Em
entrevista realizada em 1971, Lennon e Yoko Ono conversaram com os jornalistas
Tariq Ali e Robin Blackburn sobre luta de classes, religião e machismo: 'não
podemos ter uma revolução que não envolva e liberte as mulheres'
Em
1971, os jornalistas Tariq Ali e Robin Blackburn se encontraram com John Lennon
e Yoko Ono em Londres para uma conversa que viria a ser publicada no The Red
Mole, jornal produzido pelo Grupo Internacional Marxista, seção britânica da
organização trotskista Quarta Internacional.
Os
Beatles não mais existiam, e Lennon demonstrava estar muito mais próximo da
luta da classe trabalhadora a que pertencia antes da fama. Na entrevista, o
músico conta como ele e George Harrison se pronunciaram nos Estados Unidos
contra a guerra no Vietnã e discute questões de classe, a luta do movimento
negro nos EUA e no Reino Unido e o machismo na esquerda. As críticas à religião
e à burguesia e as referências ao conturbado relacionamento com sua mãe e seu
pai, presentes nas canções do então recém-lançado álbum John Lennon/Plastic Ono
Band (1970), também são abordadas na conversa de quase duas horas entre Lennon,
Yoko e os dois jornalistas.
Em
artigo escrito para o jornal britânico The Guardian em 2010, Ali rememora o
encontro e conta o impacto que a conversa teve em Lennon: "No dia seguinte
à entrevista ele me ligou e disse que tinha gostado tanto da conversa que
escreveu uma canção para o movimento, e começou a cantá-la pelo telefone: era
Power to the People."
Leia
a seguir uma tradução da entrevista publicada no site norte-americano
CounterPunch, que hoje conta com Ali e Blackburn como colunistas.
Tariq
Ali: Seu último álbum [John Lennon/Plastic Ono Band, 1970] e suas declarações
públicas recentes, especialmente as entrevistas à revista Rolling Stone,
sugerem que seus pontos de vista estão se tornando cada vez mais radicais e
políticos. Quando isso começou a acontecer?
John
Lennon: Sempre tive certa consciência política, sabe, contra o status quo. É
algo bem básico quando você é criado, como eu fui, para odiar e temer a polícia
como um inimigo natural, a desprezar o Exército como algo que leva todos embora
e deixa-os para morrer em algum lugar.
O
que eu quero dizer é que é uma coisa básica da classe trabalhadora, apesar de
diminuir quando você envelhece, forma uma família e é engolido pelo sistema.
No
meu caso, eu sempre fui uma pessoa preocupada com política, apesar de a
religião ter ofuscado este lado nos meus dias de ácido; isso por volta de 1965
ou 66. E aquela religião era o resultado direto de toda aquela merda de
superstar – a religião era um escape para a minha repressão. Pensava:
"Bom, há algo além da vida, não há? Não é só isso aqui, né?".
Mas
sempre fui político, de certa forma, sabe. Nos dois livros que escrevi, ainda
que tenham sido escritos num estilo joyceano, há muitas críticas à religião e
há uma peça sobre um trabalhador e um capitalista. Tenho satirizado o sistema
desde minha infância. Eu fazia revistas na escola e entregava-as por aí.
Eu
tinha muita consciência de classe, pode-se dizer até que eu tinha certo rancor,
porque eu sabia o que acontecia comigo e sabia sobre a repressão de classe que
nos era imposta. Aquilo era uma porra de um fato, mas no meio do furacão do
mundo Beatle isso ficou de fora, me distanciei cada vez mais da realidade
durante um tempo.
TA:
Qual foi o motivo, em sua opinião, para o sucesso do seu tipo de música?
JL:
Bom, na época acreditava-se que os trabalhadores tinham ganhado espaço, mas
percebo agora, olhando para trás, que é o mesmo acordo fajuto que deram aos
negros, era como se permitissem aos negros ser corredores ou boxeadores ou
personagens na indústria do entretenimento. É a escolha que é oferecida: agora,
a saída é tornar-se uma estrela do pop, que é sobre o que falo no álbum na
canção Working class hero. Como contei à Rolling Stone, as mesmas pessoas
continuam no poder, o sistema de classes não mudou nada.
Claro,
agora há várias pessoas andando por aí com cabelo longo, e alguns jovens
moderninhos da classe média com roupas bonitas. Mas nada mudou, exceto que
todos nos vestimos melhor, deixando os mesmos desgraçados no comando de tudo.
