O
combate à corrupção, em todos os níveis nos quais se manifeste, deve ser levado
a cabo com a exemplar punição de seus agentes, onde quer que se acastelem,
independentemente da cor do colarinho. Esta obviedade não é objeto de
questionamento nem mesmo pelos defensores dos acusados mais notórios.
A
ação apuradora-punitiva, porém, salta dos trilhos de seus objetivos éticos e
constitucionais quando instrumentaliza perversa e impatriótica campanha
midiática voltada para a desmoralização da política, sem a qual – é preciso
dizer mil vezes e mil vezes repetir para quem não sofreu os idos da última
ditadura – a democracia não sobrevive.
Como
não sobreviveu a liberdade de imprensa (requisito da democracia) quando se
instalou em 1964 a ditadura militar, pleiteada e aclamada e sustentada e defendida
pela grande mídia, a de então, que é a mesma de hoje, em sua essência.
As
ações de combate à corrupção, são, presentemente, instrumentalizadas pela
imprensa e pelos setores partidários derrotados em 2014 com vistas a
desestabilizar o governo constitucional e fragilizar a economia brasileira, de
si abalada, e mais abalada pela crise internacional (em crescendo desde 2008),
que nos acena com uma crise similar ou superior à de 1929.
Com
o agravamento da crise econômica interna objetiva-se agravar a crise política
(a crise permanente, a crise alimentada, a crise política que alimenta a crise
econômica, a crise econômica potencializando a crise política) e, assim, levado
às cordas, o governo, condenado à paralisia mortal, passa a carecer de meios para
enfrentar como deveria a desaceleração da economia que sugere a crise social
para um amanhã cuja data de chegada ninguém pode precisar.
Conspira-se
contra o País, no curto prazo planta-se o caos, como se esse não fosse o fiador
dos anos futuros.
Uma
vez mais é necessário recorrer ao óbvio, desta feita lembrando que o combate à
corrupção, que a sociedade reclama, deveria, necessariamente, concentrar-se na
apuração das irregularidades e suas respectivas responsabilidades, no
ressarcimento do erário e na punição exemplaríssima dos agentes.
No
entanto, manipulado como vem sendo, transforma-se em aríete com o qual a
direita brasileira – em silêncio até 2014 – tenta revogar, ao arrepio dos
instrumentos da República, as conquistas sociais e civis de muitas e muitas
décadas e solapar o sentimento de brasilidade, fazendo com que nosso povo,
descrendo de si, termine descrendo de seu País, renuncie à construção de seu
futuro, transforme a esperança em desânimo e se deixe dominar pelo trágico
complexo de vira-lata.
Cria-se,
assim, o ambiente favorável às concessões cívicas que compreendem desde a
desestruturação do Estado social ao punitivismo, com aceitação da brutalidade
como resposta, num regressivismo penal que revoga as conquistas do direito
moderno.
Qual
o preço que uma sociedade razoavelmente sadia e na plenitude de seu
discernimento se dispõe a pagar para livrar-se da ação criminosa de agentes da
corrupção capitalista?
Aqui
entra em debate uma questão delicada, a sempre difícil relação entre fins e
meios.
O
combate à impunidade justifica a violação do princípio constitucional (art. 5º,
LVII) da presunção da inocência? Justifica a derrogação do direito de ampla
defesa, ou a imputação de pena de restrição da liberdade sem prévio julgamento,
ou a prisão para a apuração de responsabilidade, substituindo a prisão que só
se decreta após a apuração do crime e seu julgamento passado em julgado?
A
simples suposição do fato delituoso justifica a prisão e a exposição midiática
difamante?
Quando
a investigação serve de disfarce à disputa política, o réu escolhido passa a
ser culpado até prova em contrário, e dessa forma o ônus da prova (invertendo a
lógica jurídica) passa a recair sobre ele.
Nesse
esquema, o indício passa a ser tratado como evidência, e a suposição assume
ares de certeza cabal. Se fulano recebeu dinheiro, a remessa haverá de ter sido
ilegal. Se um acusado cita “L”, ele é forçosamente “Luiz”, e Luiz há de ser
Luiz Inácio Lula da Silva. Transporta-se para nossos dias a lógica da raposa em
seu diabólico diálogo com o cordeiro, imortalizado na fábula clássica e sempre
atual de La Fontaine.
