Oskar
Von Wertheimer, autor de romances históricos e biografias, nasceu em Viena em
1892 e faleceu em Aushcwitz, em 1944. Neste mesmo ano tinha sido preso em Nice,
pela Polícia Francesa, para ser deportado àquele campo nazista, em função da
sua origem judaica. Oskar foi da geração de intelectuais humanistas que,
influenciados pela catástrofe da Primeira Grande Guerra, entenderam que o mundo
entraria numa etapa de “crises”, já naquele sentido de “excesso, expressão da
potência de transformação do pensamento, de ideias secretas, racionais”
-absurdas ou místicas- “das quais nem sempre é fácil se desfazer”, como lembra Adauto
Novaes. Ideias que dialogam entre si, se anulam e se complementam, em direção a
uma nova estabilidade ou ao caos. Com esta perspectiva, Oskar resolvera
escrever -no entreguerras- uma biografia sobre Maquiavel, quando se ocupou de
conhecer profundamente a sua doutrina e pensamento político.
Tenho,
na minha estante de livros prediletos, uma velha publicação da biografia
“Maquiavel”, do autor, da Editora “Livraria do Globo” (1942), comprada pelo meu
pai em São Borja, no distante ano de 47, seis meses e alguns dias após o meu
nascimento. Na terceira página -desta edição já amarelada pelo tempo- lá está a
sua assinatura, com a letra perfeita do professor de Português: “Adelmo Simas
Genro, São Borja, 29.09.1947”. Imagino-o lendo esta obra, em que o escritor se
apaixona pelo talento do seu biografado, em pleno momento de democratização do
país depois da ditadura de Vargas. Abria-se uma época de profundas mudanças
institucionais, na quais a ação dos sujeitos políticos começava a se fazer à
luz do dia, no início da nossa construção democrática no pós-guerra. Naquele
momento emergiam ou voltavam à cena pública lideranças políticas que nos
influenciaram depois de Getúlio, como Jango, Lacerda, Sarney, Brizola, Prestes,
Juscelino e, da caserna, Juarez, Eduardo Gomes, Lott, Castello Branco, para
lembrar importantes chefes militares, altamente politizados, do período que vai
dos anos 50 aos 70.
Machiavel,
para Oskar Von Wertheimer, viveu sempre numa situação ambígua. Ao mesmo tempo
que fundava os pilares da política - como técnica e ciência do Estado - a
partir da sua experiência a serviço da cidade-estado de Florença, viabilizava
propósitos de Governos que ele já sabia à beira de catástrofes políticas e
guerras, que mudariam para sempre os rumos do continente europeu. Em épocas de
tranquilidade, “a política” - pensava Machiavel - “deixa um campo de ação mais
vasto à existência do indivíduo e do livre arbítrio”, o que não ocorre em
momentos de crise, quando morrem ou se fragilizam instituições. Neste momentos
de crise, a capacidade prática de fazer política, para Maquiavel, adquire uma
dimensão superior à vida privada dos indivíduos: o Estado passa o árbitro, o
indutor, o benfeitor, o repressor, que impõe ordem aos “partidos”, como ocorria
em Florença, cidade na qual eles competiam representando famílias nobres,
grupos sociais, corporações de mercadores ou artesãos, que lutavam pelo poder e
pelo dinheiro. Florença adiantava, à época, a luta de partidos, no sentido mais
contemporâneo da expressão, que se forma, como é hoje, sob o influxo da
Revolução Francesa.
Nas
circunstâncias de crise, as pessoas são chamadas a definir-se no espaço público
e praticamente são coagidas a terem posições, mesmo que advoguem omissões
conscientes. Vivendo nesta época de transição -onde o velho já não mais servia
e o novo ainda não surgira de forma evidente- Maquiavel foi sempre
“instrumentalizado” pela nobreza da época. Acabou morrendo solitário e pobre,
embora autor de uma obra que balizou as grandes questões do fazer político no
Estado Moderno. No prefácio do livro, este grande biógrafo de Maquiavel lembra
que, em Erfurt, Napoleão disse a Goethe: “a política é o destino”. E segue:
“hoje, mais do que nunca, o mundo está sujeito à política”. Marx, Kautsky,
Lenin, Lincoln, Jaurés, Willy Brandt, Bobbio, Sartre, Raymund Aron, nos seus
diferentes campos de interlocução filosófica e política, compreenderam em
profundidade estas verdades modernas Assim, compuseram o espírito da época e
influenciaram as grandes lutas que se sucederam até hoje. Hitler também
compreendera esta verdade, pois partiu da política para extingui-la,
internalizado-a no Estado e aniquilando a sociedade civil, transformando as
decisões de Estado, monocraticamente dirigido, em decisões supostamente do
povo, já despido da oportunidade de “partidarizar-se”.
Gosto
de imaginar cenas lapidares da História, como essa: o Corso, cheio de razões e
de armas, e o velho Goethe medindo as palavras, ao mesmo tempo com
deslumbramento, admiração e horror, num estado de espírito coerente com a sua
visão de mundo: a “verdade das verdades”, para ele, era: “transmuda-te ou
morre!”. Pensador da política como prática de preservação do Estado e de
organização da ordem, Maquiavel -como estadista e teórico- certamente
compreenderia -se presente em Erfurt- que ali naquele encontro confluíam duas
épocas, em processos de fenecimento e criação. Fenecimento da cultura do
feudalismo, com o romantismo revolucionário de Goethe, e criação da Europa
Burguesa, em direção à democracia política e ao Estado de Direito, com as suas
impotências e conquistas. Von Wertheimer lembra -no epílogo do livro- que o
melhor biógrafo de Machiavel, Pasquali Villari, opondo-se à visão vulgar que
encerra hoje a palavra “maquiavelismo”, dissera que não existia homem menos
“maquiavélico” (no sentido que é compreendida a palavra nos dias de hoje) do
que o grande florentino, o próprio Machiavel.