Robin
Blackburn: Obviamente, classe é um assunto que os grupos de rock
norte-americanos ainda não abordaram.
JL:
Porque todos são da classe média e da burguesia, e não querem mostrar isso.
Eles têm medo dos trabalhadores, na verdade, porque nos Estados Unidos os
trabalhadores parecem ser basicamente de direita, agarrados a suas posses. Mas
se esses grupos de classe média perceberem o que acontece, e o que o sistema de
classes fez, está nas mãos deles repatriar as pessoas e sair de toda essa merda
burguesa.
TA:
Quando você começou a sair do papel imposto a você como um Beatle?
JL:
Mesmo durante o apogeu dos Beatles, eu tentava ir na contramão, assim como
George. Fomos para os Estados Unidos algumas vezes e [Brian] Epstein
[empresário do grupo] sempre tentava nos convencer a não falar nada sobre o
Vietnã. Até que chegou uma hora em que eu e George dissemos: "Olha, quando
perguntarem da próxima vez, vamos dizer que não aprovamos essa guerra e achamos
que eles precisam sair dela". Foi o que fizemos. Naquela época, era algo
bem radical a se fazer, especialmente para os "Fab Four". Foi a
primeira oportunidade que pessoalmente tive de levantar uma bandeira.
Mas
é preciso lembrar que sempre me senti reprimido. Tinha tanta pressão sobre nós
que mal tínhamos chance de nos expressar, especialmente com aquele ritmo de
trabalho, fazendo turnês sem parar e sempre dentro de um casulo de mitos e
sonhos. É bem difícil quando se é César e todos estão dizendo o quão
maravilhoso você é, e lhe dão todos os presentes e todas as garotas, é bem
difícil sair disso, dizer: "Bom, não quero ser rei, quero ser real".
Então de certa forma a segunda atitude política que eu tive foi dizer "os
Beatles são maiores que Jesus". Isso realmente mudou o jogo, quase levei
um tiro nos Estados Unidos por ter dito aquilo. Foi um grande trauma para todos
que estavam nos seguindo. Até então havia essa política silenciosa de não
responder às perguntas delicadas, mas sempre li o jornal, sabe, a seção sobre
política.
A
consciência sobre o que estava acontecendo fez com que eu sentisse vergonha de
não dizer nada. Eu explodi porque não conseguia mais jogar aquele jogo, era
demais para mim. Claro, ir para os Estados Unidos acumulou ainda mais esse
sentimento dentro mim, especialmente porque a guerra era de lá. De certa forma,
viramos um cavalo de Tróia. O "Fab Four" foi até o ápice, eles
cantaram sobre sexo e drogas, e daí eu comecei a me meter com coisas mais e
mais pesadas e foi aí que começaram a nos abandonar.
RB:
Não tinha um duplo sentido no que vocês faziam desde o começo?
Yoko
Ono: Vocês sempre foram muito diretos.
JL:
Sim, bom, a primeira coisa que fizemos foi proclamar nossa “Liverpoolnisse”
para o mundo, e dizer: "Tudo bem vir de Liverpool e falar desse
jeito". Antes, qualquer um de Liverpool que fizesse sucesso, como Ted Ray,
Tommy Handley, Arthur Askey, tinha de abandonar o sotaque para chegar à BBC.
Eles eram apenas comediantes, mas era isso que saía de Liverpool antes de nós.
Recusamos-nos a entrar nesse jogo. Depois que os Beatles surgiram, todos
começaram a fingir sotaque de lá.
TA:
De certa forma você estava pensando sobre política até mesmo quando parecia
criticar a revolução?
JL:
Ah, sim, [a canção] Revolution. Havia duas versões da música, mas os grupos de
esquerda só se ligaram na que dizia “count me out” [“me inclua fora dessa”, em
tradução livre]. A versão original que ficou no LP também dizia “count me in”
[“conte comigo”]; eu coloquei os dois porque eu não tinha certeza. Havia uma
terceira versão que era simplesmente abstrata, musique concrète [música
concreta], com loops e coisas do tipo, pessoas gritando. Achei que estava
pintando em som um quadro da revolução – mas cometi um erro, sabe. O erro foi
que [a canção] era antirrevolução.
