“Um
poder judiciário forte deve estar preparado para tomar decisões consideradas
impopulares, que não agradem os reclamos moralistas e punitivistas da
sociedade”, ressalta o jurista e professor.
No
último dia 17 de fevereiro o Superior Tribunal Federal promulgou uma decisão
referente a um caso específico, mas significa uma abertura para que a medida
seja aplicada em outros processos. Trata-se da decisão que prevê a execução da
pena a partir da execução em segunda instância, ou seja, antes que o processo
seja concluído e transitado em julgado. Para o jurista e pesquisador José
Carlos Moreira da Silva Filho, a medida fere um princípio fundamental da
Constituição e se agrava quando se tem em perspectiva o contexto prisional do
Brasil.
“Passar
um dia sequer preso, tendo a sua liberdade restringida e, no caso específico do
sistema carcerário brasileiro, outros direitos básicos além da liberdade, tendo
em vista a completa falência das instituições carcerárias, é algo tão grave que
suscitou do Poder Constituinte uma questão de princípio, exposta de modo
literal no texto constitucional, e declarada cláusula pétrea, a garantia do
Habeas Corpus e a presunção da inocência”, alerta o pesquisador em entrevista
por e-mail à IHU On-Line.
Para
o professor, a medida revela uma relação perversa entre o sistema judiciário e
o midiático, onde a isenção pode sair comprometida. “Estamos assistindo a uma
guinada do sistema de justiça brasileiro de julgador para condenador, de
equidistante e imparcial, para um Poder que se articula com a mídia e com
espectros políticos bem definidos e parciais. Assistimos a uma promiscuidade
talvez nunca antes presenciada no país entre a ação da imprensa brasileira, que
vem se pautando por muitos factoides que ela mesma fabrica, e o sistema de
justiça no país, incluindo aí o Ministério Púbico”, frisa.
Em
se aplicando essa interpretação para outros processos, o horizonte que se
vislumbra continua desfavorável para os “alvos” preferenciais do sistema
judiciário no país, favorecendo a manutenção e aprofundamento das desigualdades
ao atingir “aqueles que desde sempre são selecionados pelo sistema punitivo,
sejam aqueles que serão encarcerados antes do tempo, sejam os demais que já se
encontram encarcerados em difícil situação de integridade das suas necessidades
fundamentais, que já disputam pouco espaço e estruturas que passarão a ser
ainda mais ‘concorridas’”, explica o professor.
O
pesquisador ainda constata que “tal decisão favorece o ativismo judicial,
desfavorece a integridade constitucional e fomenta esse novo/velho perfil
moralizante, midiático e justiceiro que o Poder Judiciário vem assumindo”.
Trata-se de um aspecto importante para analisar a fundo a atuação desse sistema
e a manutenção da democracia no país.
José
Carlos Moreira da Silva Filho é graduado em Direito pela Universidade de
Brasília - UnB, tem mestrado em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina - UFSC e doutorado em Direito das Relações Sociais
pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Atualmente é Vice-Presidente da
Comissão de Anistia, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e
Bolsista Produtividade em Pesquisa Nível 2 do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
Confira
a entrevista.
IHU
On-Line - De que forma o sr. avalia a decisão do STF em autorizar prisões a
partir de decisão em segunda instância?
José
Carlos Moreira da Silva Filho - Tratando especificamente da medida adotada
neste caso concreto, o do Habeas Corpus - HC nº 126.292, que poderá impactar
diretamente casos futuros a serem julgados pela Corte e pelas instâncias
inferiores, inicio mencionando que as estatísticas de acolhimento pelos
tribunais superiores dos recursos interpostos após condenação criminal em
segunda instância apontam para o índice aproximado de 25% [1].
Isto
quer dizer que cerca de 25% das pessoas que são condenadas em segunda instância
conseguem reverter este resultado quando interpõem recursos junto aos Tribunais
Superiores (Superior Tribunal de Justiça - STJ e Supremo Tribunal Federal -
STF). Caso se mantenha para casos futuros o entendimento adotado pelo STF na
fatídica tarde do dia 17 de fevereiro de 2016, o que teremos será a submissão
dessas pessoas (repito, 25% do universo de pessoas condenadas em segunda
instância) a uma provação indevida e contrária ao Direito.
Passar
um dia sequer preso, tendo a sua liberdade restringida e, no caso específico do
sistema carcerário brasileiro, outros direitos básicos além da liberdade, tendo
em vista a completa falência das instituições carcerárias, é algo tão grave que
suscitou do Poder Constituinte uma questão de princípio, exposta de modo
literal no texto constitucional, e declarada cláusula pétrea, a garantia do
Habeas Corpus e a presunção da inocência.
Alguém
poderá arguir que na prática os Tribunais de Justiça já determinam a prisão dos
réus mesmo sem o trânsito em julgado, ou seja, mesmo na continuidade do
exercício do direito de defesa com a interposição de recursos. Mas há também -
o que a decisão tomada pelo STF em 2009 no HC 84.078 exemplifica (decisão que
vinha sendo a tônica constante na jurisprudência do STF, agora contrariada pela
decisão de 17 de fevereiro de 2016) - a possibilidade de que por via de Habeas
Corpus quem foi colocado na prisão após condenação em segundo grau, mas ainda
exerce o seu direito de defesa junto aos tribunais superiores, seja posto em
liberdade até que o seu recurso seja decidido, o que se ocorrer favoravelmente
(com 25% de chances de o ser) o coloca em liberdade permanentemente.
