Daniel
Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, analisa
os possíveis cortes em investimentos na educação brasileira
por
Ingrid Matuoka
O
presidente interino Michel Temer mal ocupara o cargo com seus 24 ministros
quando começaram a surgir as primeiras notícias dos planos de seu escolhido,
José Mendonça Bezerra Filho (DEM-PE), para a pasta da Educação e Cultura -- no
retorno a um modelo que vigorou de 1953 a 1985 no país.
Mendonça
nunca demonstrou afinidade especial com nenhuma das áreas, e destacam-se em seu
currículo o voto a favor da redução da maioridade penal no ano passado, o apoio
à candidatura de Aécio Neves e a citação na lista da Odebrecht apreendida pela
Polícia Federal durante a 23ª fase da Operação Lava Jato.
Entre
as medidas consideradas, está a possibilidade de reestabelecer a desvinculação
das receitas da União destinadas ao setor. "Querem desconstruir uma medida
que foi recentemente aprovada pelo Congresso Nacional sem que os direitos
tenham sido consagrados. Se tivessem, seria diferente, daria para discutir se é
possível recortar. Mas não foram", avalia Daniel Cara, coordenador-geral
da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
"Não
dá para constituir uma nação que respeite os direitos de seus cidadãos com um
governo que chega reformando o financiamento dos direitos sociais", avalia
o especialista.
Leia a
entrevista a seguir.
CartaCapital:
Como ficam as metas de creche para todos, de alfabetização na idade certa entre
as outras metas do Plano Nacional de Educação com o corte dos 10% dos royalties
para a educação aventado por alguns dos novos ministros?
Daniel
Cara: A situação é preocupante. O Brasil, ao longo dos anos, determinou um
marco legal para o financiamento dos direitos sociais. Primeiro foi a
Constituição de 1988 que estabeleceu, no artigo 212, que 25% das receitas de
estados e municípios e 18% dos impostos da União deveriam ser investidos em
educação.
Na
sequência, de 1994 para 1995, Fernando Henrique Cardoso edita a desvinculação
das receitas da União, retirando 20% desses 18% de investimento. Foi a primeira
iniciativa de desconstruir o que a Constituição tinha estabelecido.
Na
gestão de Lula, em 2009, acaba esse mecanismo de desvinculação das receitas da
União. É muito recente a reincorporação dos valores e já tem senadores que
querem reestabelecer a desvinculação e querem criar também a desvinculação de
estados e municípios, cortando de 20% a 30% os 25% da receita destinada à
educação. Isso acaba com toda a previsibilidade da gestão dos recursos.
E
agora querem desconstruir uma medida que foi recentemente aprovada pelo
Congresso Nacional, sem que os direitos tenham sido consagrados. Se tivessem,
seria diferente, daria para discutir se é possível recortar. Mas não foram.
Não
dá para constituir uma nação que respeite os direitos de seus cidadãos com um
governo que chega reformando o financiamento dos direitos sociais.
CC:
E de onde esse dinheiro pode vir se as vinculações forem reduzidas?
DC:
Essas vinculações apontadas no artigo 212 já são insuficientes para as
necessidades da educação. Não são capazes de garantir o pagamento do piso, as
melhorias na infraestrutura das escolas ou a formação continuada dos professores.
Está ruim, mas, se as vinculações forem cortadas, a situação será dramática.
Se
o Brasil quiser de fato investir adequadamente na educação será necessário
vincular mais recursos, além de manter o marco legal que já existe hoje, com as
vinculações constitucionais e petrolíferas e o Fundeb [Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação].
Para
tanto, faz-se necessário editar o imposto sobre heranças e fortunas, que está
previsto na Constituição, mas não está regulamentado, e rever as alíquotas
tributárias, fazendo com que a população que ganha mais, pague mais tributos.
A
carga tributária brasileira não é alta considerada as demandas sociais
brasileiras, mas incide sobre quem não pode pagar. Os mais ricos pagam menos
tributos e, quando podem, ainda criam offshores para não pagar nada.
Pelas
declarações, Temer não vê isso como uma possibilidade concreta, trata-se de um
governo vinculado ao interesse dos mais ricos e não da população geral.
CC:
E como fica a qualidade da educação, quando ela não melhora se não subir o
custo por aluno?
DC:
Temos dois problemas na educação. O primeiro deles diz respeito à necessidade
de expandir muitas matrículas. Temos que construir pelo menos 3,4 milhões de
matrículas em creches, quase um milhão na pré-escola, 500 milhões no ensino
fundamental, e 1,5 milhão no ensino médio.
Se
já parece muito, ainda faltam 2 milhões de matrículas nas universidades
públicas e quase quatro milhões nas escolas técnicas de nível médio. A demanda
é enorme. Não tem como criar matrícula e contratar professor se não aumentar o
investimento.
A
segunda questão é que é preciso qualificar as matrículas que já existem, e não
tem como fazer isso sem aumentar o investimento. O cálculo que temos é que
precisamos de 40 bilhões de reais a mais por ano se considerarmos só as atuais
40 milhões matrículas na educação básica. E a Constituição Federal e o PNE vão
dizer que esse recurso deve vir do governo federal.