Na
versão lançada como single eu dizia: “When you talk about destruction you can count
me out” [“Quando você falar em destruição, me inclua fora dessa”, em tradução
livre]. Eu não queria ser morto. Eu não sabia tanto assim sobre os maoistas, só
sabia que eles pareciam ser tão poucos e ainda assim se pintavam de verde e
ficavam em pé diante da polícia esperando ser apanhados. Eu só achei que aquilo
não era muito sutil, sabe. Achava que os revolucionários comunistas originais
se organizavam um pouco melhor e não saiam por aí anunciando isso. Era isso o
que eu sentia; na verdade, eu estava fazendo uma pergunta. Como alguém que vem
da classe trabalhadora, eu sempre me interessei pela Rússia e pela China e em
tudo que tinha alguma relação com a classe trabalhadora, ainda que eu estivesse
jogando o jogo capitalista.
A
certa altura eu estava tão envolvido em toda a merda religiosa que ia por aí me
chamando de comunista cristão, mas, como [Arthur] Janov diz, religião é a
loucura legalizada. Foi a terapia que me livrou disso tudo e me fez sentir a
minha própria dor.
RB:
Esse psicanalista que você foi, qual é o nome dele...
JL:
Janov …
RB:
As ideias dele parecem ter algo a ver com [R. D.] Laing, no sentido de que ele
não quer reconciliar as pessoas com suas próprias misérias, ajustá-las ao
mundo, mas, em vez disso, fazê-las encarar as causas?
JL:
Bom, o lance dele é sentir a dor que está acumulada dentro de você desde a
infância. Eu tive de fazer isso para realmente matar todos os mitos religiosos.
Na terapia, você realmente sente cada momento de dor da sua vida, é uma dor
insuportável, você é forçado a perceber que a sua dor, aquela que lhe faz
acordar com medo e com o coração martelando, é realmente sua e não o resultado
de alguém lá no céu. É o resultado dos seus pais e do seu ambiente.
Conforme
percebi isso, tudo começou a se encaixar. Essa terapia me forçou a me livrar de
toda essa merda de Deus. Ao crescermos, todos nós aceitamos muita dor. Apesar
de reprimirmos, ela ainda está lá. A pior dor é a de não ser desejado, de
perceber que seus pais não precisam de você da forma que você precisa deles.
Quando
eu era criança, vivenciei momentos em que não queria ver a feiura, não queria
ver que não era desejado. Essa falta de amor entrou nos meus olhos e na minha
mente. Janov não somente fala com você sobre isso, mas faz com que você sinta
isso. Quando você se permitir sentir outra vez, você fará a maior parte do
trabalho sozinho.
Quando
você acorda e seu coração bate acelerado, ou suas costas parecem tensas, ou
você desenvolve outro problema, você deve deixar a mente ir até a dor e a
própria dor irá regurgitar a memória que originalmente fez com que você a
suprimisse no corpo. Desse jeito, a dor vai para o canal certo em lugar de ser
reprimida outra vez, como acontece quando você toma pílulas ou um banho,
dizendo: "Bom, vou superar isso". A maioria das pessoas canaliza a
dor em Deus ou na masturbação ou no sonho de se dar bem na vida.
A
terapia é como uma viagem de ácido muito lenta que acontece naturalmente no
corpo. É difícil conversar sobre isso, sabe, porque – você sente "estou
com dor" e parece meio arbitrário, mas a dor agora tem um significado
diferente para mim, porque senti fisicamente todas essas repressões
excepcionais. Foi como tirar um par de luvas e sentir a própria pele pela
primeira vez.
É
meio chato dizer isso, mas não acho que dá para entender a não ser que você
tenha passado por algo parecido – ainda que eu tenha tentado colocar um pouco
disso no álbum. Mas para mim, de qualquer modo, era tudo parte da dissolução da
viagem de Deus ou de uma figura paterna. Encarar a realidade em vez de sempre
procurar por algum tipo de paraíso.
RB:
Você vê a família, em geral, como fonte dessas repressões?
JL:
Meu caso é extremo, sabe. Meu pai e minha mãe se separaram e nunca vi meu pai
até ter 20 anos, não vi minha mãe muito mais do que isso. Mas Yoko tinha os
pais presentes, e foi a mesma coisa...
YO:
Talvez haja mais dor quando os pais estão presentes. É como quando você tem
fome, sabe, é pior se você tem uma imagem de um sanduíche do que nenhum
sanduíche. Não faz bem, sabe. Muitas vezes desejei que minha mãe estivesse
morta, assim pelo menos eu teria a compaixão das pessoas. Mas lá estava ela,
uma mãe perfeitamente linda.
