"...um
ser humano ser condenado por literatura... submetido a um justiçamento!"
O
Conversa Afiada reproduz da Carta Maior artigo de Victor Mendonça Neiva:
O
caso de José Dirceu junta-se aos milhões que demonstram o que um judiciário não
democratizado é capaz de fazer com uma constituição cidadã.
Esta
semana nos deparamos com a condenação a 23 anos de prisão do septuagenário José
Dirceu pelo conhecidíssimo juiz Moro. Esta sentença, somada a expropriação da
casa da quase centenária mãe do condenado findou por revelar uma contemporânea
forma de imolação medieval capaz de provocar nos raros corações que se
mantiveram sensíveis à injustiça a mais completa estupefação.
Não
adianta argumentar que delação premiada não é prova, que para condenar é
necessário algo mais substancioso que suposições, que existem princípios
historicamente construídos para assegurar ao cidadão ficar a salvo de surpresas
do Estado que possam cercear a sua liberdade. Juristas bem melhores que este
que vos fala já o fizeram.
Tampouco
importa apresentar juízos de verossimilhança e razoabilidade que tornam
absolutamente incompatível com a realidade o motivo da condenação. De fato,
causou até surpresa quando, do depoimento do então acusado, o juiz apresentou
apenas um patrimônio de cerca de três ou quatro milhões de reais, que se mostrou
bastante pequeno para quem, com mais de 50 anos de carreira, possuía ao menos
três fontes de renda lícita conhecidas. Como perseguido político da ditadura,
tem ele direito à indenização em prestação mensal, além da pensão de
ex-deputado e das atividades de consultoria. Se fosse economista, até me
apresentaria para prestar assessoria para que administrasse melhor suas
receitas. Mas presumo que, além de não considerarem os princípios jurídicos,
também não se levará em conta a realidade. Receio que não tenhamos nos atentado
à advertência dos Titãs nos anos 1980 e permitimos que a televisão nos deixasse
burros, muito burros demais.
Da
mesma forma, a história de democracia interrompida e de opressão perpetuada que
caracterizou o nosso país, que foi chamado por Darcy Ribeiro de “máquina de
moer gente”, nos tornou insensíveis à dor do outro, frustrando a esperança de
Vinícius de Moraes de ver um mundo melhor pela transfiguração pela poesia.
Que
sirva então este texto ao menos para usar este caso para chamar atenção para
aquele que talvez seja o maior erro de nossa “redemocratização”: depositar as
esperanças de que a cidadania se faria sem uma efetiva democratização do
Judiciário.
Mantivemos
os mesmos juízes e a mesma estrutura de um Judiciário que se prestara ao papel
de braço de ferro da Ditadura atribuindo-lhe, desta feita, a missão de fazer
cumprir a Constituição Cidadã.
Enquanto
depositário das esperanças de realização de direitos, podemos perceber que o
Judiciário viveu claramente dois momentos bem distintos: um de acanhamento e um
de desfaçatez.
No
primeiro, acostumado a servir aos arautos do regime, não soube como agir em
relação às prerrogativas que lhe foram atribuídas. Por exemplo, permitiu
reedição indefinida de medidas provisórias e esvaziou o poder de regulamentação
de direitos fundamentais quando o Congresso ficasse omisso. Por outro lado, a
sua raiz positivista lhe deu um perfil garantista que manteve certa eficiência
quanto a defesa de direitos fundamentais principalmente relacionados à área criminal,
o que permitiu o mínimo de segurança jurídica quanto ao exercício de atos de
poder. Havia, neste momento, uma certa preocupação com a coerência de suas
decisões e com busca a que os precedentes de um caso pudessem, nas mesmas
circunstâncias, serem universalizados. Por outro lado, deixou bem claro que não
seria o Judiciário o ambiente apropriado para intervir em políticas públicas,
muito embora expressamente autorizado a isso.
Na
segunda fase, após uma renovação do Supremo e a oxigenação das teorias constitucionais,
que ampliou sobremaneira a margem hermenêutica de decisão judicial, inicia-se
claramente um processo de transição. O Judiciário assume um maior protagonismo
e celebres julgamentos revigoram a expectativa de que se assumiria de fato o
papel de ser “a última trincheira da cidadania. São notáveis, por exemplo, a
interferência na prestação de serviços de saúde e o reconhecimento do direito
ao casamento de homossexuais.
Em
paralelo a esta mudança, uma série de alterações legislativas ampliam enormemente
o espectro de decisões possíveis a partir de um processo judicial,
principalmente daqueles em que se discute a validade ou não de leis em face da
Constituição. Mantiveram entretanto o esquecimento da advertência de Manoel
Bomfim feita em 1903, a saber:
O
Estado – essa abstração – dissimula homens, de carne e osso, com todas as suas
paixões e defeitos, desenvolvidos na luta pérfida e terrível que sintetiza a
política; chegados por ali ao posto de autoridades, o gozo do mando os corrompe
– mesmo aos ricos de virtude; e, senhores do “poder”, raros são os que não
descambam para o despotismo. Como esperar, então, que esses homens – os que se
colocaram no governo por ocasião da independência das colônias – procedessem
diversamente, e não só vencessem a tendência normal ao exagero das
prerrogativas governamentais, como destruíssem, de chofre, os costumes já
consagrados?… Eles não o fizeram, nem pensaram nisto: uns, porque se esforçavam
justamente por conservar todos os antigos abusos, costumes, privilégios e
processos propícios à exploração; outros – os bem intencionados e radicais –
porque estavam convencidos de que, para dar independência e liberdade à sua
pátria, fora bastante fazer cessar o domínio formal da metrópole, e decretar
Constituições liberais. Vieram as Constituições, mas não chegaram a mudar o
conceito geral de Estado, porque, em verdade, elas não tiveram como efeito
constituir nenhum Estado, que já estava constituído, e em função, havia mais de
dois séculos.
