Todos
os acordos de delação premiada firmados na operação “lava jato”, que investiga
esquemas de corrupção na Petrobras, possuem cláusulas que violam dispositivos
da Constituição — incluindo direitos e garantias fundamentais —, do Código
Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984).
Isto é o que aponta levantamento inédito feito pela revista Consultor Jurídico.
A pesquisa analisou os compromissos que 23 delatores celebraram com o
Ministério Público Federal ou com a Procuradoria-Geral da República, desde o
primeiro, firmado em 27 de agosto de 2014 pelo ex-diretor de abastecimento da
Petrobras Paulo Roberto Costa, até o do lobista Fernando Moura, formalizado em
28 de agosto de 2015.
O
ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki e o juiz federal Sergio
Moro já homologaram os documentos. Mas, se os compromissos forem contestados
judicialmente, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (PR, SC e RS), o
Superior Tribunal de Justiça ou o próprio STF podem anular partes ou a íntegra
deles. Neste caso, as provas e condenações decorrentes dos depoimentos podem
ser derrubadas, colocando todo o caso em risco.
Janot
disse que mais de 50 delações já foram concluídas ou estão em negociação, mas
apenas 28 são conhecidas.
A
ConJur analisou os acordos que são públicos. O MPF diz que já foram
formalizados compromissos com 28 pessoas, enquanto o procurador regional da
República Douglas Fischer disse, no último dia 8, que são 31 colaboradores.
Além disso, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, afirmou em sua sabatina
de recondução ao cargo, no Senado, que “entre 50 e 60” delações já foram
concluídas ou estão em negociação na operação.
A
delação premiada existe no Brasil desde as Ordenações Filipinas, de 1603. O
instituto é previsto em diversas normas criminais, como no Código Penal, na Lei
dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), na Lei de Proteção de Vítimas e
Testemunhas (Lei 9.807/1999) e na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), e aliviou as
punições de contraventores confessos como Joaquim Silvério dos Reis (que entregou
Tiradentes) e Roberto Jefferson (que denunciou o caso do mensalão).
Contudo,
apenas com a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) a medida foi
regulamentada no país. Com isso, as colaborações premiadas deixaram de ser
feitas de modo informal e com reduções da pena dependentes da decisão do juiz e
passaram a ser formalizadas em contratos com cláusulas detalhando todos os
benefícios e as condições necessárias para obtê-los.
Mas
a “lava jato” alçou as delações a um patamar de importância jamais visto no
Brasil. O caso, que começou com suspeitas de lavagem de dinheiro por meio de um
posto de gasolina em Brasília, cresceu graças aos depoimentos de Paulo Roberto
Costa e do doleiro Alberto Youssef. Eles foram os primeiros a mencionar que
havia um esquema de fraudes em licitações, sobrepreços e desvio de recursos que
envolvia executivos da Petrobras, empreiteiros e políticos.
A
partir daí, diversos outros investigados resolveram colaborar com a Justiça,
seja pela possibilidade de receber uma punição mais branda, seja por medo de
ficar preso preventivamente por um tempo excessivo. Segundo o juiz federal
Sergio Moro, responsável pelos processos decorrentes da operação, as
colaborações premiadas são a melhor forma de solucionar crimes financeiros e empresariais.
Garantias
desrespeitadas
Há
diversas cláusulas nos acordos de delação da “lava jato” que desrespeitam
regras da Constituição, e a maioria delas viola direitos e garantias
fundamentais. Todos os compromissos proíbem que o delator conteste o acordo
judicialmente ou interponha recursos contra as sentenças que receber. Os mais
recentes abrem exceções apenas para os casos em que a pena imposta, seu regime
de cumprimento ou as multas extrapolarem os limites fixados no documento.
Proibir
contestação judicial de sentenças vai contra garantia constitucional, explica
Guilherme Nucci.
