Foi
noticiado aqui na ConJur e em outros veículos de comunicação a polêmica
providência tomada pela Prefeitura de São Paulo. Consistiu em decretar o sigilo
das imagens de câmeras de segurança instaladas pelo Poder Público, com base na
Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), por supostamente ferir a
"individualidade”[1]. A informação foi classificada como reservada, grau
de sigilo cujo prazo máximo atinge cinco anos (artigo 24, parágrafo 1º, inciso
III da Lei 12.527/11). Depois da repercussão do caso, o Prefeito voltou atrás
em sua decisão. [2]
Uma
corrente doutrinária, defendida pelo professor Lenio Streck, sustenta que a
transparência deve servir para expor os atos do Estado, e não do cidadão, pois
“não podemos criar uma tirania sobre a intimidade do indivíduo. Não podemos, em
nome da segurança ou outras razões de estado, fulminar o que nos resta de
liberdade individual”. Segundo o jurista, “Eu só posso admitir uma invasão da
esfera da privacidade do cidadão a partir de uma violação maior, que é uma
questão criminal. Isso não é para qualquer crime. Não pode valer para o furto,
por exemplo. Se até nisso nós temos um olhar cuidadoso, não é com esse estado
de vigilância que todos os atos do cidadão não podem ser preservados pela
autoridade."
O
autor prossegue alertando para risco de criação de um novo panóptico: “Hoje
isso é mais perigoso porque tudo é vigiado. Quem é a favor do panóptico é
utilitarista; quem é utilitarista é consequencialista. Logo, admite que os fins
justificam os meios, algo que não se permite no Estado Democrático de Direito.”
Com
a devida vênia, ousamos discordar.
De
início, cabe sublinhar que do fato de o panóptico ter sido idealizado pelo pai
do utilitarismo clássico não decorre necessariamente o comprometimento dos
defensores da vigilância de rua com tal doutrina. À parte, o utilitarismo não
ignora o justo, embora priorize o bem; ao passo que teorias morais
deontológicas não ignoram as consequências. "Todas as doutrinas éticas
dignas de atenção levam em conta as consequências ao julgar o que é certo.
Aquela que não o fizesse seria simplesmente irracional, insana", destaca
Rawls[3]. Não se segue, pois, da adoção de uma teoria moral consequencialista,
como o utilitarismo, nenhuma violação do Estado Democrático de Direito,
tampouco alguma admissão irracional de desconsideração do que é justo do tipo
"os fins justificam os meios".
Ademais,
o direito fundamental à informação pública, umbilicalmente ligado ao postulado
da publicidade, é garantia do cidadão contra o Leviatã. Qualifica-se como
importante direito para a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua
vertente de máxima universalidade,[4] com grande envergadura no panorama das
liberdades públicas.[5]
Encontra-se
estampado em diversos tratados internacionais de direitos humanos, cabendo
citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 19) e a Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção (artigos 10 e 13).
O
princípio também possui guarida constitucional, garantindo a Lei Fundamental o
acesso à informação (artigo 5º, XIV da CF) e o direito de todos a receber dos
órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo vou geral (artigo
5º, XXXIII da CF). O constituinte inclusive impôs ao legislador ordinário o
dever de disciplinar o acesso dos cidadãos às informações sobre os atos de
governo (artigo 37, parágrafo 3º, II da CF). Negar ou restringir
arbitrariamente informações de interesse público evidencia mecanismo de exceção
próprio de Estados autoritários. Por meio do postulado da publicidade,
decorrência do ideal republicano, o Poder Público, público que é, deve atuar
buscando a maior transparência possível.[6] Trata-se de pressuposto da
cidadania, fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, II, da CF).
Nesse
cenário surgiu a Lei 12.527/11, com o desiderato de assegurar o direito
fundamental de acesso à informação, fomentar o desenvolvimento da cultura de
transparência na administração pública e consolidar a publicidade como preceito
geral e o sigilo como exceção (artigo 3º da Lei 12.527/11).
O
direito à informação deve ser concretizado sem impedimentos ou discriminações
por parte dos poderes públicos,[7] o que obviamente não significa inexistência
de limites. O próprio constituinte (artigo 37, parágrafo 3º, II da CF) ressaltou
que a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem (artigo 5º, V e X, da CF),
bem como a segurança da sociedade e do Estado, são valores que merecem igual
tutela do Estado. E por isso mesmo o legislador ordinário elencou alguns
interesses cuja proteção justifica a classificação da informação como sigilosa
(artigo 23 da Lei 12.527/11), podendo ser citados vida, segurança e saúde da
população, segurança de instituições e investigação criminal. Além disso, as
informações pessoais receberam especial amparo pelo artigo 31 da referida Lei.
A
liberdade de expressão encontrará abuso no exercício “...se, a pretexto de
descrever a vida ou a conduta de determinadas pessoas, se atribui a elas
prática de atos negativos absolutamente estranhos à sua biografia, sem que se
possa afirmar, com segurança, que se cuida, simplesmente, de uma imagem
hiperbólica ou satírica.”[8] Não sendo o caso, há de prevalecer o interesse
coletivo sobre o individual, o que não apenas teorias consequencialistas
defenderiam. A própria ética kantiana é expressão disso.