Um
dos argumentos ventilados pelo Ministro Teori Zavascki, relator do HC 126.292,
é o de que após a segunda instância não cabem mais análises de provas e da
materialidade do fato, cabendo apenas a discussão de questões de direito. Ora,
esta separação artificial e espartana entre questão de fato e questão de
direito violenta a realidade da vida e já havia sido magistralmente denunciada
por autores de fôlego da hermenêutica jurídica, dentre os quais destaco
Castanheira Neves e Friedrich Muller [2].
Como
separar a avaliação jurídica de um fato das normas que o condicionam? O sentido
da norma depende da tessitura trazida pelos fatos concretos, não se pode
simplesmente "higienizar" um caso propondo uma análise normativa
independente do próprio caso. Eis mais um exemplo da patológica distinção entre
teoria e prática, um dos maiores males que hoje aflige qualquer processo educativo,
de pesquisa ou de construção do conhecimento. Tanto é assim que, repita-se, 25%
dos recursos que chegam aos tribunais superiores ensejam a libertação do réu.
Do
mesmo modo, é equivocado o argumento de querer justificar a execução provisória
após condenação em segunda instância, mesmo com recurso pendente para os
tribunais superiores, recorrendo a uma analogia do que determinou a lei da
ficha da limpa, visto que aqui não se trata propriamente de uma consequência de
caráter penal e de privação da liberdade, mas sim de uma condição de
elegibilidade, uma condição eleitoral. São matérias muito distintas.
“A
relativização da presunção de inocência realizada pelo STF é um mal em si”
IHU
On-Line – Essa medida pode agravar o contexto do sistema carcerário no que diz
respeito ao uso excessivo das prisões provisórias?
José
Carlos Moreira da Silva Filho – Este é outro aspecto grave que deve ser
examinado é o efeito imediato dessa decisão, caso ela venha a se consolidar,
para casos futuros. O Brasil hoje tem cerca de 600 mil pessoas encarceradas (o
terceiro país do mundo em número de pessoas presas e talvez o maior em termos
de aceleração dos índices de crescimento do encarceramento), das quais cerca de
40% estão em prisão provisória, o que mais do que exemplifica o completo abuso
desse instituto.
Isto
é, não só temos pessoas que são presas antes do trânsito em julgado de sentença
condenatória, mas também pessoas que são presas sem sequer terem sido julgadas.
Esta última situação deveria ser uma exceção relacionada aos casos de flagrante
e real necessidade da prisão provisória, no entanto, trata-se de um
procedimento banalizado e que se mantém para muito além do prazo legal máximo
estabelecido, às vezes por anos [3].
Afora
isso, qualquer pessoa minimamente informada sabe muito bem que os presídios e
celas do Brasil são verdadeiras masmorras que violam diuturnamente a legislação
de execução penal e a própria Constituição ao não garantirem aos apenados e
internos as mínimas condições de dignidade. O sistema está completamente
falido, as instalações caem aos pedaços, o crime, a violência, a ignomínia são
a moeda corrente desses lugares fétidos, insalubres e degradantes.
O
curioso é que o próprio STF reconheceu recentemente essa situação calamitosa do
sistema prisional, como se viu na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental - ADPF 347, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade - PSOL.
Não faz muito tempo, foi em setembro de 2015, que o STF, secundando a inovação
colombiana, decretou o "estado de coisas inconstitucional"
determinando medidas de intervenção orçamentária e estrutural no próprio
sistema prisional, o que resultou na exigência aos juízes da realização da
audiência de custódia e na liberação da verba do Fundo Penitenciário para a sua
finalidade precípua, sem qualquer tipo de contingenciamento.
Como
o próprio Presidente da Corte, Ricardo Lewandowski, esclarece, o “estado de
coisas inconstitucional” "foi uma medida desenvolvida pela Corte Nacional
da Colômbia a qual identificou um quadro insuportável e permanente de violação
de direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder Judiciário de caráter
estrutural e orçamentário" [4].
Diante
disso, pergunta-se: qual é a lógica em se determinar que um sistema prisional
falido, abarrotado de presos, seja ainda mais precarizado com a prisão dos
milhares de réus que hoje aguardam seu recurso de terceira instância em
liberdade? O STF que tomou a decisão no HC 126.292 não parece ser o mesmo STF
da ADPF 347. Diria que são até mesmo verdadeiras antíteses.
Mas
afora a inutilidade e o caráter brutal, violento e precário - similares ao
próprio "estado de coisas" do sistema prisional brasileiro - a que
ficam reduzidos direitos e garantias com esta decisão, está uma questão ainda
mais grave, objeto do segundo olhar que proponho na resposta a esta pergunta: o
mortal atentado à Constituição de 1988 no que ela tem de mais elevado e
democrático, perpetrado exatamente pelos que têm a missão de protegê-la como
principal razão de ser do seu ofício cotidiano.
IHU
On-Line - Como essa nova jurisprudência se relaciona com a Constituição
Federal? Que conflitos emergem?
