Para
presidente do IBCCRIM, decisão do STF de autorizar prisões após condenação em
2ª instância tem base em ideias de regimes totalitários
por
Débora Melo
A
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar prisões após condenações
em segunda instância é uma “esquizofrenia” que vai contra a literalidade do
texto da Constituição de 1988. Da mesma forma, muitas das propostas
apresentadas pela campanha "10 Medidas Contra a Corrupção", do Ministério
Público Federal, representam um "retrocesso punitivista" para o País.
Essa é a opinião de Andre Kehdi, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (IBCCRIM).
No
último dia 17, os ministros Teori Zavascki, Luiz Edson Fachin, Luís Roberto
Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lucia e Gilmar Mendes contrariaram
entendimento fixado pelo próprio STF em 2009 e decidiram que o condenado pode
ser preso mesmo que ainda tenha direito a recurso. Os ministros Rosa Weber,
Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e o presidente do Supremo, Ricardo
Lewandowski, mantiveram o entendimento de 2009, mas foram vencidos.
O
voto que sugeriu a alteração da jurisprudência foi proferido pelo ministro
Zavascki, que também é relator de processos da Operação Lava Jato. Em entrevista
a CartaCapital, o presidente do IBCCRIM disse que os ministros podem ter se
“curvado” à pressão da opinião pública.
De
acordo com Kehdi, o argumento de que a presunção da inocência é quebrada após
condenações de segunda instância, usado pelos ministros, é um argumento de
cunho fascista. “A escola italiana já afirmava que o discurso da presunção de
inocência era vazio, era absurdo. Ver que esse argumento agora foi vencedor no
Supremo causa grande receio. É o retorno, ainda que parcial, de ideias próprias
de regimes totalitários”, afirmou.
Leia,
abaixo, os principais trechos da entrevista:
CartaCapital:
O senhor vê algum paralelo entre a decisão do Supremo e a campanha contra
corrupção do Ministério Público?
Andre
Kehdi: Evidente que sim. A decisão do Supremo, assim como as “dez medidas”, vem
no sentido de reduzir os direitos individuais, de atacar direitos que estão
previstos na Constituição. É um retrocesso medonho. Em seu artigo 5º, inciso
LVII, a Constituição diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória”. O trânsito em julgado é o momento em
que a decisão se torna definitiva, imutável, do ponto de vista processual. A
literalidade do texto é gritante.
Entre
as medidas propostas pelo Ministério Público está uma emenda constitucional que
permitiria que os acusados fossem presos antes do trânsito em julgado, após a
decisão de segundo grau. Ou seja, o próprio MP entende que a configuração atual
da Constituição Federal não permite o que o Supremo acabou de fazer, o que
revela o nível de absurdo que foi essa decisão.
Na
minha opinião, a mudança também não poderia ser feita por emenda
constitucional. Os direitos individuais são cláusulas pétreas e não podem ser
alterados. Se amanhã houver uma revolução e o pessoal resolver rasgar a
Constituição, poderão fazer outra. Mas, gostemos ou não, foi essa a opção
constitucional de 1988.
CC:
A decisão do Supremo pode ter sido influenciada pelo impacto da Operação Lava
Jato?
AK:
É importante dizer o seguinte: o Supremo sempre se marcou por ter coragem de
tomar decisões que eram vistas com maus olhos pela “opinião publicada” – não
pela opinião pública, que é muito difícil saber qual é. O STF sempre tomou
decisões que não necessariamente agradavam a maioria da população, e é natural
que uma Corte que cuida da Constituição faça isso. Então, se 99% da população
decidir que todas as mulheres têm que usar burca na rua, a Constituição impede
que isso aconteça.
O
Supremo Tribunal Federal não é porta-voz da população, ele é guardião da
Constituição. Mas ideias fascistas estão vindo à tona. Vamos eleger um inimigo
e fazer um tipo de processo diferente para ele, um processo menos garantista,
sem tantas barreiras. Estamos jogando no lixo diversos dos nossos direitos em
nome de uma caça às bruxas que está sendo tocada.
CC:
Luiz Fux disse que “a sociedade não aceita mais a presunção de inocência de uma
pessoa condenada que não para de recorrer”. Já Luís Roberto Barroso disse que a
presunção de inocência se desfaz após condenações em primeira e segunda
instância. O que o senhor acha desses argumentos?
AK:
O discurso do ministro Fux apequena a instituição do Supremo Tribunal Federal
e, ao mesmo tempo, ignora seu papel de guardião do pacto civilizatório, que é a
nossa Constituição. É muito grave que se condicione o exercício de direitos
fundamentais, ou seja, cláusulas pétreas da Constituição, à aceitação da
sociedade.
O
argumento do ministro Barroso não é novo. É uma repetição daquele que ganhou
destaque na Itália da década de 20 do século passado, na Itália fascista do
Mussolini. A escola técnico-jurídica italiana já afirmava que o discurso da
presunção de inocência era vazio, era absurdo. O código italiano de processo
penal, de 1930, foi a base para o nosso código de processo penal, de 1941. E
foi uma base sabidamente fascista, que vem aos poucos sendo reformada, seja por
decisões anteriores do STF, seja por leis pontuais. Ver que esse argumento
agora foi vencedor no Supremo causa grande receio. É, de certa forma, o
retorno, ainda que parcial, de ideias próprias de regimes totalitários,
totalmente avessas ao espírito da nossa Constituição Federal.