Nesse
diapasão, o fornecimento de imagens captadas por equipamentos públicos em
locais públicos, atendendo a solicitação motivada, não tem o condão de “criar
uma tirania sobre a intimidade do indivíduo”. Tampouco acreditamos ser
apropriada a comparação de imagens de câmeras públicas de segurança às
comunicações telefônicas, estas protegidas pela cláusula de reserva de
jurisdição (artigo 5º, XII da Constituição Federal).
Se
as imagens de câmeras públicas de monitoramento solicitadas pelo cidadão não
colocarem em risco os valores albergados no artigo 23 da Lei 12.527/11 (vida,
segurança e saúde da população, segurança de instituições, investigação
criminal, entre outros), é perfeitamente possível sua cessão pelo Estado,
limitadas no tempo e espaço, especialmente se o pedido for reforçado por
motivação idônea (ex: localizar uma pessoa desaparecida, provar um álibi,
noticiar uma informação de interesse público etc). Importante grifar ainda que
a regra é da dispensabilidade da fundamentação do requerimento de acesso às
informações de interesse público (artigo 10, parágrafo 3º da Lei).
Lembre-se
que o acesso a imagens captadas por equipamentos públicos em espaço público é
de interesse social, inegavelmente de interesse difuso, sendo de importância
para toda a sociedade o conhecimento das atividades desenvolvidas pelas
autoridades públicas no combate a irregularidades e ilicitudes praticadas em
local público ou acessível ao público. Dentro do direito de participação do
povo na prestação dos serviços públicos, o acesso à informação constitui um
instrumento excepcional de controle, enfatizando-se que a captação de imagens é
um serviço público, que pode ser inserido no contexto de serviço de segurança
pública.
Conforme
anota Valter Santin, sobre a participação popular na segurança pública, a
própria política de segurança pública pode ser “viciada pela
inconstitucionalidade da norma legal ou administrativa” em caso de falta de
audiência popular, “sem ouvir o povo e os representantes da sociedade civil,
por ferimento aos artigos 37, parágrafo 3º, e 144, caput e parágrafo 7º, da
Carta Magna”, tendo em vista “o direito de participação popular e a
responsabilidade de todos para o cumprimento do serviço de segurança pública
fornecido pelos entes públicos”.[9]
O
acesso à informação possibilita ao cidadão exercer o seu papel de participação
na segurança pública e pleitear medidas para a sua melhoria, inclusive
representação por omissão administrativa. É também um mecanismo de publicidade
e transparência. Pode ainda constituir uma exigência de boa governança do
administrador público no desempenho e implementação de políticas públicas.
Aliás,
se as imagens captadas por dispositivos de segurança do Estado forem de
interesse público (ex: evidenciar um estado de coisas inconstitucional[10]
quanto à população de rua de um determinado município), essa informação deveria
ser divulgada independentemente de solicitação (artigo 3º, II da Lei
12.527/11). A via pública constitui espaço público por excelência e, nessa
ordem de ideias, a todos interessa. É nela que os homens se mostram uns aos
outros; é nela que Estados autoritários abusam do poder acobertados por sigilo
e restrição de informações.
Com
efeito, a gestão transparente da informação, propiciando seu amplo acesso, é
uma tarefa primordial dos órgãos e entidades do poder público. A informação
mantida pelo Estado traduz um bem público, e o acesso a estes dados
constitui-se em um dos fundamentos para a consolidação da democracia.
Conclui-se
que a universalização do sistema de acesso à informação, em que o gestor não
sonegue informações, tem como desafio vencer a cultura de segredo que historicamente
tem prevalecido na gestão pública. Deve ser incentivada a cultura de acesso, na
qual o fluxo de informações favorece a boa gestão de políticas públicas e a
inclusão do cidadão, aproximando o indivíduo da coisa pública.
1
Haddad decreta sigilo de imagens de câmeras das ruas de São Paulo. Folha de S.
Paulo, 16/10/2015. Disponível em:
2
Haddad diz que irá rever sigilo de imagens de câmeras de rua de SP. Folha de S.
Paulo, 16/10/2015. Disponível em:
3
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 3ªed. Tradução Jussara Simões. Revisão
técnica da tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.36.
4
BONAVIDES, Mauro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004,
p. 571.
5
BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014,
p. 531.
6
SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 669.
7
CANOTILHO, José Joaquim. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Livraria
Almedina, 1993, p. 541.
8
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de
constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2ªed. São Paulo: Celso
Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 92.
9
SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do
serviço na prevenção e repressão ao crime. 2. ed., São Paulo: Verbatim, 2013,
p. 68-69.
10
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo . O Estado de Coisas Inconstitucional e o
litígio estrutural. Consultor Jurídico, 01/09/2015. Disponível em: <
http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural>
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2015-out-26/cidadao-direito-obter-imagens-cameras-publicas-seguranca?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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