O
sentimento de ódio, injustiça e opressão que permeia toda uma geração pós
Constituição e que opera com mentalidades autoritárias, banhadas por mídia
estabelecida e que conviveu, bem obrigado, com a ditadura, encontra na passagem
ao ato um movimento de comparecimento subjetivo. Compartilhamentos no Facebook,
petições públicas, passeatas, tudo para “parecer” que se faz alguma coisa.
O
ódio é um sentimento humano que pode ser tanto positivo quando negativo. Não
há, por si, algo desfavorável em quem sente ódio. Aliás, em certas ocasiões, o
ódio é muito útil. A questão a ser discutida, neste contexto, é o objeto
odiado. Mauro Mendes Dias é psicanalista e, quem sabe, a partir de Freud e
Lacan, possa nos auxiliar a compreender o desejo de aniquilação que se verifica
nos discursos contemporâneos[1]. Podemos, assim, pensar as dimensões do ódio.
O
discurso sobre o ódio é silencioso, proibido, quase um tabu. Como se o fato de
não falarmos que odiamos pudesse significar sua inexistência. De um lado o ódio
é sinônimo de aversão ou repugnância, advindo do grego, “odéon”, ou seja,
pequeno teatro. Tal qual Antígona, a face positiva do ódio pode advir do fato
de o sujeito se reconhecer pelo ódio. Daí que a profunda antipatia ou uma
paixão que conduz ao mal, embora devamos distinguir das definições correntes de
ódio. Resgatando Lacan, Mauro Mendes aponta que aliado ao amor e à ignorância,
são as três paixões do ser. E todo apaixonado não duvida, não hesita[2]. Não se
trata de sugerir aos julgadores análise, até porque, não se quer evitar, nem
curar, diz Mauro Mendes, as paixões, mas indagar os seus destinos.
Cortamos
por aqui, quem sabe, para lançar algumas linhas do que se passa, sabendo que o
ódio elege seu objeto, enquanto o amor desconhece. Comparece um ato de
aniquilamento e regozijo, insatisfatório, sempre.
Significantes
vazios que são dizem nada, mas prendem
A
ideologia, no dizer de Zizek, constitui-se como um complexo de ideias –
teorias, convicções, crenças, procedimentos argumentativos – articulados pelo
Estado, pelas visões de mundo antagônicas, mas que operam no coração da própria
realidade social[3]. Embora o significante possa franzir o cenho de alguns, sua
atualidade, pelo excesso, faz sintoma.
Conforme
já denunciamos, a retórica é o mecanismo utilizado para manipular o discurso e
se restringir direitos fundamentais quando e como se quiser. A prisão para
garantia da ordem pública, cuja densidade depende da cabeça de cada Juiz, não
deveria encontrar guarida no ordenamento jurídico. De qualquer forma,
considerando a legalidade estrita, diga-me como se configura materialmente
ordem pública? É quando você quiser prender alguém e usa um mantra qualquer:
instabilidade social, confiança das instituições, gravidade, qualquer julgado
ou fatia doutrinária bem bonita e moralista, enfim, uma fraude retórica. Mas
nem precisa muito, já que no Direito Processual Brasileiro, sequer será
necessário fundamentar a prisão preventiva, dado o cheque em branco da prisão
temporária (Lei 7.960/1989). Por ela, então, quando houver suspeita (isso
mesmo, qualquer coisa) o juiz poderá decretar a prisão. Até o advogado tomar pé
da situação já terminou a prisão temporária. Então, a prisão cautelar, que
deveria ser uma exceção, tornou-se fundamentada na exceção.
Opera-se
com a “lógica da equivalência” denunciada por Ernesto Laclau[4], pela qual a
retórica assume o aspecto fundamental nos processos discursivos, descolados da
realidade e que, no caso penal, podem ser movidos pela paixão e ideologia.
Entre flutuações e vazios de sentido, o julgador diz o que quiser e
performaticamente fundamenta com palavra o que nada significa, ou seja, são
significantes em que o semblante diz o que nunca poder ser dito.
