz aquilo que
escreveu sobre os escravos?
CHALHOUB -- A postura dele revelava uma dificuldade
essencial para aceitar a figura do trabalhador -- escravo ou não -- como
sujeito político coletivo, capaz de atuar por seus direitos. Acreditava que a
violência do cativeiro fora capaz de reduzir o escravo a uma coisa, incapaz de
consciência e vontade. Vejo essa semelhança.
247 -- Como você enxerga o apoio dele ao golpe
de abril-maio?
CHALHOUB -- Eu acho
lamentável que, neste momento, o Fernando Henrique esteja negando sua própria
história e tenha preferido jogar fora uma herança importante. Não vamos
esquecer, por exemplo, que seu governo reconheceu a necessidade da luta contra
o racismo e a legitimidade de políticas de ação afirmativa. Posso até entender
que deve ser muito difícil sofrer quatro derrotas seguidas em eleições
presidenciais. Deve ser duro. Mesmo assim, não consigo entender uma guinada tão
radical, para fazer uma aposta aventureira. Mesmo que não nutrisse muitas
expectativas em relação ao ex-presidente,
confesso que estou decepcionado, não esperava que fosse tão longe.
247 -- Você fez um artigo onde comparava o
juiz Sérgio Moro a Simão Bacamarte. Para quem não lembra, Bacamarte é um
personagem de um conto de Machado de Assis que, deslumbrado com as novidades da
psiquiatria europeia, acaba internando uma cidade inteira num hospício. No
final, ele mesmo vai morar na instituição. O que há em comum entre os
personagens?
CHALHOUB -- No conto,
Machado de Assis discute o espírito missionário, de salvação nacional, que
surge com frequência na história do país. Naquela época, de grandes epidemias e
primeiros sinais de colapso das grandes cidades, eles se concentravam nos
médicos e nos engenheiros. Eles poderiam supostamente impedir nossas doenças e
tornar nossas cidades habitáveis. Não fariam isso através da política, mas
através da técnica, de um conhecimento supostamente científico, fora do alcance
do cidadão comum. A utilidade do pensamento de Machado, um observador político
muito mais atento do que se costuma reconhecer, é mostrar que esse tipo de
visão pode até trazer benefícios reais, mas abre caminho para todo tipo de
abuso e atos arbitrários.
247 -- Em tempos recentes,
quais antecedentes podem ser lembrados?
CHALHOUB -- No final da ditadura
militar, a crise econômica transformou os ministros da Fazenda em personagens
sagrados. Eram tratados como divindades, por uma população convencida de que
sofria do "vírus da cultura inflacionária" que só os economistas
sabiam como curar. Perdemos a conta de quantos pacotes foram baixados sem
consulta popular, todos fracassados. Chegamos a aceitar o confisco da poupança
dos brasileiros, a permitir que os depósitos bancários fossem travados. Só
quando a política ocupou seu lugar é que as questões reais puderam ser
encaradas e até certo ponto resolvidas. Hoje o Judiciário tem hoje um poder
imenso, sem paralelo. A tese é que "tudo é corrupção e todos são
corruptos." A partir daí, cria-se o arbítrio, que é o caminho para a
seletividade, para o uso político da Justiça. Nós temos vazamentos preocupantes, há bastante
tempo. Dias antes da eleição presidencial de 2014, saiu aquela reportagem
dizendo que Lula e Dilma "sabiam" dos esquemas de corrupção. Como é
que isso nunca foi investigado? Nossos juízes agora falam muito, sobre qualquer
assunto. Deveriam adotar uma postura compatível com a posição de
magistrados.Sobre matérias pertinentes a sua obrigação de ofício, deveriam
falar nos autos e ponto final.
247 -- Nesse ambiente, como você encara o
afastamento da Dilma?
CHALHOUB -- Quem estuda a
vida cotidiana dos trabalhadores e das pessoas pobres sabe que vivemos num país
onde vigoram regras que a qualquer momento podem jogar um cidadão na
ilegalidade. Todo mundo conhece a história do cidadão que mora há 20 anos num
lote de terra até que um dia aparece um sujeito com documentos que dizem que é
o legítimo proprietário e o outro deve ir embora em uma semana. Basta escutar
tantos sambas da deçada de 1950 e 1950, cantando as tristezas das remoções de
favelas, da pressão e violência contra comunidades inteiras, em nome de
ilegalidades mais ou menos arranjadas.
Não somos um país de corruptos nem delinquentes. O Brasil é mais
complexo, felizmente. O combate a corrupção é indispensável mas não é panaceia
universal. Nosso sistema legal tem regras múltiplas, contraditórias e
incoerentes. Essa situação cria um espaço infinito para se agir
arbitrariamente, porque a cada dia você pode mudar a interpretação de
determinada lei, de uma regra, e aplicá-la seletivamente. E aí chegamos ao
impeachment, com base nas chamadas pedaladas fiscais. Sempre foram aceitas e
são utilizadas. Não há motivo para uma autoridade supor que aquilo que podia
ser feito há um ano não possa ser repetido agora -- a menos que tenha ocorrido
uma mudança na legislação em vigor. Não. Basta mudar a interpretação da mesma
lei, por um órgão que é tem uma função de assessorar o Congresso, pelo Tribunal
da Contas da União, para você ter base para uma condenação.
247 -- É possível antecipar o resultado dos
trabalhos da comissão que virá ao Brasil?
CHALHOUB -- Não. Tenho
minhas opiniões, que não escondo de ninguém. Mas tenho o compromisso de fazer
um trabalho sério, de conhecimento dos fatos e das versões das partes em
confronto. sem ideias precoIsso quer dizer que ao longo das pesquisas e
depoimentos posso conhecer argumentos novos e mudar de opinião. Tenho muito
para estudar e aprender sobre este processo conturbado. Não conheço
pessoalmente nenhum dos demais integrantes da comissão, que foi constituída
pela LASA sem que eu opinasse. Não sei o que seus membros pensam sobre o
impeachment. Mas tenho certeza de que todos têm o compromisso de conhecer os
fatos e versões para ao final elaborar um juizo sobre o tema e apresentar um
relatório.
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/239515/O-golpe-de-2016-%C3%A0-luz-da-hist%C3%B3ria.htm
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