Na
tarde do dia 28 de março de 1968, quatro anos após o golpe militar, um grupo de
policiais armados invadiu o restaurante público Calabouço, no centro do Rio de
Janeiro. A intenção era reprimir o movimento de estudantes que reclamava dos
preços do restaurante, centro de encontro e de discussão política da oposição
jovem à ditadura. Na entrada, segurando uma bandeja, o estudante secundarista
Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, recebeu um tiro à queima-roupa no peito e
morreu na hora.
Edson,
o primeiro estudante a ser morto pelo regime, é uma das 434 vítimas fatais
oficialmente reconhecidas pela ditadura militar no Brasil. O blog fez um
levantamento por idade entre os mortos e desaparecidos e descobriu que 56%
deles eram jovens como ele: tinham menos de 30 anos de idade. 29%, ou quase um
terço dos mortos e desaparecidos da ditadura, tinham menos de 25 anos. São
esses meninos que os defensores do coronel Brilhante Ustra falam que pretendiam
implantar a “ditadura do proletariado” no País e por isso foram barbaramente
torturados e executados.
Este
raciocínio é, além de cínico, falacioso. Não se pode comparar o poderio militar
do Estado, com seus tanques, fuzis, metralhadoras, bombas e soldados fortemente
armados, com algumas dezenas de jovens que entraram para a guerrilha com o
sonho de derrotar um regime de força. Só alguém desprovido de inteligência (ou
mal-intencionado) pode comprar o caô de que os militares utilizaram a tortura
para “evitar que transformassem o Brasil em Cuba”. Para aceitar isso, é preciso
admitir que um governo militar apoiado pelos EUA era “frágil”, em vez dos
ferozes brucutus contra quem os adeptos da luta armada mais pareciam o exército
de Brancaleone.
Ora,
a primeira intenção dos guerrilheiros era acabar com a ditadura militar; o que
fariam depois pouco importa, ainda mais quando sabemos que esta vitória jamais
se concretizaria, dada a desproporcionalidade dos dois lados em disputa. O que
os adeptos da luta armada fizeram pode ser considerado, no máximo, sabotagem do
regime. Algo inteiramente legítimo em se tratando de lutar contra a tirania.
São, portanto, heróis. Quem os chama “terroristas” é conivente com o terrorismo
de Estado perpetrado durante 21 anos em nosso País.
Mas
o mais grave é que essa mentira esconde um fato facilmente comprovável ao se
estudar as biografias dos mortos pelo regime. Os defensores do DOPS e do
DOI-CODI tratam os torturados e mortos como se todos fossem Lamarcas e
Marighellas. Só que muitos deles tiveram trajetórias semelhantes à de Edson
Luís: envolvimento incipiente ou nulo na militância política. “No primeiro
período, a repressão era contra a luta armada. Depois do AI-5, passou a ser
contra qualquer um que se posicionasse contra a ditadura”, diz o ex-deputado
Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade em São Paulo. “Eu mesmo nunca
peguei numa arma e fiquei 90 dias na solitária na OBAN (Operação Bandeirante)”.
Naqueles
anos, participar de uma passeata contra o governo era o suficiente para receber
um tiro no meio da cara. Um coxinha destes que ia às ruas xingar a Dilma, por
exemplo, poderia ser assassinado sem qualquer justificativa, como aconteceu com
Edson ou com o goiano Ornalino Cândido da Silva.
Ornalino
foi um dos estudantes que, em 1968, se rebelaram contra a ditadura sob a
inspiração de Edson Luís. Seu “erro”: participar de uma manifestação contra o
governo em Goiânia, onde morava, no dia 1º de abril, exatos quatro anos após o
golpe. Quando o grupo já se dispersava, foi alvo de uma cilada: armados com
fuzis, metralhadoras, bombas, revólveres e cassetetes contra guris desarmados,
policiais militares desceram o sarrafo nos estudantes. Um sargento encostou a
arma na têmpora esquerda de Ornalino e atirou. Ele tinha 19 anos.
Em
alguns casos, bastava ser jovem: mesmo sem comprovação de que a pessoa fizesse
parte de um movimento ou organização clandestina, os militares se achavam no
direito de invadir sua casa e simplesmente desaparecer com ela. Paulo Torres
Gonçalves, também de 19 anos, era estudante secundarista e funcionário do Ibope
no Rio, sem militância comprovada até hoje. Em 26 de março de 1969, seus pais
receberam a notícia de que Paulo havia sido preso pelo DOPS sabe-se lá por quê,
mas que seria libertado em breve. Nunca foi encontrado.
Na
manhã do dia 21 de junho de 1968, que passou à história como a “sexta-feira
sangrenta”, os estudantes faziam uma manifestação em frente ao prédio do antigo
MEC (Ministério da Educação e Cultura), no centro do Rio de Janeiro, quando, na
esquina das ruas México e Santa Luzia, agentes do DOPS, da Polícia Federal e
soldados da PM gritaram que atirariam para matar. E atiraram. Três moças que
participaram do protesto caíram feridas. Atingida no rosto, a comerciária Maria
Ângela Ribeiro, de 22 anos, morreu em seguida.
