Fraude
histórica que serve de lição universal a todos aqueles que têm interesse real
em impedir desvios e abusos em decisões da Justiça, inclusive nas investigações
sobre corrupção no Brasil de nossos dias, em particular na Lava Jato, o caso
Dreyfus tem muito a ensinar aos brasileiros de hoje. Um dos principais
ensinamentos envolve o direito de toda pessoa ser tratada como inocente até que
se prove o contrário.
Parece
fácil mas não é - muito menos em situações de tumulto político e grandes
incertezas em pauta.
No
Brasil de 2016, não há espaço real para o contraditório, para a discordância,
uma crítica leve, à Lava Jato. A exigência é adesão absoluta, como prova a
reação dos jornais à publicação de um manifesto assinado por 115 advogados,
denunciando abusos contra prisioneiros submetidos a longas delações premiadas,
que cumprem a finalidade óbvia de produzir confissões e delações.
Evitando
entrar no mérito daquilo que se denuncia – o que seria sempre delicado e mais
difícil – os meios de comunicação preferiram fazer insinuações vergonhosas, de
caráter moral, sobre a altura de seus honorários. Desprezando o direito de
defesa, tão usado no emprego da liberdade de imprensa, inclusive para proteger
o sigilo da fonte e até para evitar raras punições judiciais, sem falar na
campanha recente contra o Direito de Resposta, assumiram a postura típica de
porta-vozes de todo pensamento autoritário: criminalizar o trabalho dos
advogados.
Sem
ruborizar, sem fazer nenhum tipo de auto avaliação, nossos meios de comunicação
estão consumando uma guinada histórica. Depois de décadas de textos
interesseiros e bajulatórios, de quem fingia desconhecimento de fatos
condenáveis que agora se denuncia em tom de afetada indignação, ampliam o coro
da denúncia e da crítica. Em sua mais recente expressão, querem impedir, de
qualquer maneira, civilizados acordos de leniência que podem salvar o que for
possível da 7ª economia do planeta.
Você
pode ter a opinião que quiser sobre a Lava Jato, sobre os acusados, sobre o
juiz Sérgio Moro, sobre o PT e Lula, sobre as empreiteiras.
Só
precisa saber que, na vida real de uma sociedade como a nossa, aquilo que
chamamos de verdade e mentira – e também culpa e inocência -- envolve
construções sociais, produzidas pelo direito de falar e ouvir, argumentar,
apresentar sua versão dos fatos, seja num tribunal, seja perante dezenas de
milhões de pessoas.
Não
estamos falando de realidades metafísicas, nem de entidades espirituais. Mas de
instituições que devem assegurar esses direitos.
Essa
é a utilidade do caso Dreyfus, uma fraude que levou dez anos para ser
desmascarada, num país que a maioria das pessoas considera culto e civilizado,
onde nunca se pensou que a liberdade pudesse estar ameaçada.
Desprezada
pelos principais jornais da época, que jamais deu espaço para os argumentos da
defesa, a família de Dreyfus decidiu investir uma fortuna – sim, eles eram
judeus muito ricos, e isso sempre foi usado em tom de suspeita – no
conhecimento da verdade.
Não
se limitaram a contratar advogados, obviamente. Sem direito a palavra, também
contrataram um jornalista, Bernard Lazare, que fez as primeiras investigações
independentes sobre o caso, que permitiram chegar aos primeiros sinais de
inocência do capitão, já julgado e condenado.
As
informações reunidas por Lazare permitiram –mas isso só aconteceu quatro anos
após o julgamento -- a publicação do artigo Eu Acuso, de Emile Zolah.
Tratado
como exemplo heroico do jornalismo daqueles dias, na vida real o Eu Acuso foi
aquilo que o ministro José Roberto Barroso chamou de ponto fora da curva.
Em
vez glorificado, como se faz hoje em coquetéis de fim de curso de jornalismo,
Zolah foi perseguido, processado e condenado prisão.
Criado
e estimulado pela maioria dos jornais da época, que disputavam manchetes em tom
popularesco para denunciar Dreyfus, num tempo em que a palavra “judeu” era
empregada sempre num tom criminal, o ambiente de comoção social e ódio era tão
desfavorável que, anos mais tarde, os responsáveis pela sentença justificaram a
decisão com um argumento esdrúxulo. Alegaram que, se tivesse sido absolvido e
pudesse andar pela rua, Zolah possivelmente seria morto por um cidadão. (Sem
confiar uma vírgula nesse argumento, Zolah preferiu fugir do país, exilando-se
na Inglaterra).
