Ainda
há juízes no Brasil, embora o que a gente esteja vendo seja a glorificação daqueles
que se concederam o poder de césares na arena, a decidir, com os gritos da
platéia e um movimento de polegar, quem vive ou morre para a vida social.
Imperdível
a leitura do texto do juiz Rubens Casara, no site jurídico Justificando.com.
É
triste ver que tenho companhias mais capazes, conhecedoras do Direito e da
história jurídica e que chegam às mesmas conclusões que este modesto blogueiro
expôs, ontem, aqui. E com muito mais fundamentos.
Vamos
comemorar um tribunal que julga de acordo com a opinião pública?
Juiz
Rubens Casara, no Justificando.com
Em
1938, o líder nazista Adolf Hitler foi escolhido o “homem do ano” da revista
Time. Antes disso, Hitler figurou na capa de diversas revistas europeias e
norte-americanas, no mais das vezes com matérias elogiosas acerca de sua luta
contra a corrupção e o comunismo que “ameaçavam os valores ocidentais”. Seus
discursos contra a degeneração da política (e do povo) faziam com que as
opiniões e ações dos nazistas contassem com amplo apoio da opinião pública, não
só na Alemanha. O apelo transformador/moralizador da política e as reformas da
economia (adequada aos detentores do poder econômico) fizeram emergir
rapidamente um consenso social em favor de Hitler e de suas políticas.
Diversos
estudos apontam que a população alemã (mas, vale insistir, não só a população
alemã) apoiava Hitler e demonizava seus opositores, inebriada por matérias
jornalísticas e propaganda, conquistada através de imagens e da manipulação de
significantes de forte apelo popular (tais como “inimigo”, “corrupção”,
“valores tradicionais”, etc.).[1] Em material de repressão aos delitos, os
nazistas, também com amplo apoio da opinião pública, defendiam o lema “o punho
desce com força”[2] e a relativização/desconsideração de direitos e garantias
individuais em nome dos superiores “interesses do povo”.
A
“justiça penal nazista” estabeleceu-se às custas dos direitos e garantias
individuais, estas percebidas como obstáculos à eficiência do Estado e ao
projeto de purificação das relações sociais e do corpo político empreendida
pelo grupo político de Hitler. Aliás, a defesa da “lei e da ordem”, “da
disciplina e da moral” eram elementos retóricos presentes em diversos discursos
e passaram a integrar a mitologia nazista. Com o apoio da maioria dos meios de
comunicação, que apoiavam o afastamento de limites legais ao exercício do poder
penal, propagandeando uma justiça penal mais célere e efetiva, alimentou-se a
imagem populista de Hitler como a de um herói contra o crime e a corrupção, o
que levou ao aumento do apoio popular a suas propostas.
Hitler,
aproveitando-se de seu prestigio, também cogitava alterações legislativas em
matéria penal, sempre a insistir na “fraqueza” dos dispositivos legais que
impediriam o combate ao crime. Se o legislativo aplaudia e encampava as
propostas de Hitler, o Judiciário também não representou um obstáculo ao
projeto nazista. Muito pelo contrário.
Juízes,
alguns por convicção (adeptos de uma visão de mundo autoritária), outros
acovardados, mudaram posicionamentos jurisprudenciais sedimentados para atender
ao Führer (vale lembrar que na mitologia alemã o Führer era a corporificação
dos interesses do povo alemão). Vale lembrar, por exemplo, que para Carl
Schmitt, importante teórico ligado ao projeto nazista, o “povo” representava a
esfera apolítica, uma das três que compõem a unidade política, junto à esfera
estática (Estado) e à esfera dinâmica (Movimento/Partido Nazista), esta a
responsável por dirigir as demais e produzir homogeneidade entre governantes e
governados, isso através do Führer (aqui está a base do chamado
“decisionismo institucionalista”,
exercido sem amarras por Hitler, mas também pelos juízes nazistas).
O
medo de juízes de desagradar a “opinião pública” e cair em desgraça – acusados de serem coniventes com a
criminalidade e a corrupção – ou de se tornar vítima direta da polícia política
nazista (não faltam notícias de gravações clandestinas promovidas contra
figuras do próprio governo e do Poder Judiciário) é um fator que não pode ser
desprezado ao se analisar as violações aos direitos e garantias individuais
homologadas pelos tribunais nazistas. Novamente com o apoio dos meios de
comunicação, e sua enorme capacidade de criar fatos, transformar insinuações em
certezas e distorcer o real, foi fácil taxar de inimigo todo e qualquer
opositor do regime.
Ao
contrário do que muitos ainda pensam (e seria mais cômodo imaginar), o projeto
nazista não se impôs a partir do recurso ao terror e da coação de parcela do
povo alemão, Hitler e seus aliados construíram um consenso de que o terror e a
coação de alguns eram úteis à maioria do povo alemão (mais uma vez, inegável o
papel da mídia e da propaganda oficial na manipulação de traumas, fobias e
preconceitos da população). Não por acaso, sempre que para o crescimento do
Estado Penal Nazista era necessário afastar limites legais ou jurisprudenciais
ao exercício do poder penal, “juristas” recorriam ao discurso de que era
necessário ouvir o povo, ouvir sua voz através de seus ventríloquos, em
especial do Führer, o elo entre o povo e o Estado, o símbolo da luta contra o
crime e a corrupção.