A
excessiva liberdade abriu margem a casuísmos e tornou-se quimera o dever de
coerência e a busca por segurança jurídica. O mesmo tribunal que edita uma
súmula vinculante a partir da prisão de um banqueiro permite que se arrombe
residência de cidadãos normais sem mandado judicial, autoriza prisão antecipada
mas impede o recebimento de dividas em face do Estado, concede liminares para
atribuir a si próprio vexatórias vantagens funcionais enquanto restringe justas
pretensões trabalhistas como o relativo ao adicional de insalubridade.
Tampouco
a reputação ilibada deixa de ser uma exigência inafastável do exercício do
cargo. Já tivemos ministro do supremo que se vangloriou te ter fraudado o texto
da Constituição quando era parlamentar, ministro montando empresa em
apartamento funcional para praticar elisão fiscal, ministro acusando outro
ministro de ter capangas, ministro apontado como autor de atos gravíssimos de
improbidade quando no executivo, ministro acusado de proteger irmão, ministro
acusado de estar em lista de corrupção… E nada se apura. Nada gera
consequências.
Como
se não bastasse, a esse fenômeno soma-se a inequívoca partidarização da
Justiça. Causada pelo dolo de alguns e pela omissão de muitos, inclusive de
outros poderes, assistimos ao poder que deveria ter na imparcialidade sua característica
ontológica assumir efetivo protagonismo na luta política.
O
marco inicial deste momento pode ser fixado a partir do julgamento do mensalão.
A partir deste momento, torna-se inequívoco o desapego à equidistância e o
firme desiderato de interferência perniciosa no processo político. A vedação ao
financiamento privado de campanha ficou engavetado por mais de um ano em um
gabinete. O mesmo ministro que afasta o presidente da Câmara por ser um
delinquente finda por legitimar o afastamento da presidente da república por
“ausência de provas” de que este sujeito tenha interferido no processo, muito
embora tenha sido o autor da admissão do processo. Impede-se a nomeação de um
ministro investigado pela presidência eleita de um partido e autoriza-se a de
outros em condição pior pelo presidente substituto de outra agremiação.
O
resultado desta transformação não poderia ser outro: frustração. E não só do
ponto de vista do processo político. Atualmente mais de 40% dos presos estão
aguardando julgamento, alguns por vários anos, é mais fácil punir uma babá por
tortura que um agente do estado, condenações criminais por escravidão
praticamente inexistem, ofensas jurídicas em massa se materializam a todo o dia
sem expectativa de reprimenda, permanece o genocídio de minorias e os
assassinatos no campo e assim por diante. Juristas e intelectuais sérios em
atividades de pesquisa começam a apontar que o direito de declarar em processos
objetivos normas inconstitucionais tem servido muito mais ao Estado e a
corporações do que a realização de direitos fundamentais.
Não
é à toa, portanto, que segundo o Índice de Confiança na Justiça Brasileira da
Fundação Getúlio Vargas do segundo trimestre de 2012 ao primeiro de 2013,
“comparando-se a confiabilidade no Poder Judiciário com a confiabilidade nas
outras instituições, o resultado não foi muito positivo, uma vez que o
Judiciário foi considerado uma das instituições menos confiáveis, ficando a
frente apenas de 4 entre 11 instituições pesquisadas: os partidos políticos, o
Congresso Nacional, as emissoras de televisão e a polícia. De acordo com os entrevistados,
o Judiciário foi considerado uma instituição menos confiável que o Governo
Federal, as grandes empresas, a imprensa escrita, o Ministério Público, a
Igreja Católica e as Forças Armadas”.
Nesse
sentido, o caso de José Dirceu junta-se ao dos milhões de Amarildos a
demonstrar o que um judiciário não democratizado é capaz de fazer com uma
constituição cidadã. Se o pedreiro nos mostrou que é mentira a inexistência de
pena de morte no Brasil, o político o fez quanto à inexistência de prisão
perpétua. Obviamente, todos os casos tem a sua especificidade, e o de Dirceu
seria até pitoresco se não fosse repugnante ver um ser humano condenado por
literatura ser submetido não a um julgamento, mas a um justiçamento visceral.
Oxalá
a próxima geração consiga corrigir equívoco tão visceral à nossa liberdade.
Enquanto isso, que nos salvem dos livros! Eles dão cadeia até para quem não os
lê.
http://www.conversaafiada.com.br/brasil/jose-dirceu-e-o-erro-irreparavel-de-uma-geracao
2 comentários:
Prezado Jobim, Parabéns pela sua argumentação justa e consentânea. Mas, permita-me discordar, não considero erro do judiciário, mas perseguição de justiceiros de toga. Concurso para a Magistratura, Ministério Público, Procuradoria são meras desculpas para se nomearem seus apaniguados. A escolha é feita pelo sobrenome, como se estivéssemos na época das capitanias hereditárias. A desculpa esfarrapada para condenar um herói nacional, sem crime, é terrorismo do Estado em mãos despreparadas, desqualificadas, partidarizadas. Como pode essa tia do Aécio, e com toda a roubalheira dele não permitir sequer investigação? Como podem essas pessoas dormirem? Cometendo tantos desvios de poder? Eu pensava que existia justiça na Terra. Mas, hoje sei que a única é a do Céu. Por isso oro por todos os que trabalham na Justiça e os perseguidos por ela.
Parabéns Jobim, excelente esse texto e parabéns ao Kiko pela observação, só posso dizer que faço minhas suas palavras.
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