A
Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal é o tema que tenho me dedicado nos
últimos tempos[1]. Por ela, busca-se compreender como estabelecer as expectativas
de comportamento dos jogadores (internos e externos ao jogo processual),
capazes de, a partir deles, indicar as regras do jogo, mapeando as recompensas
e estabelecendo as táticas e estratégia (dominantes e dominadas) em face de
jogadores processuais reais. Levo a sério a interação humana e as dificuldades
de sujeitos que são inautênticos. Voltarei ao tema nas próximas semanas, embora
tenha indicado algo nas colunas anteriores.
A
Teoria dos Jogos não é “pelada” e, como diz Duilio de Avila Bêrni, “já foi
acusada de trazer uma visão cínica da natureza humana. Este tipo de acusação é
por si só problemático. Primeiramente, não se deve julgar a teoria dos jogos
pela ação dos jogadores, ou mesmo dos formuladores. Em segundo lugar, como
ficará mais claro adiante, a teoria dos jogos é essencialmente uma construção
matemática. Como tal, ela lida com entes ideais (os números e as variáveis) e
as relações ideais (teoremas) entre eles. O salto de passagem entre o mundo dos
números e o mundo físico nunca precisa ser exercitado.”[2].
Hoje
tratarei de uma das faces da barganha, temática complexa. Acolho, com
adaptações, o dilema do prisioneiro (Merrill Flood e Melvin Dresher), cujos
pressupostos são aplicáveis ao jogo da barganha (cooperação premiada, transação
processual, instruções, etc.), e das emoções agindo em jogadores/julgadores
humanos[3].
Aproveito,
nesse sentido, a metáfora apresentada por Rapoport[4], utilizando a peça
“Otelo, o Mouro de Veneza”, de Shakespeare[5]. Quem não leu, pare, e busque um
resumo na internet ou leia a peça (que é curta).
Tenhamos
Otelo e Desdemona como jogadores e que, não tendo certeza sobre a culpa de
Desdemona, Otelo tenha perguntado: Você se entregou ou não a Cassio? Embora
Desdemona saiba de sua inocência, suas táticas dependem do que Otelo pode ou
não acreditar. Logo, pode: 1) confessar falsamente a culpa; e 2) negar a culpa.
Falar a verdade parece o mais natural, mas a questão é saber se o outro está em
condições de acreditar[6]. Mas vamos complicar em duas vias para entender o Dilema
de Desdemona.
a)
para estabelecer a tática dominante, todavia, Desdemona deve pressupor qual a
conclusão já tomada por Otelo, ou seja, se: 1) acredita que é culpada; ou 2)
acredita que é inocente. Dessa sua pressuposição, assim, abrem-se duas ações:
1) confessar falsamente e ter a esperança de que Otelo possa perdoar; 2)
sustentar a inocência e a provar.
Perceba-se
que a tática dominante depende do que Desdemona pensa que Otelo pensa. E pouco
importa, assim, se é ou não inocente.
b)
Desdemona, também, pode imaginar um jogo diferente, pelo qual a sua palavra
reconhecendo ou negando a traição possa ter um valor na conclusão de Otelo.
Nesse jogo, então, Otelo pode ter quatro crenças: 1) acreditar que Desdemona é
culpada, seja lá o que ela responder; 2) acreditar que Desdemona é inocente,
seja lá o que ela responder; 3) acreditar em Desdemona, o que quer que ela diga
(sim ou não); e, 4) não acreditar em Desdemona, o que quer que ela diga.
Esse
segundo modelo de jogo depende da pressuposição de Desdemona quanto à confiança
que Otelo deposita em sua capacidade ou não de traição. Daí que sua resposta,
portanto, vincula-se ao inventário de crenças antecedentes do adversário, para
somente então se apurar a tática dominante. O acolhimento do argumento de dúvida
razoável depende, assim, da capacidade de acreditação.
No
Processo Penal em que o código oculto dos antecedentes opera como incremento de
culpa, entendido como, em caso de dúvida, conferem-se os antecedentes do
acusado, bem assim que a força da palavra do acusado com antecedentes pode ter
o peso reduzido, mostra-se necessário antecipar o mapa mental dos
julgadores/jogadores. Logo, acusados com antecedentes não podem fingir que eles
não existem, já que o silêncio normalmente é uma tática perigosa.