Também
não faltaram “juristas” de ocasião para apresentar teses de justificação do
arbítrio (em todo momento de crescimento do pensamento autoritário aparecem
“juristas” para relativizar os direitos e garantias fundamentais). Passou-se,
em nome da defesa do “coletivo”, do interesse da “nação”, da “defesa da
sociedade”, a afastar os direitos e garantias individuais, em uma espécie de
ponderação entre interesses de densidades distintas, na qual direitos concretos
sempre acabavam sacrificados em nome de abstrações. Com argumentos
utilitaristas (no mais das vezes, pueris, como por exemplo o discurso do “fim
da impunidade” em locais em que, na realidade, há encarceramento em massa da
população) construía-se a crença na necessidade do sacrifício de direitos.
A
Alemanha nazista (como a Itália do fascismo clássico) apresentava-se como um
Estado de Direito, um estado autorizado a agir por normas jurídicas. Como é
fácil perceber, a existência de leis nunca impediu o terror. O Estado
Democrático de Direito, pensado como um modelo à superação do Estado de
Direito, surge com a finalidade precípua de impor limites ao exercício do
Poder, impedir violações a direitos como aquelas produzidas no Estado nazista.
Aliás, a principal característica do Estado Democrático de Direito é justamente
a existência de limites rígidos ao exercício do poder (princípio da legalidade
estrita). Limites que devem ser respeitados por todos, imposições legais bem
delimitadas que vedam o decisionismo (no Estado Democrático de Direito existem
decisões que devem ser tomadas e, sobretudo, decisões que não podem ser
tomadas).
O
principal limite ao exercício do poder é formado pelos direitos e garantias
fundamentais, verdadeiros trunfos contra a opressão (mesmo que essa opressão
parta de maiorias de ocasião, da chamada “opinião pública”). Sempre que um
direito ou garantia fundamental é violado (ou, como se diz a partir da ideologia
neoliberal, “flexibilizado”) afasta-se do marco do Estado Democrático de
Direito. Nada, ao menos nas democracias,
legitima a “flexibilização” de uma garantia constitucional, como, por exemplo,
a presunção de inocência (tão atacada em tempos de populismo penal, no qual a
ausência de reflexão – o “vazio do pensamento” a que se referia H. Arendt –
marca a produção de atos legislativos e judiciais, nos quais tanto a doutrina
adequada à Constituição da República quanto os dados produzidos em pesquisas
sérias na área penal são desconsiderados em nome da “opinião pública”).
Na
Alemanha nazista, o führer do caso penal (o “guia” do processo penal, sempre,
um inquisidor) podia afastar qualquer direito ou garantia fundamental ao
argumento de que essa era a “vontade do povo”, de que era necessário na “guerra
contra a impunidade” ou na “luta do povo contra a corrupção” (mesmo que para
isso fosse necessário corromper o sistema de direitos e garantias) ou, ainda,
através de qualquer outro argumento capaz de seduzir a população e agradar aos
detentores do poder político e/ou econômico (vale lembrar aqui da ideia de
“malignidade do bem”: a busca do “bem” sempre serviu à prática do mal,
inclusive o mal radical. O mal nunca é apresentado como “algo mal”. Basta
pensar, por exemplo, nas prisões brasileiras que violam tanto a legislação
interna quanto os tratados e convenções internacionais ou na “busca da verdade”
que, ao longo da história foi o argumento a justificar a tortura, delações
ilegítimas e tantas outras violações). E no Brasil?
*
* *
Por
fim, mais uma indagação: em que medida, as tentativas de proibir a publicação
da edição crítica do livro “Minha luta”, de Adolf Hitler, ligam-se à vergonha
dos atores jurídicos de identificar naquela obra suas próprias opiniões? Da
mesma forma que ilegalidades não devem ser combatidas com ilegalidades, o
fascismo/nazismo não deve ser combatido com práticas nazistas/fascistas, como a
proibição de livros (aqui não entra em discussão a questão ética de buscar o
lucro a partir de uma obra nazista). Importante conhecer a história, para que
tanto sofrimento não se repita.
[1]
Por todos, vale conferir: GELLATELY, Robert. Apoiando Hitler: consentimento e
coersão na Alemanha nazista. Trad. Vitor Paolozzi. Rio de Janeiro: Record,
2011.
[2]
Todesstrafe und Zuchthaus für Anschläge und Verrat. In Völkischer Beobachter,
em 02 de março de 1933.
Por
Fernando Brito
http://tijolaco.com.br/blog/hitler-tambem-foi-visto-como-heroi-por-rubens-casara-juiz-de-direito/
Nenhum comentário:
Postar um comentário