O
artigo abaixo foi escrito pelo professor e historiador Sidney Chalhoub.
Ex-Unicamp, Chalhoub leciona agora História da América Latina e do Caribe na
universidade de Harvard.
Itaguahy
é aqui e agora, diria talvez Machado de Assis, ao observar o ponto ao qual
chegamos. Ao inventar Simão Bacamarte, o protagonista de “O alienista”, Machado
mobilizou sem dúvida referências diversas, tanto literárias quanto políticas.
Parece certo que se inspirou também em personagens históricas concretas, ou em
situações de sua época que produziam tais personagens.
Na
década de 1880, habitante da Corte imperial, ele assistia havia décadas à
ciranda infindável de epidemias de febre amarela, varíola, cólera, etc. e a
luta inglória dos governos contra tais flagelos.
O
pior da experiência era que o fracasso contínuo das políticas de saúde pública,
ou da higiene pública, como se dizia com mais frequência, provocava,
paradoxalmente, o aumento do poder de médicos higienistas e engenheiros. Esses
profissionais se encastelavam no poder público munidos da “ciência” e da
técnica que poderiam renovar o espaço urbano de modo radical e “sanear” a
sociedade.
Demoliam-se
casas populares, expulsavam-se moradores de certas regiões, reprimiam-se modos
de vida tradicionais, regulava-se muita cousa sob o manto do burocratismo
cientificista. E as epidemias continuavam.
Machado
de Assis refere-se a esse quadro como “despotismo científico”, em “O alienista”
mesmo, ao descrever “o terror” que tomara conta de Itaguahy diante das ações de
Bacamarte. Havia inspetor de higiene e engenheiro da fiscalização sanitária a
agir com convicção de Messias, cheios de autoridade, inebriados de seus
pequenos poderes.
Simão
Bacamarte, portanto, é desenhado d’après nature, para usar a expressão daquele
tempo meio afrancesado, por mais caricatural que a personagem possa parecer. A
arte imita a vida, segundo Machado de Assis, quem sabe. A estória que contou é
conhecida por todos, talvez uma das referências intelectuais clássicas mais
compartilhadas nesta nossa república da bruzundanga.
Por
isso é uma estória boa para pensar a nossa condição coletiva, Brasil, março de
2016. Bacamarte queria estabelecer de maneira objetiva e irrefutável os limites
entre razão e loucura. Conseguiu amplos poderes da câmara municipal, dinheiro
para construir a Casa Verde, seu hospício de alienados, e passou a atuar como
que ungido por suas convicções científicas.
Ao
contrário do que imaginara inicialmente, encontrou uma diversidade assombrosa
de loucos. Se o eram mesmo, continuam conosco, como os impagáveis loucos
“ferozes”, definidos apenas como sujeitos grotescos que se levavam muito a
sério. A galeria de loucos que tinha a mania das grandezas é quiçá a mais
relevante em nossa situação atual. Havia o cara que passava o dia narrando a
própria genealogia para as paredes, aquele pé rapado que se imaginava mordomo
do rei, e outro, chamado João de Deus, propalava que era o deus João.
O
deus João prometia o reino do céu a quem o adorasse, e as penas do inferno aos
outros. Ainda hoje em dia Simão Bacamarte acharia material humano de sobra para
encher a Casa Verde. Se ampliasse a pesquisa para a internet, ele teria de
investigar a hipótese de a loucura engolfar o planeta inteiro.
Afinal,
segundo ele, “a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí
insânia, insânia, e só insânia”. Ou talvez não. Se Bacamarte lesse e visse a
grande mídia brasileira, é possível que concebesse um conceito mais
circunscrito de alienação mental. Sem a cacofonia virtual estaríamos expostos apenas
à monomania de uns poucos, e a diversidade de opiniões é sacrossanta nesta
nossa hora. Bendita internet.
O
messianismo cientificista de Bacamarte se foi. Mas o curioso é que a ficção
dele criou raízes na história brasileira, virou realidade. Muitos dentre nós,
de cabelo bem grisalho ou até nem tanto, lembrarão da situação do país no final
dos anos 1980 e no início da década seguinte, a viver a passagem sem ponte da
ditadura para a hiperinflação.
Em
retrospecto, penso que havia um quê de continuação da ditadura naqueles planos
econômicos todos que produziram até uma nova caricatura de Messias, o caçador
de Marajás. Agora a população não era mais culpada de viver na imundície e nos
maus costumes, a causar epidemias de febre amarela.
No
entanto, estava inoculada pelo vírus da cultura inflacionária. Daí vieram os
czares da Economia ou ministros da Fazenda, ou que nome tivesse aquela
desgraceira. As “autoridades” daquela ciência cabalística confiscavam poupança,
congelavam preços, nomeavam “fiscais” populares dos abusos econômicos, podiam
fazer o que lhes desse na veneta. Mas dava errado.
A
inflação voltava, os caras não acertavam. Vinha outro plano, mais confisco,
mais arrocho salarial, e nada. Viveu-se assim por uma década, ou mais. Cada
ministro era um pequeno deus, cujo poder tinha relação direta com a sua
profunda ignorância sobre o que fazer para dar jeito na bruzundanga.
Os
higienistas do final do século XIX e os economistas do final do século XX
tinham muito em comum. Em algum momento, o despotismo econômico se foi. Tinha
de passar, passou. Tivemos democracia por algum tempo, com todos os seus rolos,
mas sem salvadores da pátria, o que era um alívio. Livres, ainda que sob a
batuta do deus Mercado, uma espécie de messianismo sem Messias, ou sem endereço
conhecido.
Eis
que surge, leve e fagueiro, o messianismo judiciário.
De
onde menos se esperava, a cousa veio. Simão Bacamarte encarnou de novo, vive-se
a história como a realização radical da ficção, hiper-ficção. As operações de
despolitização do mundo são as mesmas –no despotismo científico do XIX, no
despotismo econômico do XX, no despotismo judiciário do século XXI.
De
repente, num processo que historiadores decerto explicarão no futuro, com a
pachorra e a paciência daqueles que não vivem o presente às tontas, pois não
sabem esquecer o passado, um determinado poder da república se emancipa dos
outros, se desgarra, engole tudo à sua volta. Em nome da imparcialidade, da
equidade, da prerrogativa do conhecimento (tudo igualzinho aos higienistas e
aos economistas de outrora), eles provincializam a nação inteira, e negam, a
cada passo, o que professam em suas perorações retóricas: agem de forma
partidarizada, perseguem determinados indivíduos e organizações, transformam a
sua profunda ignorância histórica num poder avassalador.
Todos
sabemos como terminou a estória de Simão Bacamarte. Depois de testar tantas
hipóteses, de achar que a loucura poderia quiçá abarcar a humanidade inteira,
ele concluiu que o único exemplar da espécie em perfeito equilíbrio de suas
faculdades mentais era ele próprio.
Por
conseguinte, o anormal era ele, alienado só podia ser quem não tinha
desequilíbrio algum em suas faculdades mentais. Bacamarte trancou-se na Casa
Verde para pesquisar a si próprio e lá morreu alguns meses depois. Pode ser que
haja aí um bom exemplo. Alguém saberia dizer, por favor, onde Machado de Assis
deixou a chave da Casa Verde?
P.S.
A semelhança entre Simão Bacamarte e um determinado juiz de província do Brasil
atual me foi sugerida por um amigo aqui de Harvard, a quem agradeço pela
inspiração. Obrigado a todos aqueles que saíram às ruas, neste 18 de março, em
defesa da democracia.
Por
Diario do Centro do Mundo
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