José
Carlos Moreira da Silva Filho - Como procurei frisar antes, a relativização da
presunção de inocência realizada pelo STF, chancelando prática que vinha
anteriormente combatendo, é um mal em si. Mas agora afirmo que dentro desse mal
há ainda outro maior, e que vem se amoldando em uma cadeia de eventos que não
se iniciaram em 17 de fevereiro de 2016, mas que remontam às próprias origens
do texto constitucional e ao processo de redemocratização do país.
A
Constituição Federal de 1988, gravada simbolicamente na retina dos que foram
contemporâneos à sua promulgação com a imagem de Ulysses Guimarães erguendo-a
sob a cabeça ao som de aplausos, gritos e êxtases, traduz o marco simbólico e
legal da passagem da ditadura para a democracia, do Estado de exceção para o
Estado de Direito. Tal marco é reconhecido em seu próprio texto quando no Art.8
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determina o direito de
reparação para os que foram perseguidos políticos até a data da sua
promulgação, demarcando o instituto da anistia em sintonia com os cânones
democráticos e libertários. Por meio deste artigo, o Estado brasileiro se
reconhece devedor de uma indenização aos que outrora perseguiu, ou seja,
reconhece a ilicitude dos seus atos de perseguição e deles procura se
distanciar.
Em
muitos outros artigos da Constituição se pode reconhecer a distância
valorativa, simbólica e literal que a nova ordem constitucional quer tomar do
Estado ditatorial. Resultado de extensa e legítima mobilização social
organizada, já treinada pelos embates das lutas pela anistia nos anos 70 e
pelas diretas já nos anos 80, a nova Constituição nasce pródiga em direitos e
garantias, tanto de ordem individual quanto social, estabelecendo inclusive o
princípio da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e o
princípio da prevalência dos direitos humanos em suas relações internacionais.
A
nova Constituição inicia pelo que há de mais essencial nesse novo esforço de
fundar juridicamente uma sociedade democrática e mais igualitária: os
princípios, direitos e garantias fundamentais. Aqui reside parcela majoritária
e inegociável da identidade constitucional firmada no processo Constituinte, e
exatamente por isto ela foi blindada contra qualquer possibilidade de reforma
constitucional, estando suscetível teoricamente apenas a uma nova, legítima e
eventual Constituinte, devendo ainda observar os compromissos internacionais já
assumidos e adotados pelo Estado brasileiro. Tal blindagem é conhecida pelo
nome de "cláusulas pétreas" (Art.60, §4º), entre as quais está a
impossibilidade de reforma para diminuir ou abolir "os direitos e garantias
individuais" (Art.60, §4º, IV).
Ocupam
lugar de honra no Art.5º da Constituição (dos Direitos e Deveres Individuais e
Coletivos) os dispositivos que trazem garantias aos indivíduos diante do poder
punitivo do Estado. Tais garantias são demarcadas em diversas outras
legislações pelo mundo e em tratados internacionais de Direitos Humanos, mas no
caso brasileiro elas apontam diretamente para a experiência de arbítrio e não
contenção do poder punitivo que o país experimentou ao longo das mais de duas
décadas de regime ditatorial.
“A
casta judicial entendeu-se como instância máxima de interpretação sobre a
moralidade nacional e sobre as demandas populares, e assim se manteve na
democracia”
A
sombra da ditadura
Não
é por acaso que o grande marco do endurecimento da ditadura foi o AI-5, com a
supressão da possibilidade do Habeas Corpus para os que estavam presos acusados
de subversão. Prender sem mínimos critérios, com violência, tortura, arbítrio,
muitas vezes de modo clandestino, era prática adotada pelos agentes de segurança
e chancelada de roldão pelo Poder Judiciário brasileiro, que com as devidas
exceções postou-se passivo e conivente diante da exceção.
Em
tese de doutorado magistral defendida em dezembro do ano passado no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, Vanessa Dorneles Schinke
evidencia o alto nível de cumplicidade predominante no judiciário brasileiro
com o arbítrio, e isto em diferentes níveis, desde discursos laudatórios à
ditadura e duros com aos que a ela se opunham inseridos em suas sentenças até
as participações festivas e permanentes em cursos de formação na Escola
Superior de Guerra, em solenidades oficiais, em documentos institucionais, e
isto em todos os níveis, inclusive e especialmente nas instâncias
intermediárias e superiores.
Contudo,
o mais sintomático dessa cumplicidade se deve a um caráter quase que
estruturante do próprio funcionamento da corporação judicial no Brasil. Apegada
aos seus procedimentos, ao seu modus operandi burocrático e ao apagamento
contextual do arsenal legislativo à sua disposição, a casta judicial brasileira
evitou embates diretos com os governantes ditatoriais e com toda a ordem de
interesses sociais que por eles eram representados, considerando em suas
decisões, sem a menor cerimônia, a convivência saudável entre a Constituição de
1946, os Atos Institucionais, a Constituição outorgada de 1967 e de 1969, e
toda a legislação já existente.
Não
se via contradição lógica entre Atos Institucionais e a Constituição que
feriram de morte, não se via problema na revogação por decreto autoritário de
inúmeras normas da Constituição em vigor, mesmo as da outorgada. É como se tudo
que o Estado produzisse e envolvesse fosse um direito de fato, assumido sem
mais como fundamento jurídico de decisões judiciais.