JL:
E a família de Yoko era classe média japonesa, mas é sempre a mesma repressão.
Embora eu ache que as pessoas da classe média têm um trauma maior se possuírem
pais com boa aparência, sorridentes e embonecados. Estes têm mais dificuldade
em dizer: "Adeus, mamãe, adeus, papai".
TA:
Qual é a relação de tudo isso com sua música?
JL:
Arte é apenas uma forma de expressar a dor. Por exemplo, o motivo pelo qual
Yoko faz coisas extremas, de vanguarda, é ela ter passado por dores extremas.
RB:
Muitas das canções dos Beatles eram sobre infância...
JL:
É, essas eram basicamente eu...
RB:
Apesar de serem muito boas, sempre faltava algo...
JL:
Isso seria a realidade, esse algo que faltava. Porque eu nunca fui desejado. A
única razão pela qual sou famoso é a minha repressão. Nada teria me feito
passar por tudo aquilo se eu fosse “normal”...
YO: E feliz …
JL:
O único motivo pelo qual segui nessa direção é que eu queria dizer: "E
agora, mamãe-papai, vocês me amam?"
TA:
Mas aí você atingiu um sucesso inimaginável para a maioria das pessoas…
JL:
Jesus Cristo, era só opressão. Tivemos de passar por humilhação atrás de
humilhação com as classes médias e o showbiz e Senhores Prefeitos e tudo isso.
Eles eram tão condescendentes e estúpidos. Todos tentando nos usar. Foi uma
humilhação especial para mim porque eu nunca conseguia ficar calado e sempre
precisava estar bêbado ou drogado para neutralizar a pressão. Era um verdadeiro
inferno...
YO:
Privava-o de qualquer experiência real, sabe...
JL:
Era miserável. Quer dizer, a não ser aquela primeira sensação de ter conseguido
chegar lá – o entusiasmo do primeiro álbum número um, da primeira viagem aos
Estados Unidos. No início tínhamos certo objetivo como ser tão grande quanto
Elvis – seguir em frente era o grande foco, mas, na verdade, alcançar o sucesso
foi a grande decepção. Percebi que tinha de agradar continuamente o mesmo tipo
de pessoa que eu sempre odiei quando criança. Isso começou a me trazer de volta
à realidade.
Comecei
a perceber que somos todos oprimidos, e é por isso que eu gostaria de fazer
algo sobre isso, apesar de não saber bem onde me encaixar.
RB:
Bom, de qualquer jeito, política e cultura estão conectadas, não estão? Quer
dizer, trabalhadores são reprimidos pela cultura, e não pelas armas, neste
momento...
JL:
São dopados…
RB:
E a cultura que os está dopando pode ser construída ou destruída pelo
artista...
JL:
É o que tenho tentado fazer nos meus álbuns e nestas entrevistas. O que estou
tentando fazer é influenciar todas essas pessoas que posso influenciar.
Alcançar todos aqueles que ainda estão sonhando e colocar um grande ponto de
interrogação nas suas mentes. Os sonhos de ácido acabaram, é o que estou
tentando dizer.
RB:
Mesmo no passado algumas pessoas usavam músicas dos Beatles e davam-lhes novas
palavras. “Yellow Submarine”, por exemplo, teve várias versões. Numa delas
grevistas cantavam “We all live on bread and margarine” ["Todos vivemos de
pão e margarina"]; na LSE [Escola de Economia de Londres] tínhamos uma
versão que começava com “We all live in a Red LSE” ["Todos vivemos numa
LSE vermelha"].
JL:
Gostei disso. Eu curtia quando torcidas de futebol cantavam nos primeiros anos
“All together now” ["Todos juntos agora"]. Eu também fiquei contente
quando o movimento nos Estados Unidos passou a usar “Give peace a chance” [“Dê
uma chance à paz”], porque eu realmente tinha escrito a música com aquilo na
cabeça. Esperava que em vez de cantarem “We shall overcome”, de 1800 e bolinha,
eles usassem algo contemporâneo. Naquela época eu já sentia a obrigação de
fazer uma música que as pessoas cantassem no pub ou numa manifestação. Por isso
eu gostaria de compor canções para a revolução agora...