Neste
sentido, apaixonados pelo ódio, sujeitos podem, do seu lugar, estabelecer –
como se fosse possível – o sentido original e ilusório das normas jurídicas, no
deslizamento imaginário que é típico de apaixonamentos. E, além disso, é uma
ilusão necessária, ainda que não adiante dizer que o estado “odiante” tomou
conta porque, no caso, o sujeito apaixonado nada quer saber. Sua onipotência
autorreferente basta-lhe, especialmente quando adulado por terceiros com
interesses específicos, bem assim do silêncio e relativizações de alguns
juristas que jogam o jogo da boa vizinhança. E as equivalências retóricas
servem para isso: decidir como se quiser. Este flutuar do significante
-“requisitos para prisão preenchidos” - pode ser preenchido por cadeias discursivas
opostas, daí seu efeito mágico, aparentemente bem fundamentado, mas que serve
de mecanismo retórico, ensinava Luis Alberto Warat[5].
Despelamento
discricionário
Enfim,
tudo isso para dizer que, não obstante tenhamos lutado para restringir a
discricionariedade, toda construção discursiva do direito é suscetível a
manipulações convenientes, a depender do contexto e das recompensas dos
jogadores. Eduardo Cunha, no jogo, adota tática de ataque calculado. Primeiro a
redução da idade penal, depois conta com novos passos e acolhe o impeachment,
jogando o foco para outro lugar. A manipulação do objeto odiado é sutil e muito
bem articulada, contando com amplo apoio midiático, no que Rubens Casara, com
base em Debord, chama de Processo Penal do Espetáculo. Talvez seja o caso de
convocar Galvão Bueno para narrar o impeachment, com comentários de
especialistas remunerados e patrocínio graúdo. Diria: “Bem amigos, começa o
impeachment. Com a palavra Eduardo Cunha, passa para o relator que diz que o...
E aí Arnaldo: a regra é clara, mesmo? Pela regra não poderia, mas o juiz deu
vantagem. E quando o Juiz não marca, tem que respeitar. Afinal, o juiz é
autoridade máxima”. Aliás, o parecer de Juarez Tavares e Geraldo Prado mostra
os equívocos de Cunha.
Chegamos
ao ponto de acolher a tese de que o
realismo-discricionário-apaixonado-e-ideológico triunfou? Lutamos para que isso
não possa ocorrer e, por isso, denunciamos os arroubos juvenis de quem um dia
deve olhar e, quem sabe, poderá perceber o lugar do ódio em sua fantasia. E que
os arroubos de juventude amorosa/odiosa possam gerar um certo constrangimento,
mais dia, menos dia.
Por
isso a advertência de Roland Barthes no sentido do despelamento do sujeito com
amor e ódio: “Sensibilidade especial do sujeito apaixonado, que o torna
vulnerável, à mercê das mais leves feridas.”[6] Bom final de semana.
[1]
DIAS, Mauro Mendes. Ódios: clínica e política do psicanalista. São Paulo:
Iluminuras, 2012.
[2]
DIAS, Mauro Mendes. Ódios: clínica e política do psicanalista. São Paulo:
Iluminuras, 2012, p. 26-27: “É por isso que uma das maneiras de definir
psicanaliticamente a paixão, se introduzindo no problema, tem que ver com a
suspensão da relação do significante com o significado, porque, uma vez
suspensa essa barra, o sujeito não tem mais referência de impossibilidade; ao
contrário, os significantes da paixão determinam uma relação de superposição
com o significado. O que leva o apaixonado a essa estranha coerência de pensar
tal como sente e sentir tal como pensa. E é insistindo nessa condição de uma
provisoriedade da suspensão que não se confunde com a psicose. O que, ao mesmo
tempo, reafirma os ditos populares de que a paixão, tal como o fogo de palha,
acende e logo apaga. (...) Por isso podemos dizer que a consequência da
suspensão provisória dessa divisão é que o mundo do apaixonado é um mundo em
que encontramos um triunfo do significado, por isso se diz que a paixão é cega,
que o sujeito olha tudo segundo a mesma ótica, o mesmo significado. Assim como
se diz que a paixão é cega, diz-se que o sujeito está cego de ódio, também.”
[3]
ZIZEK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996.
[4]
LACLAU, Ernesto. Misticismo, retórica y política. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica de Argentina, 2006, p. 8.
[5]
WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul:
UNISC, 1985.
[6]
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 2000, p. 111.
http://www.conjur.com.br/2015-dez-04/limite-penal-quando-julgador-cego-odio-nao-processo?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
Nenhum comentário:
Postar um comentário