Uma
vez ocorrida a transição democrática com a promulgação da nova ordem
constitucional, tal transição não se fez acompanhar de uma intensa, ampla e
necessária depuração institucional do passado autoritário através de mecanismos
de justiça de transição. A aplicação de tais mecanismos (comissões de
reparação, comissões de verdade, julgamento dos agentes públicos que praticaram
crimes contra a humanidade, abertura de arquivos, depurações administrativas,
reformas institucionais, políticas de memória e memorialização, entre outros)
foi tardia e parcial no Brasil e continua em franco desenrolar, sujeita a
chuvas e trovoadas.
Um
dos setores que permaneceu incólume nesse processo transicional que ainda
vivenciamos foi justamente o Poder Judiciário. Nenhum juiz foi questionado ou
denunciado por suas posições de apoio, tanto político quanto jurídico, à
ditadura e de inação diante da tortura, do arbítrio e do assassinato da
Constituição de 1946 e da ilegitimidade do poder político que passou a ser
exercido.
As
estruturas, mentalidades e simbologias permaneceram intactas, com mudanças
cosméticas que não lograram democratizar o judiciário em suas próprias
estruturas ou torná-lo mais aberto às legítimas mobilizações populares
organizadas voltadas à reivindicação de direitos e ampliação das garantias,
demandas voltadas aos objetivos constitucionais de "construir uma
sociedade livre, justa e solidária" (Art. 3º, I) e de "erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais"
(Art.3º, III).
Em
sintonia com a onipresença militar em saber o que deveria ser exigido em termos
de moralidade e desejo do povo (ainda que contra a sua própria vontade,
considerada imberbe e imatura), a casta judicial entendeu-se como instância
máxima de interpretação sobre a moralidade nacional e sobre as demandas
populares, e assim se manteve na democracia, ainda que liberta da rédea curta
que lhe impunham os ditadores e militares poderosos.
Todavia,
nada podia estar mais distante das aspirações e demandas populares que uma casta
moldada desde o Império como um enclave elitista e conservador, pouco afeita ao
reconhecimento de um protagonismo político aos movimentos sociais. O que temos
hoje é uma crescente criminalização dos movimentos sociais decretada pelo
judiciário e uma sensibilidade impressionante aos reclamos de lei e ordem,
identificados com o desespero histérico de camadas médias e altas da burguesia
nacional diante do incessante assédio aos seus bens e aos seus modos de vida,
especialmente quando operados por camadas pauperizadas e periféricas da
sociedade, que hoje abarrotam os presídios.
É
sintomático que uma das razões oferecidas pelos Ministros que votaram com o
relator no HC 126.292 foi a de se atender os reclamos da sociedade. E aí
perguntamos: como se ausculta esse hipotético reclamo social? Qual o termômetro
para medi-lo? A mídia? O senso comum? O poder superior do magistrado de agarrar
no ar o sumo da moralidade social? Alguma pesquisa de opinião? O que leva um
juiz a relativizar uma garantia constitucional expressa de modo literal e
claro, ainda mais em sede de restrição de direitos quando se sabe que prevalece
a interpretação restritiva, em nome de um reclamo social cuja densidade é
incerta, etérea, vaporosa, quase esotérica? Aqui é bom lembrar de importante crítica
formulada por Ingeborg Maus ao judiciário alemão do pós-guerra e que também
serve para o nosso caso. Disse a socióloga alemã:
“Quando
a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da
sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social - controle
ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma
de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um
direito "superior", dotado de atributos morais, ao simples direito
dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores
pré-democráticos de parâmetros de integração social." [5]
Continuando
com meu raciocínio neste segundo olhar que proponho, vejo essa decisão do STF
em paralelo com aquela que tomou na ADPF 153 em 2010, ação que foi interposta
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB para questionar a
compatibilidade da anistia concedida aos agentes da ditadura que praticaram
crimes contra a humanidade diante da nossa Constituição. Poucos meses antes de
ir a Plenário, quando o julgamento da ação já havia sido pautado, um dos
Ministros do STF, Marco Aurélio Mello, em entrevista concedida em Rede Nacional
ao repórter Kennedy Alencar, da Rede TV, afirmou que a ditadura foi um
"mal necessário". Tal declaração passou em brancas nuvens e foram
poucos os juristas que manifestaram o seu assombro diante da afirmação insólita
vinda de um Ministro da Corte guardiã da Constituição e dos seus valores.
Em
um segundo momento, já no julgamento da ADPF 153 nos deparamos com a afirmação
feita pelo Ministro Relator da ação, Eros Grau, e secundada pelo Ministro
Gilmar Mendes, de que a Constituinte que gerou a Constituição de 1988 não era
soberana, já que nasceu com uma limitação imposta pela Emenda Constitucional -
EC 26/85 em relação à anistia. O detalhe preocupante nessa tese é que a
limitação ao Constituinte seria proveniente de uma Emenda a uma Constituição
autoritária e outorgada que com ela partilha das mesmas características.
Nesse
julgamento os valores e os sentidos da Constituição de 1988 foram afrontados e
o STF simplesmente reprisou o entendimento que a própria ditadura estabeleceu
sobre o significado da Lei de Anistia de 1979 [6], isentando de qualquer
responsabilidade e apuração judicial os agentes públicos da ditadura que
protagonizaram crimes contra a humanidade contra aqueles que deveriam proteger
na qualidade de agentes públicos. Aquele acórdão, para além do seu resultado,
traz afirmações e fundamentações que já deveriam pôr de cabelo em pé a
comunidade jurídica comprometida com os valores democráticos em seu mais amplo
sentido.