Como
vivíamos um estado de exceção, os militares, mesmo os de mais baixa patente, se
comportavam como donos do Brasil, invadindo propriedade privada quando lhes
dava na telha. Em junho de 1968, dois civis e dois militares à paisana chegaram
ao bar e pensão Estrela Dalva, em Francisco Beltrão, no Paraná, e tentaram
entrar na residência sem autorização. Foram barrados por Iguatemi Zuchi
Teixeira, de 24 anos, funcionário da casa, e o conflito resultou em luta
corporal. No dia seguinte, Iguatemi foi levado para o quartel do Exército e não
voltou mais.
“Doutor,
veja se me tira hoje mesmo de lá. Estão me surrando muito. Não aguento mais uma
noite”, disse ele ao advogado, dias antes de ser fuzilado por um dos soldados
com quem tinha se indisposto. No laudo cadavérico, aparece escrito que Iguatemi
morreu “por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro
meio insidioso ou cruel, devido ao número e ao tipo de lesões encontradas”. A
causa da morte era “anemia aguda por hemorragia interna e externa provocada por
ferimentos penetrantes de abdômen e tórax” por “instrumento
perfuro-contundente”.
Fala-se
tanto que os guerrilheiros mataram militares inocentes em suas ações, como foi
o caso de Mário Kozel Filho. Mas e os militares inocentes torturados e mortos
pelos próprios militares? Segundo sargento do Exército, Manoel Alves de
Oliveira, de 29 anos, foi arrancado de casa em abril de 1964, na frente da
mulher e dos cinco filhos pequenos, por um homem em trajes civis acompanhado de
outros à paisana, e levado em uma Kombi. Foi torturado com ferro quente e
recebeu choques elétricos, ainda que as únicas acusações contra ele fossem de
ter se candidato à presidência do Clube dos Subtenentes e Sargentos do Exército
e de ser simpatizante do ex-presidente João Goulart.
“Numa
das poucas vezes em que consegui visitá-lo, verifiquei que o seu corpo estava
coberto de marcas, que mais tarde soube serem de ferro quente. Estava
transformado em um verdadeiro flagelado, com a barba e os cabelos crescidos”,
disse sua mulher, Norma Conceição, ao extinto jornal Correio da Manhã, em
setembro de 1964. Quando Norma o viu novamente, Manoel estava morto.
A
farsa dos “suicídios” não aconteceu apenas com o jornalista Vladimir Herzog.
Era algo banal para o regime assassinar alguém e depois encenar que a vítima
“se matou”. O ferroviário José Nobre Parente tinha 38 anos quando foi preso, no
Ceará, acusado de participar do movimento dos trabalhadores da RFFSA (Rede
Ferroviária Federal). Dois dias depois, em 19 de maio de 1966, a mulher de
Parente foi visitá-lo e ouviu o delegado dar a ordem ao carcereiro de verificar
se o preso “estava em condições de receber visita”, mas Parente já estava morto
na cela. Teria “se enforcado” com um cinto, sendo que no dia anterior a própria
Francisca tinha recolhido seus pertences pessoais: um anel, a aliança, o
relógio e… o cinto.
Os
ferroviários foram proibidos de comparecer ao velório e ao cemitério, mas
muitos não respeitaram a ordem e pularam o muro da empresa para ir até lá.
Durante o velório, o irmão da vítima, Valfredo, recebeu a certidão de óbito,
onde a causa mortis era “fratura de crânio”. Ao denunciar a insólita
modificação, Valfredo acabou sendo preso. A farsa do suicídio se completaria
quatro anos mais tarde, em 1970, com uma nova certidão em que constava “asfixia
mecânica por constrição do pescoço, enforcamento” como a causa da morte de José
Nobre Parente.
Estudante
secundarista, Ismael Silva de Jesus era militante do PCB e foi preso em Goiânia
três dias antes de completar 19 anos, em agosto de 1972. Foi brutalmente
espancado e levou choques elétricos, mas seu corpo foi entregue à família como
se tivesse se matado com uma corda de persiana por sentir “vergonha de estar
preso”. A verdade só viria à tona em 1991.
Até
mesmo supostos desertores da guerrilha foram vítimas de “suicídios” suspeitos.
Celebrado pela mídia golpista de então como um “terrorista arrependido” e
exibido pela ditadura como propagandista contra os rebeldes, Massafumi
Yoshinaga chegou a ser vice-presidente da União Paulista dos Estudantes
Secundaristas e militou na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), embora não
tivesse participado de nenhuma ação armada. Em meados de 1970, aos 21 anos,
teria se entregado voluntariamente aos órgãos de segurança.
