A
aquisição de imóveis na planta é o modo mais utilizado no Brasil para a compra
de residências novas no Brasil e ganhou ainda maior dimensão e relevância em
razão de políticas habitacionais que subsidiam o empréstimo para compra de
imóveis por parte da população de menor renda, em especial o programa Minha
Casa, Minha Vida[1].
A
posição do consumidor é de intensa vulnerabilidade, em razão da complexidade do
contrato e do fator emocional, uma vez que normalmente a aquisição da casa
própria representa a realização do grande sonho de sua vida. Neste contexto os
incorporadores encontram terreno fértil para práticas e cláusulas abusivas,
dentre as quais a transferência aos adquirentes de custos do incorporador com
terceiros, a cujo pagamento o consumidor se submete sem maiores discussões, já
que do contrário a compra e venda não seria realizada.
Analiso,
assim, a licitude da imposição ao consumidor do pagamento do Serviço de
Assessoria Técnico Imobiliária (Sati) e da comissão de corretagem, tema que se
encontra sob apreciação do Superior Tribunal de Justiça[2]. Abordo também a
validade da cláusula que determina que o consumidor deva arcar com despesas de
condomínio antes da entrega das chaves e consequente posse no imóvel.
Aplicação
do Código de Defesa do Consumidor
A
aplicação do Código de Defesa do Consumidor na compra de imóveis residenciais
na planta é bastante clara, uma vez que o adquirente é o destinatário final
fático e econômico, enquadrando-se, assim, no conceito de consumidor, nos
termos da teoria finalista.
Por
outro lado, o incorporador que impulsiona o empreendimento imobiliário e
realiza a alienação das unidades residenciais será sempre considerado
fornecedor, pois se enquadra com perfeição na dicção do artigo 3º do Código de
Defesa do Consumidor, uma vez que é o responsável pela construção e
comercialização do imóvel adquirido pelo consumidor. É este, inclusive, o
posicionamento adotado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.[3]
Imposição
de pagamento do Sati
A
imposição do pagamento de despesa com a prestação do Serviço de Assessoria
Técnico-Imobiliária (Sati) é extremamente comum no mercado de venda de imóveis
na planta. Após a finalização da negociação, no momento da celebração do
contrato, o consumidor é surpreendido com a exigência do pagamento de um
significativo valor extra, não inserido no preço do imóvel, a título de
remuneração pela confecção do contrato e demais serviços jurídicos necessários
à celebração da avença. A contratação do Sati é feita ao arrepio da vontade do
consumidor, a quem não é dada a oportunidade de dispensá-la. Muito pelo
contrário, é obrigado a pagar a despesa, sob pena de não ser concretizada a
alienação do imóvel. Há nítida afronta aos artigos 6º, inciso III e 31 do
Código de Defesa do Consumidor, em razão da ausência de informação prévia
quanto à prestação do serviço e sua cobrança, constituindo violação da boa-fé
objetiva surpreender o consumidor com tal cobrança no momento da finalização do
contrato[4].
Ainda
que houvesse informação, permaneceria inválida a imposição do pagamento do
Sati, dado o seu caráter abusivo, uma vez que tais custos devem ser arcados
exclusivamente pelo fornecedor. Com efeito, o principal serviço prestado é a
confecção do contrato de compra e venda, que possui um formato padronizado, no
qual são preenchidos os dados do consumidor, da unidade comercializada, além do
preço final e sua forma de pagamento.
O
consumidor defronta-se com típico contrato de adesão, na medida em que suas
cláusulas são redigidas de acordo com as diretrizes fixadas pelo incorporador,
tratando-se, assim, da hipótese prevista no artigo 54 do Código de Defesa do
Consumidor. Não é razoável que se transfira ao adquirente a responsabilidade de
pagar pela confecção de um contrato de adesão, em relação ao qual não possui a
oportunidade de negociar as suas cláusulas!
Ademais,
não é o consumidor que escolhe a empresa prestadora do Sati, mas sim o
incorporador. Inclusive, ela normalmente pertence ao mesmo grupo da pessoa
jurídica que coordena o processo de venda dos imóveis, o que reforça a
assertiva de que os seus serviços são direcionados à satisfação dos interesses
do fornecedor.
Enfim,
trata-se de contratação de serviço imposta ao consumidor, por profissional que
não foi por ele escolhido e cujo resultado final de maior relevância – o
contrato de compra e venda — resulta em proveito, sobretudo, do fornecedor, por
ter a natureza de adesão.
Portanto,
a dinâmica da “contratação” do Sati revela a presença da venda casada, prática
considerada abusiva pelo artigo 39, inciso I do Código de Defesa do Consumidor,
na medida em que a aquisição do imóvel é condicionada à contratação de um
serviço cujo prestador é imposto pelo fornecedor.