CC:
O pastor Silas Malafaia pediu "cuidado" para Temer no momento de
nomear alguém para a Educação, em referência às discussões de gênero nas salas de aula. Essas e outras
questões atualmente em debate podem estar ameaçadas com José Mendonça Bezerra
Filho (DEM-PE) na pasta?
DC:
O Mendonça Filho é do Democratas, partido dividido em dois grupos: um que é
plenamente liberal, tanto em termos econômicos quanto sociais. A outra parte é
ultraliberal na área econômica, mas conservadora em termos de direitos sociais
e civis. É preciso saber qual é o grupo do Mendonça Filho.
Os
ataques aos direitos humanos e civis são inconstitucionais, embora eles sejam
feitos pelos neofascistas brasileiros, “neo” porque não são como os do século
passado, mas isso já acontece no Congresso Nacional, pela coalização
ultraconservadora.
A
tendência é que esses ataques sejam judicializados e o Supremo Tribunal Federal
(STF), por aquilo que vem afirmando quando é questionado sobre o tema de
direitos humanos e civis, dê ganho de causa pela defesa. Se Mendonça Filho
embarcar no ultraconservadorismo, certamente vai perder na judicialização que
será promovida e levada ao STF.
O
Supremo pode cometer equívocos na pauta política, econômica, federativas, mas
não tem falhado em relação aos direitos e, pela composição dos ministros,
dificilmente essa tendência mudará. Vale frisar: não é que eles sejam
progressistas, mas têm uma ideia básica de direitos humanos e sociais e civis.
É muito básico, não tem como ir contra.
CC:
Em relação a seus antecessores, considerando seu histórico político, Mendonça
Filho tem preparação e conhecimento técnico para ser ministro da Educação e
Cultura?
DC:
Nenhum ministro que assumiu a pasta ao longo da história do Brasil tinha essa
preparação. Quem se aproximou mais disso foi o Renato Janine Ribeiro, mas que
só conhecia ensino superior, ele não tinha conhecimento do ensino básico, até
por isso sua gestão durou pouco.
A
realidade é que o Mendonça Filho é ator externo à área, não é educador, como
também nenhum outro ministro foi. Se for para adjetivar Mendonça Filho de
despreparado, ele é tão despreparado quanto seus antecessores.
CC:
A indicação de Mendonça Filho indica que rumo para a educação brasileira?
DC:
Os assessores do presidente interino editaram dois documentos. Um eles tiveram
coragem de publicar, o outro, vazaram. O que tiveram coragem de publicar foi o
“Ponte para o futuro”, e isso só aconteceu porque quem patrocinou o processo de
impeachment foi a elite empresarial brasileira, que é altamente
patrimonialista, pouco dedicada às questões públicas.
É
orientada para o próprio umbigo e com um raciocínio extremamente retrógrado e
curto. Ela só quer se apropriar do que é público, mas não quer investir,
construir empresas sólidas, produzir capital. É uma elite vampiresca, não é uma
elite capitalista avançada.
Michel
Temer edita essa proposição econômica que diz, em outras palavras, que os
direitos sociais da Constituição Federal de 1988 não cabem no orçamento
público. Quando afirma isso, ele está dizendo que o povo não cabe no orçamento
público.
Trata-se
de uma experiência de liberalismo mais radical do que qualquer outra implantada
no Brasil, certamente até mais radical do que a do regime militar.
Ele
vai fazer uma política contracionista de recursos para as áreas sociais com a
desculpa de reequilibrar as contas públicas, gerando prejuízo para milhões de
brasileiros. Contudo, isso não é uma história nova, é razoavelmente
estabelecida na trajetória política social e brasileira.
A
exceção possível seria o governo FHC, de caráter neoliberal, mas certamente
menos agressivo do que outros países da região, e que não desconstruiu toda a
pauta social. Até deu bases para o trabalho que foi muito mais avançado e bem
sucedido quando liderado pelo presidente Lula e pelo menos durante o primeiro
mandato de Dilma. Depois ela se perde.
Quando
se observa o Travessia social, que vazaram, vê-se que ele está subordinado à
Ponte para o futuro. A política social de Temer só será possível se não chocar
ou constranger a proposta ultraliberal econômica.
Quando
[Temer] diz que não haverá cortes em programas sociais, está dizendo que na
prática não vai tomar uma decisão radical de extinguir o programa, mas vai
esvaziá-los, vai fazer uma ultrafocalização com resultados dramáticos.
Isso
porque estamos em uma situação recessiva. Ele está excluindo o fato de que
milhões de brasileiros estão perdendo emprego, muitos vão voltar para a extrema
pobreza, e vão precisar das políticas sociais.
CC:
Quais foram os principais avanços no governo Sarney, quando houve a separação
das pastas, e quais podem ser os retrocessos agora que elas voltam a ser uma
só?
DC:
A separação na época do Sarney foi um avanço. A política de cultura teve alguns
momentos que não foram tão brilhantes durante o lulismo, mas foi uma pasta que
ficou muito relevante e, sem dúvida, o Brasil produziu, incentivou e investiu
mais em cultura a partir de Sarney, especialmente de 1995 para cá e mais
fortemente depois de 2003.
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