CC:
Os ministros podem ter se sentido pressionados de alguma forma?
AK:
Os ministros, aparentemente, decidiram curvados à "opinião
publicada". Fiquei com a impressão de que eles decidiram acuados, para
sentir que teriam sua decisão acolhida. Agora a gente vê o Supremo e o STJ tão
conservadores quanto muitos dos nossos tribunais inferiores.
Em
outros tempos, quando eles exerciam efetivamente o papel de guardiões da
Constituição e das leis, eram achincalhados por fazê-lo, porque muitas vezes a
população não entendia que um acusado tinha que responder ao processo em
liberdade. Mas antes os ministros tinham a coragem de defender a Constituição
acima de tudo. Com essa decisão, o receio é de uma derrocada dos direitos que
levamos séculos para conquistar.
CC:
Também houve o argumento de que, em outros países, há apenas dois graus de
jurisdição. A comparação é válida?
AK:
Nos Estados Unidos, por exemplo, quando há condenação em primeiro grau, a
pessoa, em geral, sai presa. É isso o que a gente quer? Os Estados Unidos são o
país que mais encarcera no mundo, estão com mais de 2,4 milhões de presos. A
imensa maioria dos presos deles, assim com a nossa, é de pessoas negras. E eles
sabem da falha do sistema deles, os erros judiciários são muitos. Aqui no
Brasil, mesmo existindo a presunção de inocência, é possível responder ao
processo preso, por medida cautelar. Isso não só é normal como é praticamente
regra no País, onde mais de 40% dos presos não foram sequer condenados.
Comparar
é interessante, mas a nossa opção está feita. Temos que respeitar a nossa
Constituição. Se o próprio ministro da Justiça reconheceu que nós temos prisões
medievais, porque vamos continuar insistindo nisso? Se o próprio CNJ está
sustentando o projeto das audiências de custódia para tentar prender menos
gente, por que vamos decidir que as pessoas devem ser presas antes do trânsito
em julgado da condenação, contra o texto literal da Constituição? É uma coisa
esquizofrênica.
CC:
Quais são as outras consequências da decisão, fora o aumento da população
carcerária?
AK:
Em primeiro lugar, o recado de descrédito da Constituição: se o Supremo decide
contra a literalidade do seu texto, se ele pode retroceder em sua
interpretação, o recado para o resto do Judiciário é grave e pode gerar um
maior desrespeito ao devido processo legal do que aquele que, estarrecidos, já
verificamos com grande frequência nas instâncias inferiores, especialmente
contra os pobres.
Em
segundo lugar, os erros judiciários, que não são poucos, podem aumentar.
Estatísticas mostram que alguns tribunais estaduais desrespeitam
sistematicamente as posições das Cortes superiores. Deixar que a pena seja
cumprida antes que a questão seja decidida no STJ ou no STF é aumentar o número
de erros irreparáveis praticados pelo Estado contra nós, os cidadãos.
CC:
Sobre as dez medidas contra a corrupção, o que mais preocupa?
AK:
Existe uma campanha de marketing por trás das dez medidas, uma campanha de
marketing pesada. Preocupa que elas sejam vendidas como medidas contra a
corrupção. A corrupção foi eleita o inimigo da vez, então é fácil vender
medidas de alteração legislativa como medidas contra a corrupção. Quem não é
contra a corrupção, afinal? A pegadinha é que 99% das propostas alteram diversas garantias
processuais que serão incidentes em todos os processos penais.
Então,
a pretexto de recrudescer o combate à corrupção, uma parte do Ministério
Público Federal - é importante dizer que essa não é uma campanha de todos os
promotores do Brasil - propõe medidas que recrudescem o sistema legal inteiro,
num País que tem superlotação, que tem violação de direitos humanos de toda
ordem. De forma temerária, propõem-se medidas que têm por consequência
evidente, se forem levadas à frente, o aumento da taxa de encarceramento do
País. Consciente ou inconscientemente, é isso que elas vão alcançar.
CC:
O que de fato poderia combater o desvio de dinheiro público?
AK:
As nossas instâncias de controle administrativo não dão conta de fiscalizar
tudo o que a gente faz. O TCU é um órgão que faz apurações profundíssimas,
geralmente melhores do que as da Polícia Federal, mas não tem perna para
acompanhar tudo e, muitas vezes, só vê a coisa quando ela já aconteceu. Depois
que a corrupção aconteceu a gente corre atrás do prejuízo: pega o dinheiro de
volta, quando é possível, e, na nossa lógica punitiva, prende as pessoas.
O
Brasil adotou a lei dos crimes hediondos em 1990. Isso reduziu a criminalidade
no País, evitou a prática de homicídios? Não evitou. Uma punição maior não
necessariamente leva a uma redução da criminalidade. Então, quando se propõe o
aumento da pena de corrupção para patamares astronômicos, não haverá diminuição
da corrupção. Sistemas de controle mais eficientes das verbas públicas, isso
sim reduziria a corrupção. Mas isso a gente não faz, ou faz em pequena medida.
E acha que o direito penal vai resolver. Mas não vai resolver.
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