Na
ADPF 153 anistiou-se simbolicamente o poder punitivo descontrolado do Estado
ditatorial em plena democracia. No HC 126.292 o poder punitivo do Estado
democrático foi ampliado e chancelado ao arrepio do que diz o Art.5º, LVII,
rompendo com uma cláusula pétrea em plena democracia, e tal qual os agentes da
ditadura que praticaram um crime de Estado contra aqueles que deveriam
proteger, os Ministros do STF praticaram um atentado frontal à integridade da
Constituição que juraram proteger.
“Não
é de hoje a abertura judicial para violentar o texto constitucional”
No
final de 2015 também já se antevia claramente a ausência de desconforto do STF
em violentar o sentido claro e expresso do texto constitucional, e
relacionando-se mais uma vez com a privação da liberdade, dessa vez de um
Senador da República.
O
Senador Delcídio do Amaral, independentemente dos malfeitos nos quais possa
estar envolvido, é um Senador eleito pelo voto popular, devidamente diplomado.
O art.53, §2º da Constituição afirma que desde a expedição do diploma os
senadores não podem ser presos, a não ser no caso de "flagrante de crime
inafiançável".
Em
seguida diz que quando ocorrer a prática de tal crime por algum Senador, os
autos serão remetidos ao Senado em 24 horas para que pela maioria de seus
membros confirme-se ou não a prisão. O grande problema é que o fato pelo qual o
Senador Delcídio foi preso não constitui a hipótese, não sendo, a meu ver, nem
flagrante e nem crime inafiançável, logo violaram a Constituição tanto o STF,
que decretou essa prisão, quanto o próprio Senado, que a confirmou.
Tal
fato é de grande gravidade em termos de integridade e respeito à Constituição e
já abre claramente o flanco para que no Brasil possa ocorrer algo parecido com
o que houve em Honduras, isto é, a deposição de um Presidente eleito pelo voto
popular por determinação judicial, com frágil amparo na ordem constitucional e
operada por funcionários públicos (sim, os juízes o são) que não foram eleitos
para determinarem em nome da vontade popular quem devem ser os seus
governantes.
Vemos,
no presente, manobras nessa direção claramente assumidas por um juiz ativista e
"guardião da moral" como Sérgio Moro e vistas com simpatia por
Ministros do Tribunal Superior Eleitoral, como Gilmar Mendes, que, por sua vez,
não poupa declarações e pronunciamentos, muitos feitos em julgamento, que
comprometem flagrantemente a imparcialidade que um magistrado, ainda mais do
STF, deve praticar.
Noto,
portanto, que não é de hoje a abertura judicial para violentar o texto
constitucional e ocupar o seu lugar por meio da sua sentença moralizante e
superior até ao próprio Constituinte. Trata-se de um processo que precisa ser
reconhecido, detectado, diagnosticado, denunciado e combatido. Uma coisa é a
Constituição ser violada por um cidadão, governante ou parlamentar, estando
todos sujeitos ao controle judicial cuja função é exatamente coibir tais
violações, outra coisa é o próprio Poder Judiciário em sua instância máxima
decidir violar uma cláusula pétrea expressa da Constituição, como ocorreu no HC
126.292, rompendo inclusive com o princípio de vedação do retrocesso em matéria
de direitos fundamentais, com sua própria jurisprudência pacificada e trazendo
evidente insegurança jurídica.
Diante
da violação explícita da nossa Constituição no que ela tem de mais essencial
(afinal se esta garantia for hoje relativizada qualquer uma pode ser), ainda
que operada pelo órgão judicial máximo do país, cabe opor o legítimo direito de
resistência, de todas as formas em que for possível. Vejo aqui um claro
paralelo com a possibilidade de desobediência civil. Mas, antes disto, é
preciso notar que tal decisão por enquanto só vale para aquele caso e que,
ademais, é passível de controle em sede judicial internacional. Fato que já
movimenta o Conselho Federal da OAB na direção de uma provocação ao Sistema Interamericano
de Direitos Humanos, e que já gerou uma condenação ao Brasil no caso Guerrilha
do Araguaia determinando que o acórdão do STF na ADPF 153 não fez o controle de
convencionalidade (ou seja, foi contrário ao Pacto de San José da Costa Rica e
à própria e copiosa jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
à qual o Brasil se submeteu de livre e soberana vontade) e que são nulas
quaisquer disposições de anistia para crimes contra a humanidade.
É
provável que se prosperar uma causa que questione a decisão tomada pelo STF no
HC 126.292 a Corte Interamericana de Direitos Humanos também condene o país e
aponte mais uma vez que o STF não realizou o obrigatório controle de
convencionalidade.
IHU
On-Line – Que questões embasam essa mudança na legislação e que objetivos elas
pretendem cumprir?
José
Carlos Moreira da Silva Filho - Não houve uma mudança na legislação, mas apenas
uma interpretação do STF que desborda, a meu ver, dos seus limites razoáveis.
Na verdade, houve uma tentativa anterior de alterar a Constituição pela via
legislativa, buscando estabelecer que o trânsito em julgado se desse após a
decisão tomada pela segunda instância, proposta defendida inclusive por um
Ex-Presidente da casa, o então Ministro Cezar Peluso.