A
obrigação entra em choque com o direito de ação (artigo 5º, XXXV), que assegura
que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do
Judiciário. Para o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e
professor de Direito Penal da PUC-SP Guilherme Nucci, é “lógico” que essa
cláusula viola uma garantia constitucional, e nenhuma lei ou contrato pode estabelecer uma proibição desse tipo.
Os
compromissos de Paulo Roberto Costa e Youssef ainda vedam a impetração de
Habeas Corpus e obrigam que eles desistam dos que estão em tramitação. Vale
lembrar que o Ato Institucional 5, editado em 1968, no governo ditatorial de
Costa e Silva, suspendeu o Habeas Corpus nos casos de crimes políticos, contra
a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. A
proibição durou 10 anos e inibiu a aplicação da medida de modo geral. Para
evitar que a situação se repetisse, o Habeas Corpus recebeu especial
importância dos deputados e senadores constituintes, que a elevaram à categoria
de cláusula pétrea e direito fundamental na Carta de 1988 (artigo 5º, LXVIII).
Outro
dispositivo problemático, que consta de quase todos os termos de delação,
determina que a defesa não terá acesso às transcrições dos depoimentos do
colaborador, que ficarão restritas ao MP e ao juiz. Ou seja: os advogados do
delator não têm acesso às próprias declarações de seu cliente. A justificativa
dos procuradores para essa restrição é a manutenção do sigilo, como forma a não
prejudicar outras investigações.
Porém,
a "boa intenção" do MP afronta os princípios do contraditório e da
ampla defesa, que são assegurados a todos os acusados e litigantes (artigo 5º,
LV). O criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, lembra que os
advogados devem ter acesso a todos os documentos e informações de inquéritos e
processos. Caso contrário, a paridade de armas dá lugar a um cenário em que a
acusação hipertrofiada sufoca a defesa sem recursos.
Os
termos de colaboração premiada também obrigam quem os assina a renunciar ao
direito ao silêncio e à garantia contra a autoincriminação (artigo 5º, LXIII).
O advogado e professor de Direito Penal da UFMG Marcelo Leonardo afirma que não
se pode renunciar a um direito constitucional, menos ainda a um que também está
previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa
Rica), e é considerado um instrumento contra a tortura praticada por agentes
públicos. O Brasil é signatário do Pacto, o que lhe confere força de lei no
país.
Renunciar
ao direito ao silêncio é considerado instrumento de tortura, conta Marcelo
Leonardo.
Em
todos os acordos, o MP se compromete a suspender por 10 anos todos os processos
e inquéritos em tramitação contra o acusado uma vez que as penas imputadas a
ele atinjam um certo número de anos – 30 no caso do Youssef; 18 no caso do dono
da UTC, Ricardo Pessoa; 8 no do lobista Hamylton Padilha; por exemplo.
Transcorrida a década sem o delator descumprir qualquer condição do contrato,
os prazos prescricionais dos procedimentos contra ele voltarão a correr até a
extinção de sua punibilidade.
Além
disso, o MP se compromete a não propor novas investigações e ações decorrentes
dos fatos que são objeto do compromisso. Em agosto, Moro absolveu Youssef de
ter repassado cerca de R$ 4 milhões num esquema que fez a Petrobras contratar
navios-sondas entre 2006 e 2007, porque o caminho apontado pelos procuradores
na denúncia é diferente do confessado pelo doleiro. Moro disse que cabia nova
denúncia, mas os membros do órgão desistiram de ajuizar outra ação por esse
crime, uma vez que as penas que ele recebeu já somam o limite de 30 anos.
Ao
deixar de agir, mesmo sabendo da ocorrência de delitos, o MP descumpre suas
funções institucionais de promover a ação penal e requisitar investigações e a
instauração de inquéritos (artigo 129, I e VIII). Na opinião do advogado
especialista em Direito Penal e professor de Direito Processual Penal da
PUC-RS, Aury Lopes Jr., o órgão não pode abrir mão de suas atribuições. “Esse
tipo de cláusula de não proceder coloca o MP com um poder de disposição que ele
não tem. Assim, viola os princípios da legalidade, indisponibilidade e
obrigatoriedade”, analisa Lopes Jr., que também é colunista da ConJur.