A
partir daí, passou a aparecer em rádios e TVs como “ex-terrorista”, mas logo
começou a apresentar sequelas psicológicas –hoje se sabe que alguns destes
“arrependimentos” também eram resultado de tortura. Yoshinaga passou a sofrer
alucinações e a repetir que a OBAN iria matá-lo. Submeteu-se a tratamentos
psiquiátricos e chegou a ser internado, mas acabaria cometendo três tentativas
de suicídio: na primeira, se jogou embaixo de um ônibus; na segunda, tentou se
atirar pela janela; na terceira, morreu. Teria se enforcado com a mangueira de
plástico do chuveiro, em casa.
Outro
suicídio suspeito vitimou a baiana Esmeraldina Carvalho Cunha, de 49 anos,
encontrada morta em casa com um fio de máquina elétrica em volta do pescoço em
outubro de 1972. Havia um ano que Esmeraldina interpelava militares,
inconformada com a morte da filha caçula Nilda, de apenas 17 anos, após dois
meses de torturas em Salvador. Nilda estava no apartamento em que foi morta
Iara Iavelberg, companheira de Carlos Lamarca, quando foi presa, em agosto de
1971. Entre as torturas a que foi submetida, Nilda foi obrigada a tocar no
corpo frio da guerrilheira morta. A estudante saiu de lá com cegueiras
repentinas, deprimida e com alucinações.
Internada
num hospital na capital baiana, a menina recebeu a “visita” do major Nilton de
Albuquerque Cerqueira, que ameaçou levá-la de volta se não “parasse com suas
frescuras”, como contam os jornalistas Oldack Miranda e Emiliano Neto no livro
Lamarca, o Capitão da Guerrilha. A saúde de Nilda piorou e ela veio a falecer
em novembro de 1971. Seu prontuário dizia que não comia, via soldados dentro do
quarto, e repetia que ia morrer. Não se sabe a real causa da morte. No atestado
de óbito aparece “edema cerebral a esclarecer.” Pouco antes de “se suicidar”,
Esmeraldina, sua mãe, recebera a visita de um desconhecido que lhe levara um
recado: “o major mandou avisar à senhora que se não se calar, nós seremos
obrigados a fazê-lo”.
A
covardia dos militares também foi grande com idosos. Leopoldo Chiapeti tinha 58
anos quando foi preso em sua casa, em Mariano Moro (RS), no dia 30 de abril de
1964. Era acusado de pertencer ao “grupo dos onze”, ligado a Leonel Brizola.
Foi mantido nu e incomunicável durante quase um mês, período em que sofreu
choques elétricos, inclusive nos genitais, e afogamentos em água gelada. Nunca
se recuperou das torturas, e, no ano seguinte, morreu.
Na
caça aos guerrilheiros no Araguaia, os militares deixaram terra arrasada por
onde passaram, torturando e matando camponeses que encontraram pelo caminho.
Sebastião Vieira da Silva foi preso e torturado por tropas do Exército na
frente de familiares e vizinhos em 19 de janeiro de 1972, em Poço Azul,
município de São Geraldo do Araguaia, onde vivia com a mulher e os filhos.
Buscavam informações sobre uma guerrilheira chamada “Dina”. Antes de deixarem o
local, os soldados mataram os animais e destruíram a roça da família, sob o
argumento de que poderiam ser usados para alimentar guerrilheiros. Sebastião
faleceu uma semana depois, em decorrência das torturas.
Se
a ditadura fazia isso com cidadãos comuns, quando era alguém que de fato tinha
ligações com a luta armada, aí a coisa era ainda mais tenebrosa, não importando
a idade do sujeito. O estudante paulistano Eremias Delizoicov, militante da
VPR, foi morto aos 18 anos, em outubro de 1969, no Rio de Janeiro, fuzilado com
19 tiros, após o “aparelho” em que se encontrava ser cercado pelo Exército. Os
pais do garoto nunca receberam os restos mortais.
Eremias
ficou tão deformado que, em seu depoimento à Comissão da Verdade, o jornalista
Urariano Mota disse: “Na foto, não reencontro Eremias. A imagem é de um cadáver
de 18 anos perfurado de balas, o rosto irreconhecível porque só uma ferida, os
cabelos, tão úmidos, tão grossos por coágulos de sangue, que fazem a impressão
de Eremias flutuar no chão seco.”
Todas
essas tragédias e outras mais podem ser conferidas no relatório da Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. É somente conhecendo a verdade
que se é capaz de julgar, e não dando ouvidos a políticos e jornalistas da
extrema-direita truculenta, interessados em falsear os fatos de acordo com seus
interesses ideológicos.
Quem
conhece a História e segue apoiando a ação de torturadores e assassinos que se
escondem detrás da falácia de que estavam “salvando o Brasil de uma ditadura
comunista” ou é cúmplice ou tão psicopata quanto foi Brilhante Ustra.
http://www.socialistamorena.com.br/eles-mataram-garotos/
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