Caso
tal proposta vingasse, penso que não haveria ofensa frontal à Constituição.
Importa entender que o trânsito em julgado acontece quando não mais é possível
qualquer outro recurso. Se o legislador assim entendesse, ele poderia diminuir
ou alterar a quantidade de recursos hoje existentes no âmbito do processo
penal, vedando, por exemplo, a via do Recurso Especial (STJ) e do Recurso
Extraordinário (STF), e alterando o momento processual no qual ocorreria o
trânsito em julgado, que neste caso seria a decisão da segunda instância.
Contudo,
tal proposta foi rejeitada pelo Poder Legislativo, que optou pela manutenção da
amplitude recursal para os que buscam se defender diante do poder punitivo do
Estado. Caso prevaleça a decisão que o STF tomou no dia 17 de fevereiro de 2016,
ficará mais do que comprovado o exercício do ativismo judicial, como se
legislador ele fosse, e, o que é pior, pelo caminho escolhido nesta decisão,
nem mesmo o legislador poderia assim determinar, visto que se trata de cláusula
pétrea.
Explicando
melhor, é possível alterar pela via legislativa o momento processual em que
ocorrerá o trânsito em julgado, mas não é possível determinar que a presunção
de inocência acabe antes que se dê o trânsito em julgado. Hoje o trânsito em
julgado só se consolida com a decisão dos recursos eventualmente interpostos
junto aos tribunais superiores, daí porque fere o Art.5º, LVII ("ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória") a execução provisória da pena antes que os recursos sejam
julgados e decididos.
Que
fins justificam a medida
Quanto
aos objetivos que medidas como essa buscam cumprir, estamos assistindo a uma
guinada do sistema de justiça brasileiro de julgador para condenador, de
equidistante e imparcial, para um Poder que se articula com a mídia e com
espectros políticos bem definidos e parciais. Assistimos a uma promiscuidade
talvez nunca antes presenciada no país entre a ação da imprensa brasileira, que
vem se pautando por muitos factoides que ela mesma fábrica, e o sistema de
justiça no país, incluindo aí o Ministério Púbico.
São
vazamentos seletivos, declarações de efeito, constantes aparições na mídia e em
grandes eventos, espetacularizações, violações de sigilos e de devidos
processos que favorecem apenas um espectro político e desfavorece o outro. O
problema não é haver ou não uma investigação, mas sim um esforço hercúleo para
condenar apenas alguns que representam o espectro político adversário, a
utilização da delação premiada de modo opressivo, com prisões indefinidas
decretadas até que o preso fale algo que se encaixe na narrativa ou na
expectativa do juiz, o que enquanto não ocorrer impede a sua libertação em
grande parte dos casos.
Tal
seletividade indica a exceção e não o Estado Democrático de Direito, pois neste
deve prevalecer a igualdade de todos perante a lei. O magistrado não deve se
comportar como um justiceiro, mas como alguém que deve julgar de modo
imparcial, mantendo reserva e distanciamento dos holofotes. A impressão que
hoje se tem da atuação jurisdicional é de um certo gosto pela tribuna
televisionada, pela entrevista no jornal, pela reportagem do noticiário. E aí
todos querem sair bem na foto.
Ora,
um poder judiciário garantista e democrático é justamente aquele que não pode
transigir diante da ofensa de direitos fundamentais e da integridade
constitucional, ainda que uma massa ignara e desconexa representada e insuflada
por orquestrações midiáticas assim o exija. Um poder judiciário forte deve
estar preparado para tomar decisões consideradas impopulares, que não agradem
os reclamos moralistas e punitivistas da sociedade. Caso perca tal condição,
não mais poderá exercer a sua função contramajoritária.
A
disposição ativista do sistema de justiça no Brasil, que não tem titubeado em
investir contra a própria Constituição e seu patrimônio simbólico, não é um problema
deste ou daquele Ministro. Notamos que mesmo juristas considerados sensíveis às
pautas de igualdade e emancipação social, conhecidos por entendimentos que
buscam a direção democrática e o discurso dos direitos humanos e da vedação do
retrocesso, como a meu ver seriam o caso de Luis Roberto Barroso e Luis Edson
Fachin, não hesitaram em relativizar o princípio da presunção da inocência no
HC 126.292, com todas as consequências que já expus antes.
“Mantém-se
o caráter centralizador, verticalizante e oligárquico da estrutura judicial no
Brasil”
O
Ministro mais veemente na defesa do princípio tal qual resta esculpido no texto
constitucional, Marco Aurélio Mello, foi justamente o mesmo Ministro que havia
afirmado em 2010 que "a ditadura foi um mal necessário". Temos
portanto um problema sistêmico que atinge o sistema de justiça desenhado na
Constituição de 1988. É forçoso reconhecer que esse mesmo desenho não trouxe
instrumentos aptos a realizarem a necessária depuração em relação ao judiciário
burocrático e opaco da ditadura. Apesar da EC 45/2004 e da criação do Conselho
Nacional de Justiça - CNJ, insuficientes por si só para dar conta da tarefa,
mantém-se o caráter centralizador, verticalizante e oligárquico da estrutura
judicial no Brasil.