O
acusado também diz que “sempre que foi o autor da conduta confessou a autoria”.
Sua palavra, para ter mais credibilidade, precisa ser confortada com as
sentenças anteriores que podem ser facilmente buscadas, que agregariam créditos
às suas palavras. Dizer ao vento é muito arriscado e pouco convincente. Se a
defesa quer adotar esta tática é seu dever de credibilidade juntar as decisões
condenatórias. Com isso, não se omite, agrega-se credibilidade, aumentando-se
as chances de acolhimento.
A
árvore do jogo, portanto, depende das pressuposições antecedentes – Otelo: a)
acredita ou não que Desdemona poderia traí-lo? b) quer ou não ficar casado com
Desdemona? c) como lidará com sua reputação? – pois, dependendo das respostas,
os jogos ganham táticas dominantes diferenciadas, dado o peso de cada uma das
variáveis. Por isso, joga-se no Processo Penal com as antecipações de sentido e
expectativas de comportamento. Ou não?
Acrescente-se,
ainda, que os jogadores devem levar em consideração a possibilidade de conluio
entre os jogadores e as fontes de informação – testemunhas -, a saber, as
recompensas possíveis que os jogadores e testemunhas/informantes podem obter
com o conteúdo de suas declarações.
Por
mais difícil que se possa antecipar todas as expectativas de comportamento, a
matriz da Teoria dos Jogos pode auxiliar na compreensão dos jogos reais, sem
que possamos confundir o mapa dos jogos com os jogos em si, para não se cair na
“falácia do mapa”[7].
Em
face de alternativas, em situação de encruzilhada (os nós de decisão das
árvores do jogo), deve-se tomar a melhor decisão: a tática dominante (a melhor
escolha para cada possível escolha a ser feita por outro jogador). Pode-se
simplesmente arriscar, como de regra se faz, apostando-se em um tino, na sorte,
vontade divina, em uma imaginária compreensão autêntica, com os riscos daí
decorrentes, ou pode-se preparar para se tomar decisões mais qualificadas, com
informação ampliada, isto é, englobando as crenças dos jogadores quanto à
reputação, credibilidade etc. A escolha é sua. Somos tomados muitas vezes pelo
fascínio da autoconfiança ou de uma sinceridade que ceifa as possibilidades de
vitória e, no caso de Desdemona, levou à morte.
[1]
Em breve (março) deverá sair a 3ª edição do Guia Compacto do Processo Penal
conforme a Teoria dos Jogos pela Editora Empório do Direito.
[2]
BÊRNI, Duilio de Avila. Teoria dos Jogos: Jogos de estratégia, estratégia
decisória, teoria da decisão. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso, 2004, p.
15-16.
[3]
MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal.
Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015.
[4]
RAPOPORT, Anatol. Lutas, Jogos e Debates. Trad. Sérgio Duarte. Brasília: UNB,
1998, p. 179-184.
[5]
SHAKESPEARE, William. Otelo, o Mouro de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2007.
[6]
BÊRNI, Duilio de Avila. Teoria dos Jogos: Jogos de estratégia, estratégia
decisória, teoria da decisão. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso, 2004, p.
10: “Nem sempre a escolha sincera é racional e muitas vezes ela diverge radicalmente
da escolha estratégica”.
[7]
A descrição do mundo (mapa = ordenamento jurídico) como sendo o território,
embora cativante e sedutor, no fundo, gera a confusão em não se conseguir
reduzir a sua complexidade. O mundo é complexo. A tentativa de simplificar pode
obter parcial sucesso, mas é insuficiente. O Processo Penal sofre, assim, de um
grande déficit, dado que procura, ainda, estabelecer as bases de seu
funcionamento em face de coordenadas, ou seja, de um mapa que não se confunde
com o território. Jorge Luis Borges nos dizia que o mapa mais perfeito do mundo
seria ele próprio. A metáfora mostra que não se pode confundir um mapa do lugar
com o seu real. Sempre há nuanças, desvios, mudanças de rumo, erros e
surpresas.
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2016-fev-19/limite-penal-quando-otelo-mouro-veneza-entra-jogo-processo-penal
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