"Se
é o poder econômico, então, que está inspirando o impeachment da presidenta
Dilma, a sua fonte ética está mais do que poluída e, por via de consequência
lógica, a sua legitimidade também", escreve Jacques Távora Alfonsin,
procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso,
Cidadania e Direitos Humanos.
Eis
o artigo.
Manifestações
públicas de organizações empresariais poderosas estão se pronunciando sobre a
crise brasileira do momento, algumas de forma um pouco mais discreta, mas a
maioria de forma explícita, em favor do impeachment da presidenta Dilma.
Um
olhar sobre o passado recomenda bastante cuidado com o que estão dizendo. Não
tanto pelo fato de não refletirem a unanimidade do empresariado do país, como
se todo ele fosse favorável ao impeachment, mas principalmente pela semelhança
que mostram com o apoio explícito dado ao golpe militar de 1964, quando grupos
econômicos poderosos se apressaram em avalizar a supressão da democracia, então
perpetrada contra a República e o seu povo.
Um
exemplo mais do que lembrado e repetido disso forneceu a Rede Globo. Décadas
depois do golpe, viu-se obrigada e constrangida a se desculpar por sua
cumplicidade com a barbárie desencadeada então, mancha atualmente denunciada
por todas as pessoas que voltam a identificar nesse grupo midiático a mesma
recaída daquela época.
A
Folha de São Paulo desta sexta-feira, 18 de março, dá um outro exemplo. O
presidente da Riachuelo, “que comanda um dos maiores grupos de varejo do país”,
segundo a notícia, “avalia que a convocação de novas eleições seria a melhor
saída para o impasse que paralisa o Brasil, mas pondera que as saídas mais
viáveis politicamente são a renúncia ou o impeachment de Dilma”.
Parece
tão convicto de essa hipótese já constituir-se fato consumado ao ponto de
“defender que o vice-presidente Michel Temer assuma o comando do país, apesar
do seu envolvimento com a operação lava-jato.”
Incrível
não? As graves acusações contra políticos, investigados nessa operação,
partidas de empresários como esse, tem esse tipo de dupla moral revelado da
forma mais clara possível: se a operação lava-jato alcançar a presidenta, prova
a imoralidade desta e sua queda tem de ser decretada, mas se está investigando
o seu vice, aí não! Mesmo processado, a “moralidade” deste é diferente, por
gozar do prestígio e do apoio do empresário.
Ou
seja, quem pode e deve impor o que seja moral ou não, é o empresário, Queiram e
aguentem assim as leis, as instituições, as autoridades e o povo. Não foi bem
esse o resultado do golpe de 1964?
Sob
o título “Entidades empresariais pedem saída de Dilma”, a Zero Hora deste mesmo
18 de março, noticia serem favoráveis ao impeachment também a Fiesp, Firjan, a
Fecomercio do Rio Grande do Sul, a Câmara da Indústria e Comércio de Caxias do
sul, mais “22 sindicatos patronais filiados”.
Como
não há possibilidade de impeachment para o capital, circunstância por si só
demonstrativa da impossibilidade de ele ser responsabilizado pela sua
imoralidade, essa diferença em relação ao Estado dá chance de a “economia da
despossessão” por ele gerada, conforme a identifica David Harvey, ser avaliada
pelo menos segundo o peso de sua expressão, no criar e reproduzir crises
exponencialmente muito mais graves do que a do Brasil de hoje. Inclusive para
se medir sua influência decisiva sobre a imoralidade política por ela própria
impulsionada.
No
conhecido estudo “O enigma do capital”, Harvey denuncia como a inconformidade
contrária aos efeitos socialmente injustos dessa economia, está chegando com
atraso, no hoje do mundo todo, exatamente pelo que está mais em causa na crise
brasileira de agora pelo capital mesmo acusada como a sua principal causa: a
moralidade.
Se
a moral, privada ou pública, não for capaz de empoderar mobilização coletiva,
suficiente para bem identificar o verdadeiro alvo da sua indignação, ela pode
ser enganada mais pelo alto-falante de quem se proclama seu porta-voz do que
pela necessidade de mudanças muito mais profundas e estruturais do que as dos
comportamentos econômico-políticos de agora:
“Na
medida em que a indignação e o ultraje moral se constroem em torno da economia
da despossessão que de modo tão claro beneficia uma classe capitalista
aparentemente toda - poderosa, movimentos políticos necessariamente tão
diferentes começam a se fundir, transcendendo as barreiras do espaço e do
tempo. Entender a necessidade política disso exige em primeiro lugar que o
enigma do capital seja desvendado. Uma vez que sua máscara é arrancada e seus
mistérios são postos a nu, é mais fácil ver o que tem de ser feito e por que, e
como começar a fazê-lo. O capitalismo nunca vai cair por si próprio. Tem de ser
empurrado. A acumulação do capital nunca vai cessar. Terá de ser interrompida.
A classe capitalista nunca vai entregar voluntariamente seu poder. Terá de ser
despossuída. Fazer o que tem de ser feito exigirá tenacidade e determinação,
paciência e astúcia, juntamente com compromissos políticos firmes originados da
indignação moral em relação ao que o crescimento composto explorador faz com
todas as facetas da vida humana e não apenas no planeta Terra. Mobilizações
políticas suficientes para tal tarefa ocorreram no passado. Podem, e certamente
virão outra vez. Estamos, penso, atrasados.” (“O enigma do capital e as crises
do capitalismo”, São Paulo: Boitempo, p.209)
“Empurrar”
o capital, “interromper” a sua acumulação, “despossuir” o seu poder de classe.
Qualquer crítico identificará aí o pensamento marxista do autor, mas, se tiver
algum senso verdadeiramente moral, terá de reconhecer, sem poder negar o quanto
essa economia empurra gente para a pobreza e a miséria, interrompe antecipadamente
vidas, despossui multidões de pessoas no mundo todo, não de dinheiro, coisas ou
mercadorias, mas sim de dignidade, honra, cidadania, convivência fraterna,
bem-estar, humanidade enfim.
Thomas
Piketty, por exemplo, não é marxista, mas, em “O capital no século XXI” não diz
coisa muito diferente. Se é o poder econômico, então, que está inspirando o
impeachment da presidenta Dilma, a sua fonte ética está mais do que poluída e,
por via de consequência lógica, a sua legitimidade também. De outra parte, se a
história serve mesmo de aviso, não lhe basta nem o número de pessoas nem o
volume do som que puxam o seu cortejo. À marcha multitudinária e militante por
Deus, pátria, família e liberdade de 1964, seguiu-se uma procissão de tanques
nas ruas, torturas nas cadeias, sangue, lágrimas e morte.
Hoje
tudo é diferente e essa hipótese é alarmista? Pode até ser, mas, como Harvey
previne, não se pode chegar atrasada/o para impedir que as mesmas, violentas e
injustas consequências, violando direitos fundamentais das/os brasileiras/os,
sejam impostas por outros meios, mesmo quando esses tenham o poder de
manipular, a seu gosto, a interpretação da Constituição Federal e das leis.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/552798-se-o-capital-esta-a-favor-do-impeachment-e-melhor-contraria-lo
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