Isso
pode ser constatado, por exemplo, na inexistência do sufrágio direto exercido
pelos magistrados e servidores para a escolha dos presidentes dos tribunais de
justiça; no controle dos órgãos de corregedoria pelos tribunais, conformando
uniformidades condizentes com o padrão político e ideológico adotado; na
presença diminuta de representantes das minorias sociais na composição dos
quadros (mulheres, negros, indígenas, LGBT's etc.); no controle externo
limitado, tímido, tardio, incompleto e claudicante; na ausência de critérios
que priorizem o conhecimento jurídico em torno dos direitos humanos para a
escolha dos Ministros da Suprema Corte (como ocorre em outros países como
Argentina e Bolívia).
Acrescente-se
a esse quadro o fato de que o mesmo judiciário que se arvora em guardião moral
máximo da sociedade é aquele que vem, no mais acabado formato corporativo,
defender o recebimento de auxílio-moradia para todos os magistrados, mesmo que
possuam casa própria. É o mesmo judiciário que não vê problema algum (e nisto
não estão sozinhos, já que outras carreiras públicas como Advocacia-Geral da
União - AGU e Ministério Público - MP buscam as mesmas benesses) em receber
diversas "verbas indenizatórias" que, somadas ao já alto salário,
produzem o efeito prático da superação dos valores estabelecidos pelo teto
constitucional (muitas vezes triplicando ou mais o valor já alto do teto), e
sem que sobre tais verbas, já que "indenizatórias", recaia sequer a
incidência do Imposto de Renda.
IHU
On-Line - A partir dessa decisão do STF, como passa a se situar na legislação o
princípio da presunção de inocência? Não há um choque entre essas duas medidas?
José
Carlos Moreira da Silva Filho - Na decisão tomada pelo STF no HC 126.292 não
houve a declaração de inconstitucionalidade do Artigo 283 do Código de Processo
Penal. O artigo diz o seguinte: “ninguém será preso senão em flagrante delito
ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em
decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da
investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão
preventiva”. Assim, se tal dispositivo do Código de Processo Penal não foi
declarado inconstitucional, ele vale. A legislação, portanto, só prevê duas
hipóteses na qual está facultada a prisão antes do trânsito em julgado de
sentença penal condenatória: prisão temporária ou prisão preventiva. Tal
circunstância torna ainda mais anômala e incompreensível a decisão tomada pelo
STF no dia 17 de fevereiro de 2016.
IHU
On-Line – Em que medida essa decisão pode resolver o problema da impunidade,
conforme alega a maioria dos juristas que votaram a favor desta medida?
José
Carlos Moreira da Silva Filho - Penso que de nenhum modo. Em primeiro lugar,
penso que o problema da impunidade no Brasil é mal dimensionado por declarações
como esta e frequentemente pelas coberturas midiáticas e policialescas do tema.
Temos um sistema penal que é seletivo, que no seu funcionamento, por diversas
razões, desde a formação policial até a atuação judicial e a cumplicidade dos
demais poderes instituídos, privilegia o perfil do jovem negro, pobre e
periférico (basta visitar os presídios).
O
sistema tem optado em seu funcionamento pelo encarceramento em massa desse
perfil. Já somos hoje o terceiro país do mundo em número de encarcerados, sendo
que, como já assinalado, cerca de 40% desse universo são prisões provisórias.
Diante desse quadro, quando se diz que no Brasil campeia a impunidade é preciso
no mínimo explicar melhor o que se quer dizer. Analisando os tipos de crimes
dos que estão presos hoje no Brasil, nota-se, segundo dados do Sistema
Integrado de Informações Penitenciárias - InfoPen divulgados no ano passado
pelo Ministério da Justiça, que apenas 14% dos encarcerados ali estão pela
prática de homicídio, sendo que a maior porcentagem dos crimes é o de tráfico
de drogas (27%), seguido pelo de roubo (21%).
Evidencia-se
uma clara opção política pela punição e combate ao crime de tráfico de drogas e
a crimes contra o patrimônio, opção que apenas timidamente vem sendo
questionada, deixando-se em segundo plano os crimes de homicídio. De outro
lado, percebemos que os chamados crimes de colarinho branco não chegam a 1% do
universo de presos (e quando assumem alguma proeminência midiática, como se
notou no caso da Ação Penal - AP 470 e vem se notando na Operação Lava-Jato, o
sistema continua a ser seletivo, fechando os olhos para os espectros políticos
protegidos e muitas vezes forçando condenações e prisões de indivíduos
vinculados aos espectros políticos demonizados).
Também
é importante frisar que os agentes públicos que praticaram crimes contra a
humanidade durante a ditadura simplesmente nunca foram sequer investigados.
Nota-se nisto uma proximidade macabra com o atual baixíssimo índice de
policiais condenados pela prática de tortura ou homicídio, ainda que tal
prática seja apontada como elevada em diversos relatórios de Direitos Humanos.
Concluo
dizendo que existe impunidade, sim, no Brasil, mas voltada para aqueles que são
selecionados pelo sistema para não serem por ele atingidos, e que incluem aí os
piores crimes, como os crimes contra a humanidade. E, como o impressionante
aumento das taxas de encarceramento conjugado com o estado deplorável das
cadeias brasileiras vem nos aconselhando, precisamos urgentemente investir em
políticas desencarcerizantes. Temos que conquistar a consciência de que o
sistema penal não é solução para os problemas sociais, de que a principal e
mais eficiente forma de combate à violência não deve ser o emprego de mais
violência, e de punições que nem sequer estão de acordo com o Direito, como
ocorre no confinamento em celas insalubres abarrotadas de pessoas que por vezes
não têm nem mesmo um lugar no chão para dormirem deitadas.