A
utilidade de estudar os dois casos reside em aspectos importantes. Ajuda a
compreender o caráter nocivo da combinação de interesses políticos com uma
decisão judicial.
Numa
conjuntura que tem lá sua semelhança com o Brasil de hoje, embora apresente
elementos muito diversos, vivia-se na França um período de reação conservadora.
Uma
década e meia após uma experiência revolucionária, a Comuna de Paris, quando a
capital do país foi assumida por um governo de anarquistas, socialistas e
marxistas, que expulsou a burguesia e tentou assumir o comando do Estado, a
França vivia um período de reconstrução da ordem. Desmoralizado por várias
derrotas, o Exército tentava recuperar prestigio e autoridade. Ressabiada
contra o alargamento da democracia para as camadas populares, a velha
aristocracia aliava-se ao reacionarismo católico para estimular a intolerância
e o preconceito, rejeitando vários progressos passados, o que incluía estímulos
ao anti semitismo que atingiu Dreyfus, após décadas de convívio e várias
medidas de integração e aceitação da diversidade estimuladas pela Revolução de
1789.
Como
a maioria dos franceses só pode descobrir uma década depois da sentença
judicial, o capitão Alfred Dreyfus era totalmente inocente da acusação de
envolvimento num esquema de roubo de segredos estratégicos do Exército francês
que eram oferecidos a Embaixada da Alemanha em Paris. Aquilo que hoje se chama
“caso Dreyfus” poderia ter-se limitado a um caso de erro judicial, ainda que
muito grave, caso as instituições próprias de um regime democrático tivessem
feito sua parte.
Afinal,
um ano e meio depois da sentença contra Dreyfuss, a verdade dos fatos já fora
informada ao Estado Maior do Exército. Num ambiente politizado e intolerante, a
crise aberta pelo episódio colocou em risco a sobrevivência da República,
vítima de chantagem militar permanente contra governos civis que não se dessem
prova de submissão aos quartéis.
Sem
apoio de provas, a denúncia contra Dreyfus se sustentava a partir de indícios
fabricadas, inclusive documentos falsos, que se destinavam a encobrir um outro
oficial, também capitão, que hoje é tido como o verdadeiro traidor. Dreyfuss
foi sentenciado em dezembro de 1894. Cinco anos depois, num segundo julgamento,
seria condenado mais uma vez, a dez anos, num escândalo o que contrariava a
maioria das evidências surgidas após a primeira condenação. Conseguiu a
liberdade, através de um indulto presidencial. Mas só teve a inocência
reconhecida dez anos depois da sentença, quando pode reintegrar-se ao Exército,
chegando a combater na Primeira Guerra Mundial.
Sem
disposição para voltar atrás numa decisão errada e cumprir o dever elementar de
respeitar as provas e tomar decisões a partir delas, a Justiça militar nunca
assumiu o erro original. Protegeu a fraude até o fim. O chefe da contra
espionagem que tinha as informações confiáveis sobre Dreyfuss foi enviado para
as colônias do Norte da África. O culpado foi solto.
Muitas
pessoas acreditam que o condomínio entre jornais e a Justiça, que estimula uma
cobertura favorável em troca de vazamentos e informações privilegiadas, tenha
sido uma invenção da Operação Mãos Limpas italiana, importada para o Brasil
pelo juiz Sérgio Moro. Errado.
No
final do século XIX a maioria dos jornais franceses estava inteiramente
cooptada pela decisão da Justiça contra Dreyfus, e foi cúmplice de uma
sequência de barbaridades. Suas manchetes cobraram a condenação com penas duras
e vergonhosas. Aplaudiram em tom de festa cívica quando ele foi degradado
perante a tropa, expulso do Exército e enviado para a Guiana, para ser mantido
a ferros, sob o sol do Equador. Depois de sustentar uma fraude, mantiveram a
mesma postura quando se tornou preciso apoiar uma farsa – aquela versão que
todos sabem que é mentirosa mas é mantida pelas partes ninguém se dispõe a
assumir a culpa pelos erros cometidos.
Sem
inocentar (nem culpar) ninguém com antecedência, acho que deu para entender do
que estamos falando no Brasil de 2016, certo?
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/01/caso-dreyfus-e-lava-jato-algo-em-comum.html?spref=tw
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