Violações
penais
Mas
as irregularidades dos acordos de colaboração premiada da “lava jato” não se
restringem à Constituição. Eles também têm diversas cláusulas que contrariam
dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução
Penal. Todos os compromissos público firmados na operação, exceto os dos
lobistas Mário Góes, Milton Pascowitch e José Adolfo Pascowitch, e o do doleiro
Shinko Nakandakari e de seus filhos Luís e Juliana, estabelecem um prazo indeterminado
para o delator ficar no regime em que começar a cumprir sua pena. Por exemplo,
o contrato do ex-executivo da Camargo Corrêa Eduardo Leite determina que ele
fique de dois a seis anos no regime semiaberto. Os termos do empreiteiro
Ricardo Pessoa e do lobista Fernando Moura estendem essa incerteza até para a
segunda fase de execução.
Indeterminação
sobre prazo de prisão subverte a lógica
do processo penal, diz Aury Lopes Jr.
O
tempo exato que o colaborador permanecerá no regime inicial (e também no posterior,
nos casos de Pessoa e Moura) só será determinado após posterior avaliação da
efetividade das informações por ele prestadas. Assim, em um período que varia
de seis meses a um ano da assinatura do acordo, as partes voltarão a se reunir
e cada uma delas apresentará uma proposta de prazo. Se elas chegarem a um
acordo, ele seguirá para o juiz, que decidirá sobre sua homologação. Se não, o
magistrado avaliará as duas sugestões e estabelecerá a duração da permanência
do acusado em tal regime.
Essa
indeterminação não condiz com a exigência de que a pena tenha sua quantidade de
tempo fixada pelo juiz (artigo 59, II, do Código Penal). Lopes Jr. destaca que
essa regra “subverte toda a lógica do processo penal”, e cria um regime de
cumprimento condicional da pena à margem da lei. Marcelo Leonardo diz que só é
possível aceitar tal condição caso se esqueça tudo o que está escrito no Código
Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal.
Também
quanto aos regimes de cumprimento da pena, a maioria dos termos de delação
premiada prevê progressão mesmo que em desconformidade com os requisitos
estabelecidos na Lei de Execução Penal (artigo 112 e seguintes). O fundamento
do MPF nesse caso é que a Lei das Organizações Criminosas autoriza tal exceção.
No entanto, a norma só admite a medida para colaborações firmadas após sentença
condenatória (artigo 4º, parágrafo 5º).
Dessa
forma, a inclusão da regra em acordos celebrados na fase de investigação ou do
processo viola o princípio da legalidade (artigo 5°, II e XXXIX, da
Constituição, e artigo 1º do Código Penal). Nucci ressalta que não se pode
fazer interpretação extensiva para aqueles que ainda não foram condenados.
Senão, as leis penais passam a ser mescladas, e seus dispositivos, aplicados conforme
a conveniência do caso.
Uma
outra disposição ilícita é a que trata dos efeitos da delação premiada em caso
de rompimento do acordo. Esta cláusula, presente em todos os documentos,
estabelece que se o colaborador descumprir alguma obrigação, ele perderá os
benefícios, mas seus depoimentos e as provas derivadas deles permanecerão
válidas. Nada muda quanto à utilidade das informações se quem quebrar uma
condição for o MP ou o juiz. Neste caso, a única prerrogativa do acusado é a de
parar de contribuir com a Justiça.
O
rompimento do acordo torna os depoimentos e suas decorrências provas ilícitas,
afirma Kakay.
Essa
desigualdade nas consequências de inadimplemento contratual desrespeita o
princípio do contraditório e da ampla defesa. E mais: o rompimento do acordo
torna os depoimentos e suas decorrências provas ilícitas, declara Kakay. Dessa
maneira, essas evidências e as derivadas delas devem ser desentranhadas do
processo (artigo 157 do Código de Processo Penal).
