“Elas”
(as elites) gostariam de ser “eles” - os colonizadores
Estes
estavam ao pé da cruz na pintura de Bosch, mas poderiam frequentar o Congresso
Brasileiro
Na
CartaCapital, do ex-ministro Celso Amorim:
Sobre
a imagem do Brasil
O
que denigre o País no exterior não é uma "campanha" para
desacreditá-lo. São os fatos internamente produzidos
Há
uma nova obsessão com a imagem do Brasil. Parlamentares e editorialistas
revelam grande preocupação com os efeitos que discursos e entrevistas da nossa
presidenta (quando escrevo, Dilma Rousseff ainda é a presidenta do Brasil e
espero que assim continue ou volte a ser, quando o processo se completar)
possam ter na visão que os estrangeiros, naturalmente os dos Estados Unidos e
Europa, têm do nosso país.
Desde
cedo, na minha vida política e profissional, nutro grande implicância com o que
está por trás do conceito de “imagem no exterior”, nada mais que uma das muitas
faces do complexo colonial característico da nossa elite. Para ela, não importa
o que somos, mas o que outros (especialmente norte-americanos e europeus)
pensam de nós, pois no fundo “elas” (as elites) gostariam de ser “eles”.
Esse
parece ser o arcabouço mental dos falsos defensores do Brasil, que, quais os
fariseus da antiguidade, demonstram indignação com a “campanha” que, alegam,
visaria a desacreditar nossas instituições. (Na verdade, elas desacreditam
apenas um processo específico.)
Ademais,
os indivíduos ou entidades que se dizem preocupados com a “imagem” supõem uma
total desconexão entre esta e a realidade. Durante a ditadura, cidadãos foram
perseguidos por contribuírem para denegrir a “imagem do Brasil”, ao divulgar
fatos que a nossa própria imprensa não podia publicar, mas que mais tarde teve
de reconhecer.
Nessa
mesma época, ao tempo em que presidi a Embrafilme, ouvia, por vezes, outro
comentário ainda mais aterrador. O cinema brasileiro era nocivo à percepção que
se fazia do Brasil, pois mostrava muita pobreza. Os mais desavergonhadamente
reacionários chegavam a dizer “mostrava muitos negros” (sic).
Recordo-me
de um diálogo entre o meu então chefe, o equilibrado e racional embaixador
George Alvares Maciel, e um diplomata de alto escalão que veio chefiar uma
delegação a uma reunião da OEA. Por volta de 1972 ou 73. O enviado do governo
aproveitou a ocasião para fazer aos funcionários da repartição uma preleção
sobre a situação brasileira, em que sobressaiu especialmente a preocupação com
a “imagem”.
Maciel,
que não tinha papas na língua, disse ao fim: “Eu tenho uma ideia para melhorar
a imagem do Brasil”. Entre cético e surpreso, o autor da preleção indagou:
“Qual, por favor, me diga”. Maciel foi
singelo: “Diga para o governo acabar com a tortura”.
Hoje,
os “guardiães da imagem” gostariam de evitar que se consolide a visão sobre a
verdadeira natureza do processo em curso no Brasil: uma transferência ilegítima
do poder de um grupo político a outro, com base em alegações pouco
substanciosas sobre o manejo do Orçamento.
Como
esse tema foi sobejamente discutido, chamo a atenção para um ou dois pontos
que, penso, só foram mencionados de maneira indireta. O primeiro diz respeito à
questão da imagem propriamente. Nada fez tão mal à percepção que se tem do
nosso país quanto o espetáculo soturno da votação para a abertura do
impeachment na Câmara dos Deputados.
E
essa percepção, infelizmente, corresponde à realidade de um sistema político-eleitoral
que produz congressistas que falam em nome de Deus ou da família, quando, na
verdade, defendem interesses pessoais ou paroquiais, aos quais se soma uma
indisfarçável ojeriza à mudança social empreendida pelos governos Lula e Dilma.
Com
acertos e erros (esses sempre existem), foram administrações voltadas para o
povo e, sobretudo, para a diminuição da brutal desigualdade que caracteriza a
sociedade brasileira. Esse “ódio de classe”, que não é privilégio só dos muito
ricos, mas é também um traço de todos os que querem manter distância daqueles
que estão em um patamar abaixo do seu, além do lamentável preconceito contra a
mulher, estava estampado no rosto de vários que, como em um quadro de
Hieronymus Bosch, vociferavam impropérios, cada vez que um orador manifestava
oposição ao impeachment.
Esse
sistema político tem de ser mudado, para baratear as eleições e torná-las mais
representativas dos anseios do povo brasileiro, seja pelo voto em lista, que
fortaleceria os partidos, seja pelo distrital misto (modelo alemão), que
associa o alinhamento a determinada ideologia à representação mais próxima das
comunidades.
Por
essa razão, entre outras, é inócua a sugestão de antecipação de eleições
presidenciais, sem que, ao mesmo tempo, se proceda a uma renovação em
profundidade do sistema político e eleitoral, tarefa que somente uma Assembleia
Constituinte exclusiva pode operar.
Outro
ponto que apenas implicitamente apareceu até aqui, mesmo nas comparações muito
bem feitas com situações passadas ou de outros países, é justamente o da
substituição de um grupo político por outro: uma mudança de rumo que substitui
um projeto reformador, consagrado nas urnas, por uma visão socialmente
conservadora, característica de quase todos os governos anteriores ao de Lula.
Na maioria absoluta dos casos comumente lembrados, não foi disso que se tratou.
Nos Estados Unidos (sempre um padrão), Richard Nixon não foi substituído por um
democrata.
Nem
um político republicano teria sucedido a Bill Clinton se o julgamento do Senado
norte-americano fosse diverso daquele que foi. Mesmo no Brasil, a saída de
Collor não trouxe ao poder líderes da esquerda. Com efeito, a despeito da
tendência nacionalista de Itamar e de sua sensibilidade social, a política
neoliberal foi mantida, só que com maior eficiência e resultados mais
palpáveis, ao menos no que toca à macroeconomia.
O
que não deixará de ser motivo de espanto e estranheza para a opinião pública
mundial é o fato de que o projeto de uma sociedade mais igualitária e de um
país mais autônomo e participante nas questões internacionais, levado adiante
pelos governos Lula e Dilma e objeto de admiração e respeito praticamente
universais, dê lugar a um enorme retrocesso em direção a antigas posturas de
submissão aos poderosos, no plano externo, e de complacência com a injustiça,
no plano interno, não por meio de uma decisão do voto popular, mas de manobras
de cúpula, conduzidas por personagens sobre os quais (mesmo mantida a
indispensável presunção de inocência) pesam acusações muito mais graves do que
as chamadas “pedaladas fiscais”.
É
esse espanto e essa estranheza que “ofensivas midiáticas”, ainda que com grande
apoio de boa parte da nossa mídia, não conseguirão apagar, da mesma forma que o
noticiário encomendado sobre o “milagre brasileiro” nos anos 70 não resgatou a
“imagem” do País, conspurcada pela tortura.
http://www.conversaafiada.com.br/economia/amorim-o-que-denigre-a-imagem-do-brasil-no-exterior
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