Assim
era na última ditadura brasileira e assim é em toda ditadura e em todos os
momentos de exceção jurídica: prende-se, a partir de suposições ou ilações, para
apurar a acusação. Todo inquisidor tem sua lista de suspeitos prévios. Não é
assim nas democracias. Nelas, só a apuração do delito leva à condenação e esta,
à prisão.
O
Estado de direito democrático, ou isso que logramos construir no Brasil (na
realidade, isso que a duras penas está em construção entre nós desde a
Constituição de 1988), está nitidamente em xeque.
Insatisfeitos
com as respostas da política, setores da população, sobretudo uma boa parte da
classe média – vítima de um processo ao mesmo tempo de lavagem cerebral e
intoxicação ideológica, levado a cabo de maneira permanente e sistemática pelos
meios de comunicação de massa –, parece encantada com a espetacularização e
midiatização do processo judicial, e os abusos correspondentes. Não se dão conta
de que quando um direito é violado para punir um acusado a vítima é toda a
ordem constitucional, e nela os direitos e garantias individuais que visam não
à proteção do poderoso – que não precisa do direito para defender-se –, mas do
homem comum, o homem do povo que mais desprotegido se encontra quando não pode
contar, em sua defesa e proteção, com o aparelho estatal.
Nessa
reação, o sentimento de justiça é contaminado pelo de vingança, a vingança de
um povo cansado da impunidade dos poderosos, e esse sentimento é mobilizado
pelos meios de comunicação de massa, espetacularizando as prisões e legitimando
as violações de direito.
Como
explicar às pobres vítimas dos meios de comunicação que uma agressão ao direito
do outro é uma agressão, também, a elas, ao direito delas?
Como
explicar que as violações aos direitos do criminoso de colarinho branco, ainda
que aplaquem nossa raiva interior, terminam homologando as violências maiores
diariamente praticadas contra pobres pelo sistema policial e pelo sistema
judiciário, cego quando se trata de vê-los?
Ora,
o policial ou o juiz que viola o direito do rico, que pode ameaçá-lo, terá
limites quando em suas mãos estiver a incolumidade física ou a liberdade do
infrator pobre e sem proteção política?
A
normalização da violência é a maior ameaça aos pobres, ainda quando possa
atingir momentaneamente a uma meia dúzia de empresários.
O
direito precisa sempre ser respeitado e só quando a estrita obediências às suas
normas e princípios se observa como regra vigente sobre todos os cidadãos, e
apenas quando é observado por todas as autoridades, é que se torna uma norma
também para os pobres. Não pense o homem do povo que, na sociedade de classes,
a ordem autoritária ou o arbítrio de um policial, de um promotor ou de um juiz
poderão assegurar-lhe qualquer sorte de proteção.
A
pregação ideológica dos meios de comunicação oligopolizados (em si uma
inconstitucionalidade que os põe à margem do direito e da legalidade) contribui
para uma onda de reacionarismo e primitivismo político que investe contra
avanços sociais.
Os
grandes meios apostam na ignorância (que reproduzem), na intolerância (que
incentivam), no individualismo (que estimulam). Insaciáveis, agindo em
uníssono, uniformizados ideologicamente, coerentes no mesmo projeto político,
assumem o papel de construtores da história; para além de narrar, criam o fato
e interferem em seu andamento, constroem a realidade, comandam a política,
dirigem o discurso da oposição, pautam os partidos e o debate social ditando o
que se deve ouvir e principalmente excluindo o que não querem que seja
discutido, e assim não se discute que país queremos e que país estamos
construindo.
Elegem
adversários (que precisam ser eliminados) e amigos que precisam ser protegidos.
Olímpicos, assumem o papel de supremos julgadores, e esgrimam o monopólio da
verdade. Julgador e justiceiro, o monopólio elege suas vítimas (poupando
desassombradamente seus aliados políticos) e as condena à execração pública, a
pior das penas, pois não admite recurso, apelação ou sursis.
O
homem público previamente condenado pelos meios de comunicação jamais conhecerá
absolvição. A esta pena, a propósito, já foi condenado o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, vítima da vendeta dos meios de comunicação purgando não
seus erros, mas os acertos de seus oito anos de governo popular.
Este
massacre mediático, impiedoso, injusto, é caso exemplar de unidade de ação e
propósitos de policiais, procuradores e juízes, sob o comando
político-ideológico dos meios de comunicação, unificadas todas essas forças na
caça ao ex-presidente, o réu previamente condenado e punido, independentemente
de culpa. A pena foi decretada, e está em execução.
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