Transferência
ao consumidor do pagamento da comissão de corretagem
Outra
prática recorrente dos incorporadores na venda de imóveis na planta é a
imposição ao adquirente do pagamento da comissão de corretagem, cuja
abusividade fica clara através da análise conjunta das normas do Código Civil e
do Código de Defesa do Consumidor.
O
primeiro aspecto a ser salientado é o vício de informação, uma vez que o
consumidor não é previamente informado que terá que arcar com tal despesa. No
momento da finalização do negócio é surpreendido com a notícia de que deverá
efetivar o pagamento da comissão, sendo-lhe simplesmente apresentado o valor a
ser adimplido. A ausência de informação prévia ao adquirente viola os artigos
6º, inciso III e 31 do Código de Defesa do Consumidor.
Porém,
mesmo que o consumidor tivesse sido previamente informado seria inválida a
imposição de tal pagamento, por desvirtuar a natureza do instituto da
corretagem, que é disciplinado pelo artigo 722 do Código Civil nos seguintes
termos: “Pelo contrato de corretagem, uma pessoa, não ligada a outra em virtude
de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência,
obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as instruções
recebidas”.
Assim,
a figura clássica da corretagem de imóvel pressupõe uma contratação prévia
(escrita ou verbal) de uma pessoa (jurídica ou física) sem ligação com a outra
(seja na qualidade de mandatário, prestador de serviço ou com qualquer relação
de dependência).
Já
a dinâmica da venda de imóveis na planta envolve a contratação pelo
incorporador de uma imobiliária para coordenar todo o processo de vendas do
imóvel, no qual, normalmente, há a montagem do estande de venda que será o
principal local de captação dos adquirentes, com a utilização adicional de
outros pontos de contato, como a página eletrônica da imobiliária e os seus
escritórios e centrais telefônicas. Os corretores que atenderão o adquirente
são exclusivamente aqueles indicados pela empresa contratada pelo incorporador.
Há, assim, uma nítida relação preestabelecida entre o vendedor, a imobiliária e
os corretores.
É
evidente que não é o consumidor que contrata o serviço de corretagem, mas sim o
incorporador. Assim, a relação descrita no artigo 722 do Código Civil é
estabelecida entre o incorporador e os corretores, sendo abusiva a conduta de
transferir a responsabilidade pelo pagamento da respectiva comissão ao
consumidor.
Reforça
a pertinência de tal conclusão o fato do preço a ser pago a título de comissão
de corretagem não ser definido pelo consumidor, mas sim ser fruto de prévio
acordo do vendedor com a imobiliária, que combinam o percentual que será
cobrado do consumidor.
Assevere-se
que o Superior Tribunal de Justiça já firmou jurisprudência no sentido de que
deve arcar com o pagamento da comissão de corretagem a parte que efetivamente
contrata o corretor de imóveis para que este obtenha negócios de acordo com as
instruções recebidas[5].
É
o incorporador quem previamente contratou a empresa coordenadora da venda e os
seus respectivos corretores devendo, consequentemente, ser o responsável pelo
pagamento da comissão sobre a venda dos imóveis. Tal responsabilidade não pode
ser transferida ao consumidor, que não optou pela intermediação, não escolheu o
corretor e não negociou o preço.[6]
Ademais,
ao condicionar a alienação do imóvel ao pagamento da comissão de corretagem
pelo consumidor, o incorporador incide em prática abusiva enquadrada como venda
casada nos termos do artigo 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor[7].
Encargos
condominiais antes da entrega das chaves
Finalizo
o artigo destacando a abusividade de cláusula que costuma ser inserida nos
contratos de compra e venda de imóveis na planta, estipulando caber ao
consumidor a responsabilidade pelo pagamento das despesas de condomínio, mesmo
que não lhe seja dada posse efetiva do imóvel.
Muitas
vezes a incorporadora não entrega as chaves do imóvel após instalado o
condomínio, exigindo, no entanto, que o consumidor pague as respectivas despesas.
Isto ocorre, por exemplo, quando há problemas relacionados com a unidade
adquirida, como acabamento incompleto ou falhas, que impedem a entrega das
chaves até a sua completa execução. Outra hipótese comum é a demora no
agendamento de vistoria no imóvel, por ter a incorporadora destinado
insuficiente número de funcionários para tal função.