A
saída é a prevenção, a conquista da igualdade material, a educação e a
construção de uma sociedade mais solidária, participativa e inclusiva, restando
o sistema penal para os casos mais extremos e excepcionais, se é que não podem
ser tratados de outro modo.
IHU
On-Line - Como essa decisão impacta os diversos setores e estratos sociais?
Quais devem ser os mais atingidos pela mudança?
José
Carlos Moreira da Silva Filho - Importante relembrar que a decisão tomada pelo
STF no HC 126.292 só vale para aquele caso concreto, mas indica uma
possibilidade preocupante para o futuro. Caso venha a prevalecer este
entendimento para casos futuros, os mais impactados serão aqueles que desde
sempre são selecionados pelo sistema punitivo, sejam aqueles que serão
encarcerados antes do tempo, sejam os demais que já se encontram encarcerados
em difícil situação de integridade das suas necessidades fundamentais, que já
disputam pouco espaço e estruturas que passarão a ser ainda mais
"concorridas". E de modo mais amplo, tal decisão favorece o ativismo
judicial, desfavorece a integridade constitucional e fomenta esse novo/velho
perfil moralizante, midiático e justiceiro que o Poder Judiciário vem
assumindo.
“Os
mais impactados serão aqueles que desde sempre são selecionados pelo sistema
punitivo”
IHU
On-Line – Alguns pesquisadores entendem que a decisão do STF não fere a
democracia e alegam que o Brasil estaria seguindo um padrão internacional a
partir dessa medida. De que maneira o senhor avalia esse posicionamento?
José
Carlos Moreira da Silva Filho - Respeito muito o importante trabalho que o
jurista que emitiu tal opinião, Oscar Vilhena, vem realizando junto à
organização não governamental Conectas, mas considero lamentável essa
declaração. Quando o tema do qual estamos tratando são os direitos
fundamentais, o país deve estar afinado com as suas garantias e direitos
constitucionais na matéria e com as orientações presentes em tratados
internacionais de direitos humanos, especialmente aqueles que ratificou e
aprovou internamente.
O
fato de um outro país, como os Estados Unidos, adotar um parâmetro diverso para
o princípio da presunção da inocência guarda importância infinitamente menor
para nós do que aquilo que a nossa Constituição estabelece como cláusula pétrea
e que é reforçada por diferentes tratados internacionais, dentre os quais se
destaca o próprio Pacto de San José da Costa Rica, ao qual o país aderiu. Oscar
Vilhena, em sua entrevista, indica a possibilidade de que o decidido pelo STF
pudesse ser obtido pela via preferível de uma Emenda Constitucional (hipótese
que não creio ser possível diante da existência de cláusulas pétreas), mas que
mesmo não ocorrendo não chegaria a ferir a democracia.
Neste
ponto discordo veementemente sem possibilidade de contemporização. Para mim,
não se trata de avaliar a adequação ou oportunidade da medida em si (que acho
bem questionável como esclareci antes), mas, acima disso, de zelar pela
integridade constitucional, o que implica no respeito incondicional aos
direitos e garantias fundamentais da Constituição, blindados por cláusula
pétrea. Acho triste e preocupante, pré-democrático, que juristas conhecidos
pela defesa dos direitos humanos e juízes que deveriam proteger a Constituição
façam pouco caso dos limites inquestionáveis da reforma constitucional. E isto,
sim, fere a democracia!
Por
Leslie Chaves
Notas:
[1]
Ver detalhamento dessas estatísticas em pesquisa realizada pela FGV no site:
http://direitorio.fgv.br/projetos/habeas-corpus-nos-tribunais-superiores
[2]
Ver: MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria
constitucional, I. Tradução de Peter Naumann. Porto Alegre: SAFE, 1995; MÜLLER,
Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2.ed. Tradução de
Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000; NEVES, A. Castanheira. Metodologia
jurídica – problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993; NEVES, A.
Castanheira. Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico
da juridicidade. Coimbra: Almedina, 1967.
[3]
Neste sentido, ver pesquisa coordenada pelo Prof. Rogerio Dultra dos Santos da
UFF sobre excesso de prisão provisória no Brasil, apoiada pelo projeto
"Pensando Direito" da Secretaria de Assuntos Legislativos do
Ministério da Justiça, divulgada em 2015.
[4]
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299385
[5]
MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade - o papel da atividade
jurisprudencial na "sociedade orfã". Tradução de Martonio Lima e
Paulo Albuquerque. Novos Estudos, n.58, p.183-202. nov. 2000.
[6]
Mais detalhes nessa linha sobre a incompatibilidade do acórdão produzido na
ADPF 153 com a Constituição de 1988 e com os Tratados e a jurisprudência
internacional de Direitos Humanos, ver os capítulos 3 e 10 do meu livro: SILVA
FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de Transição - da ditadura civil-militar
ao debate justransicional - direito à memória e à verdade e os caminhos da
reparação e da anistia no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/551922-poder-judiciario-viola-a-constituicao-e-expoe-sua-face-justiceira-aos-holofotes-da-midia-entrevista-especial-com-jose-carlos-moreira-da-silva-filho
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