Os
compromissos de colaboração mais recentes, como o do ex-gerente da Área
Internacional da Petrobras Eduardo Musa, fixam um certo número de anos como
base para benefícios penais, como
remição da pena (seja pelo trabalho, frequência escolar ou estudo), saída
temporária, anistia e indulto. Entretanto, a regra prejudica quem for condenado
a um tempo inferior ao patamar estabelecido. Na visão de Aury Lopes Jr., tal
cláusula viola a legalidade e toda a sistemática das execuções penais, além de
gerar problemas no cálculo dos benefícios.
Os
dias de trabalho de Paulo Roberto Costa, por exemplo, não valem para a remição
de sua pena, mesmo que a compensação esteja prevista na Lei de Execução Penal
(artigo 126, parágrafo 1º, I). Kakay considera essa cláusula uma “violação
frontal” à norma, e afirma que não se pode abrir mão de um direito como esse. O
desembargador Nucci tem opinião semelhante, e aponta que a Lei de Organizações
Criminosas não estabelece isso, o que torna ilegal a inserção dessa condição no
acordo de delação premiada do ex-diretor da Petrobras.
Outro
lado
O
procurador regional da República Orlando Martello, que integra a força-tarefa
da “lava jato”, contesta as alegações de inconstitucionalidades e ilegalidades
nos acordos de delação premiada da operação. Segundo ele, o MPF está apenas
usando seu poder de negociar com o acusado, algo previsto desde a Lei dos
Juizados Especiais (Lei 9.099/1995).
Assim,
Martello entende que a restrição à interposição de recursos evita medidas
protelatórias que visam à prescrição e geram impunidade. O raciocínio é
semelhante para a cláusula que veda o desconto de dias trabalhados da pena de
Paulo Roberto Costa, que tem o objetivo de não deixar sua punição muito baixa,
explica.
Com
relação à fixação de um certo número de anos para concessão dos benefícios penais,
o procurador diz que o patamar é sempre inferior à pena que o MPF estima que o
acusado irá pegar. Porém, se essa previsão se mostrar errada e o delator for
condenado a um tempo menor do que aquele, o órgão irá requerer ao juiz que a
cláusula seja modificada, explica.
O
membro da força-tarefa da “lava jato” também refuta a alegação de violação do
contraditório e da ampla defesa pelo fato de os advogados do delator não
ficarem com cópias dos depoimentos dele. De acordo com ele, tal restrição
ocorre apenas por um breve período, e com o objetivo de não prejudicar as
investigações. Logo que o termo é homologado pelo juiz, a defesa volta a ter
acesso a todos os documentos que mencionam seu cliente.
Martello
ainda diz não “ver sentido” em continuar propondo investigações e oferecendo
denúncias contra aqueles cujas sentenças já superam os limites estabelecidos
nos acordos de delação premiada. A seu ver, a inércia consentida do órgão
alivia a PF e o Judiciário, e ajuda a desafogar a Justiça.
Para
Bottini, é incompatível que um acusado firme acordo de colaboração premiada e
permaneça calado.
O
professor de Direito Penal da USP Pierpaolo Cruz Bottini, que negociou o termo
de colaboração premiada do ex-presidente da Camargo Corrêa Dalton Avancini,
argumenta que se as medidas dos acordos forem mais benéficas aos delatores do
que as previstas na lei, elas devem ser aceitas. Desta maneira, Bottini — que
também é colunista da ConJur — sustenta não haver problema em cláusulas como a
que admite, já antes da sentença, progressão de regime, mesmo que ausentes os
requisitos objetivos.
Ele
diz ser incompatível que um acusado firme acordo de colaboração premiada e
permaneça calado, uma vez que esse tipo de acordo é baseado na renúncia ao
silêncio, que é um direito disponível. Com visão semelhante à de Martello, o
criminalista não vê violação ao contraditório e à ampla defesa pelos advogados
não ficarem com cópia dos depoimentos do delator, já que este não está
litigando, e sim sendo investigado.
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2015-out-15/acordos-delacao-lava-jato-violam-constituicao-leis-penais
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