Mas
o maior problema incide em exigências burocráticas de algumas incorporadoras,
como por exemplo, o condicionamento da posse no imóvel à lavratura da escritura
da unidade e seu respectivo registro. Para que isto ocorra há necessidade de
elevado transcurso de tempo, principalmente nas hipóteses em que para a
quitação da unidade o consumidor depende de financiamento, cujo processo
somente pode ser iniciado com a entrega do habite-se e demanda alguns meses
para ser finalizado. E muitas vezes a construtora tarda a enviar a documentação
necessária, atrasando a disponibilização do empréstimo. Sem contar que a
lavratura da escritura e seu respectivo registro consomem cerca de um mês
adicional.
Não
obstante, é prática comum a inclusão de cláusula contratual estipulando que o
consumidor tem a obrigação de pagar as despesas de condomínio a partir da
concessão do habite-se e instalação do condomínio, ainda que as chaves não lhe
tenham sido entregues.
Ocorre
que tais encargos estão intimamente relacionados com o uso do imóvel e sem a
posse não há utilização pelo consumidor que justifique o pagamento das
despesas. Assim, enquanto o alienante não der posse ao adquirente, deve suportar
o pagamento dos respectivos encargos.
O
Superior Tribunal de Justiça já firmou a tese de que a “a efetiva posse do
imóvel, com a entrega das chaves, define o momento a partir do qual surge para
o condômino a obrigação de efetuar o pagamento das despesas condominiais”[8].
Portanto,
é abusiva a cláusula que impõe ao adquirente pagar as despesas condominiais
antes da sua efetiva posse no imóvel, por gerar uma exagerada desvantagem ao
adquirente e contrariar a natureza do contrato, sendo, assim, nula de pleno
direito nos termos do artigo 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor.
[1]
Nos termos do artigo 1º da Lei n. 11.977/09, o Programa Minha Casa, Minha Vida
- PMCMV tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição
de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção
ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$
4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais).
[2]
Estes dois assuntos são objeto de análise do Superior Tribunal de Justiça no
Recurso Especial n. 1551956, da Terceira Turma, cujo relator é o Ministro Paulo
de Tarso Sanseverino, ao qual foi atribuída a natureza de recurso repetitivo e,
assim, uma vez julgado pela Segunda Seção do STJ, a tese adotada servirá para
orientar a solução de todas as demais causas com o mesmo objeto.
[3]
Ver, dentre outros precedentes: AgRg no REsp 1006765 – Rel. min. Ricardo Villas
Bôas Cueva – 3ª T. - j. em 18.03.2014. Transcrevo o seguinte trecho elucidativo
do posicionamento do tribunal: “2. Em que pese o contrato de incorporação ser
regido pela Lei nº4.591/64, admite-se a incidência do Código de Defesa do
Consumidor, devendo ser observados os princípios gerais do direito que buscam a
justiça contratual, a equivalência das prestações e a boa-fé objetiva,
vedando-se o locupletamento ilícito”.
[4]
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vem reconhecendo
a falha no dever de informação adequada, apta a infirmar a validade da
imposição no pagamento do SATI. Ver, a propósito: Apelação nº
152536-70.2012.8.26.0100 – Rel. Des. Élcio Trujillo – 10ª Câmara de Direito
Privado – j. em 28/05/2015.
[5]
Recurso Especial 1.288.450 – rel. min. João Octávio Noronha – 3ª Turma – j. em
24.02.2015. Transcrevo os seguintes trechos da ementa: “1. Contrato de
corretagem é aquele por meio do qual alguém se obriga a obter para outro um ou
mais negócios de acordo com as instruções recebidas. 2. A obrigação de pagar a
comissão de corretagem é daquele que efetivamente contrata o corretor”.
[6]
Há inclusive, precedente do Superior Tribunal de Justiça que negou seguimento a
recurso especial interposto contra acórdão que reconhecera como abusiva a
imposição feita ao consumidor de pagar comissão a corretor cuja contratação foi
realizada diretamente com as incorporadoras imobiliárias, sem ter havido prévia
negociação entre as partes: AREsp 350052 – Rel. min. Sidnei Benetti – decisão
monocrática – DJ de 08/08/2013.
[7]
Há diversos acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgando
abusiva a transferência das despesas de corretagem. Dentre eles destaco:
Apelação nº 1003177-27.2015.8.26.0196 – Rel. Des. José Rubens Queiroz Gomes –
7ª Câmara de Direito Privado – j. em 18/01/2016. Transcrevo o seguinte trecho
de sua ementa: “Irregularidade do repasse ao consumidor de valores atinentes à
despesa com corretagem. Contrato de adesão. Imposição como condição a que possa
consumar a compra do imóvel. Venda casada. Artigo 39, I, do CDC”.
[8]
EREsp 489647, 2ª Seção, Rel. min. Luis Felipe Salomão, DJe 15/12/2009.
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2016-fev-17/garantias-consumo-cobrancas-indevidas-atormentam-quem-compra-imoveis-planta
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