“Forçoso
reconhecer que, neste julgamento, o STF assumiu para si a desumanização
desenfreada do sistema penitenciário. Não é à toa a perplexidade do ministro
Ricardo Lewandowski, pois em duas ações recentes (ADPF 347 e RE 592.581) a
Corte reconheceu a brutalidade do sistema prisional brasileiro e o excessivo
uso das prisões provisórias. Somam-se os informes apresentados pelo ministro
Celso de Mello, que provou com dados estatísticos que, em razão de recursos
extraordinários criminais, 25% das condenações são revertidas”, escreve Kenarik
Boujikian, magistrada no Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da
Associação Juízes para a Democracia, em artigo publicado por Viomundo,
21-02-2016.
Eis
o artigo.
O
julgamento recente do STF (HC 126292*, de 17.2.2016), que só é aplicado ao caso
que decidiu, é o mais grave ataque à Constituição Federal, portanto, ao Estado
Democrático de Direito, do qual se tem notícia.
Considero
que o foco principal deste julgamento está em um Poder de Estado, que tem a
primazia de ser o guardião da Constituição, implodir um do eixos fundantes da
República: o da divisão de poderes, prevista do artigo 2º da Constituição
Federal, catalogada como cláusula pétrea, ou seja, imutável.
Os
Poderes do Estado têm campos de atuação absolutamente delimitados, são
exercício da soberania e devem ser harmônicos entre si, para que não haja
desmandos entre eles, e nesta medida causar o rompimento do sistema
democrático.
O
STF também é responsável para que a Constituição Federal não se torne letra
morta. Tem em suas mãos a manutenção da higidez constitucional e deve fazer,
aplicando-a e interpretando-a, retirando da ordem jurídica as normas que não
são compatíveis com ela.
A
conduta do STF, no processo indicado, está muito além de uma inflexão
conservadora em relação ao principio da inocência. Tratou-se de esgarçar a
ordem constitucional, pois rompeu uma cláusula pétrea e assumiu poderes que não
possui, especificamente, o do poder legislativo.
Assim
o fez, pois pegou a caneta do Congresso e riscou parte do inciso LVII do artigo
5º: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória”. E, no lugar, colocou: “ninguém será considerado culpado
até o julgamento em 2º grau”!
Em
verdade, em temas de direitos fundamentais, nem o Legislativo pode fazer
alteração.
Grave,
muito grave. E os ministros têm plena ciência desta limitação, mas ainda assim,
foram alertados pelo vice-decano, ministro Marco Aurelio, que lembrou que o
ex-presidente do STF, ministro Cezar Peluso, atuou diante do Poder Legislativo,
para uma proposta de emenda à Constituição que tinha a finalidade de
transformar os recursos ao STF em ações rescisórias. Deste modo, indiretamente,
seria estabelecido um outro marco para o trânsito em julgado. Logo, todos
sabiam que o STF não poderia fazer por si, através de uma decisão, a interpretação/alteração
do principio de inocência.
Avançou
o STF na órbita legislativa e avançou muito mal.
Deu
uma interpretação do direito fundamental de modo a diminuir a proteção e
sabemos, pois é beabá da hermenêutica constitucional, que normas fundamentais
não podem ter leitura restritiva. O intérprete das normas fundamentais em
hipótese alguma pode diminuir o alcance da mesma.
Ainda,
em matéria de fundamentação, mais de um ministro referiu-se à expectativa
social, ao eco das vozes do povo ou coisas do tipo.
Por
Deus! Nenhum magistrado, de qualquer tribunal, pode substituir a vontade da
“polis” pelo o que ele supõe ser a voz popular.
Esta
vontade tem uma fonte, que é insubstituível, a Constituição Federal. Neste
documento, é que encontramos o que o povo brasileiro tem como expectativa de
construção da nossa sociedade, sob quais princípios, fundamentos e patamares
éticos. Não sei que vozes e vontades são essas que os ministros se referiram.
Com certeza, não se identifica a sociedade almejada pelo povo brasileiro em
outro lugar, que não na Constituição. Nenhum juiz vai buscar a vontade da
“polis”, em TV, jornal, redes sociais, pesquisas, enquetes, manifestação,
aplausos ou vaias.
Os
juízes e o Judiciário têm um vínculo de subordinação única: com o povo, nos
termos do ordenamento constitucional, democraticamente construído, pelos
constituintes originários e pelos legisladores.
Os
magistrados têm dever de lealdade à Constituição. Para exercer este papel devem
ter estofo para enfrentar a mídia, por mais difícil, doloroso e incômodo que às
vezes isto possa parecer. Caso contrário, correremos o risco de criar a
prisão-mídia; a prisão-populista, etc… tudo muito distante do papel de garantir
o estado democrático de direito.
Forçoso
reconhecer que, neste julgamento, o STF assumiu para si a desumanização
desenfreada do sistema penitenciário. Não é à toa a perplexidade do ministro
Ricardo Lewandowski, pois em duas ações recentes (ADPF 347 e RE 592.581) a
Corte reconheceu a brutalidade do sistema prisional brasileiro e o excessivo
uso das prisões provisórias. Somam-se os informes apresentados pelo ministro
Celso de Mello, que provou com dados estatísticos que, em razão de recursos
extraordinários criminais, 25% das condenações são revertidas.
A
decisão deste HC está em gritante descompasso com a história do próprio STF.
Espero
que a lição de humildade que foi dada por um magistrado de São Paulo, que
alterou sua decisão (referente à ocupação das escolas de São Paulo), alcance
todos os ministros e, assim, possamos sair, todos nós, deste estado de
perplexidade e tristeza.
Enquanto
isto, continuemos a ler e escrever o artigo 5º, inciso VII, da CF, tal como
está grafado, pois, como lembrado por um dos ministros do STF: a decisão é
exclusiva para este caso.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/551824-suprema-violencia-o-stf-assumiu-para-si-a-desumanizacao-desenfreada-do-sistema-penitenciario
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