Assim
como a “terrível Guerra de 14-18” - no dizer de Oskar - “foi um marco, pois
encerrou-se uma era iniciando outra”, para a Humanidade, o golpe institucional,
com a deposição aparentemente legal de uma Presidenta, com 54 milhões de votos
(deflagrado por uma maioria contingente instigada pela maior manipulação
midiática da nossa história), também abre aqui uma nova época. Encerra-se -na
história recente da nossa democracia- um período de legitimação do poder pela
soberania popular, para ser aberto um período de incertezas absolutas. Nele, os
Governos que sejam considerados “ruins”, podem ser derrubados sem fundamento
constitucional, dando lugar a uma Confederação de Investigados e Denunciados,
que passa a ocupar a direção do Estado. Trata-se do mais rasteiro
“maquiavelismo” -no sentido degenerado da palavra- em que quaisquer meios
justificam quaisquer fins, ao contrário do que pensava o próprio filósofo. Para
ele a preservação da ordem do Estado (no nosso caso Estado de Direito), deveria
ser sempre superior às vontades contingentes de frações, que se unem somente a
partir dos seus interesses imediatos de poder.
O
desprezo de Maquiavel à corrupção é avesso ao “maquiavelismo” vulgar,
construído a partir de interesses contra o Estado, que aliás estão em todas as
formações políticas, em todo o mundo, em maior ou menor grau. A derrubada da
Presidenta Dilma premiou precisamente os polos políticos que eram mais íntimos
destas práticas, dentro do próprio Governo, articulados com os que eram os mais
hábeis, nestas práticas, fora dele. No seu livro sobre “arte bélica”, Maquiavel
ensina: “os príncipes da Itália julgam que para ser bom governador, basta dar
respostas argutas, saber redigir uma bela carta, demonstrar, por meios de
frases e palavras, ideias e certa habilidade, entender-se em fraudes,
enfeitar-se de ouro e pedras preciosas (…) tratar os súditos com orgulho e
avareza (…) viver na ociosidade…”.
Quem preenche estas características não é a
Presidenta Dilma, mas o articulador do “impeachment” e dono do golpe: Eduardo
Cunha. Ele projeta sua sombra política sobre o Governo atual e mexe os cordéis
das nomeações, do primeiro ao quinto escalão. Ele ocupa a liderança do Governo
Temer, por prepostos. Ele detém acólitos seus nos Ministérios e na Casa Civil,
lidera uma parte do Senado e já causa um brutal constrangimento nas pessoas de
bem, que foram manipuladas pela grande mídia, para apoiar a deposição da Presidenta.
Uma Presidenta, sobre a qual não pende nenhuma outra acusação, a não ser de
estar fazendo um governo “ruim”. Precedente perigoso, pois a partir dele
qualquer Governante pode ser derrubado, por razões meramente contingentes de
natureza política, independentemente da sua legitimação pelo voto popular.
O
“princípio político democrático” e o “princípio jurídico da soberania
constitucional” -os dois pilares do Estado Constitucional- foram
vulnerabilizados pelo afastamento da Presidenta da República, por razões que
estão expressas nas palavras dos próprios vencedores de ocasião, quando
declaravam seus votos na Câmara. A semeadura do ódio resultou num Governo que
não tem legitimidade para governar, mas que está sendo tolerado pelo oligopólio
da mídia, porque este é o demandante do “ajuste”: ajuste, que só pode ser
imposto pela coerção e com violência, para que os pobres e os deserdados paguem
a conta. A fala de Eduardo Cunha, na Comissão de Ética da Câmara, abre um
período dramático no Parlamento brasileiro, que pode desmoralizá-lo com mais
intensidade, se o “impeachment” se concretizar. A falta de justa causa será
desnudada pela falta de vergonha. E é muito pouco o que separa esta, da
desmoralização completa da democracia.
O
objetivo do “impeachment” é o ajuste e este é uma demanda do capitalismo
financeiro global, que precisa garantir o recebimento dos seus créditos para
continuar forte, guerreiro, dominante, invasivo, garantindo as fontes de
energia e materiais primas, para continuar ocupando e guerreando, como correu
através dos séculos de dominação imperial. Como diz Norberto Bobbio, no seu “O
Terceiro Ausente”: “A política interna é condicionada pela política externa, e
a política externa é uma política cuja manifestação última, até agora
ineliminavel e não eliminada, é a guerra.” É isso, na verdade, que estamos
trazendo para dentro da nossa crise. Temos que sair dela com mais democracia,
não com menos, pois isso dividirá a nação de forma radical. Estou cada vez mais
convencido que só novas eleições poderão relegitimar o poder político no pais,
para que os enfrentamentos se decidam com a afirmação da soberania popular. Não
com a sua morte.
*
Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto
Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações
Institucionais do Brasil.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/05/maquiavel-e-suas-sombras-deformadas.html?spref=tw
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