RB:
Temos apenas algumas canções revolucionárias e elas foram compostas no século
19. Você vê alguma coisa em nossas tradições musicais que poderiam ser usadas
na criação de canções revolucionárias?
JL:
Quando comecei, o próprio rock'n'roll era a principal revolução para as pessoas
da minha idade e do meu contexto. Precisávamos de algo em alto e bom som para
penetrar toda a insensibilidade e repressão à qual éramos submetidos enquanto
crianças. A princípio tínhamos um pouco de receio de ser imitações de
norte-americanos. Mas mergulhamos na música e descobrimos que ela era metade música
country branca e ocidental, e metade rhythm and blues negro. A maioria dos
estilos vinha da Europa e da África, e agora voltavam para nós. Muitas das
melhores músicas do Dylan vieram da Escócia, Irlanda ou Inglaterra. Era como um
intercâmbio cultural.
Mas
preciso dizer que as canções mais interessantes para mim eram as negras, porque
eram mais simples. Elas meio que diziam balance a bunda, ou o pau, o que era de
fato uma inovação. E então havia as canções do campo [canções de pessoas negras
sobre o trabalho rural], basicamente expressando a dor que sentiam. Elas não
podiam se expressar intelectualmente, então tinham de dizer em poucas palavras
o que acontecia com elas. E aí havia o blues urbano, e grande parte disso era
sobre sexo e brigas.
Muito
disso era autoexpressão, mas só nos últimos anos elas se expressaram
completamente com o movimento Black Power, como com Edwin Starr [cantor de
soul] gravando discos sobre a guerra [do Vietnã]. Antes disso, muitos cantores
negros ainda se trabalhavam sobre questão de Deus; muitas vezes era "Deus
irá nos salvar". Mas, no meio disso, pessoas negras cantavam abertamente e
prontamente sobre sua dor e também sobre sexo, e é por isso que eu gosto dessa
música.
RB:
Você afirma que o country e a música ocidental vieram de canções folk
europeias. Estas canções não tinham um conteúdo bem baixo-astral às vezes,
falando só em perder e ser derrotado?
JL:
Quando crianças, todos éramos contra as canções folk porque elas eram muito
classe média. Eram estudantes universitários com grandes echarpes e um copo de
cerveja na mão cantando músicas folk em vozes pretensiosas: “I worked in a mine
in New-cas-tle” [“Eu trabalhava em uma mina em New-cast-le”] e essa merda toda.
Havia raríssimos cantores folk de verdade, sabe, mas eu gostava um pouco de
Dominic Behan [compositor irlandês] e havia coisa boa para ouvir em Liverpool.
Eventualmente você ouve discos bem velhos na rádio ou na televisão de
verdadeiros trabalhadores da Irlanda ou de algum outro lugar cantando essas
canções, e o poder delas é fantástico.
Mas,
na maioria das vezes, a música folk é cantada por pessoas com vozes agudas
tentando manter vivo algo velho e morto. É meio tedioso, como o balé: um lance
de uma minoria sendo mantido por uma minoria. A música folk de hoje é o rock
and roll. Apesar de vir dos Estados Unidos, isso não é realmente importante no
fim das contas, porque escrevemos nossa própria música e isso mudou tudo.
RB:
Seu álbum, Yoko, parece misturar música moderna de vanguarda com rock. Eu
gostaria de contar uma ideia que tive ao ouvi-lo. Você integra sons do
cotidiano, como do trem, dentro de um padrão musical. Isso parece demandar uma
medida estética da vida cotidiana, insistir que a arte não deve ser aprisionada
aos museus e às galerias, não?
YO:
Exatamente. Quero incitar as pessoas a livrarem-se das suas opressões ao dá-las
algo com que possam trabalhar, construir. Elas não deveriam temer criar algo
por conta própria, é por isso que faço coisas que são muito abertas, com coisas
para as pessoas fazerem, como no meu livro [Grapefruit].
Porque
basicamente há dois tipos de pessoas no mundo: pessoas que são confiantes
porque sabem que têm habilidade para criar, e pessoas que foram desmoralizadas,
que não têm confiança em si mesmas porque alguém disse para elas que não
possuem nenhuma habilidade criativa, mas que apenas devem acatar ordens. O
establishment gosta das pessoas que não se responsabilizam e não conseguem se
respeitar.
RB:
Imagino que o controle de trabalhadores seja sobre isso...
JL:
Eles não tentaram algo assim na Iugoslávia? Eles estão livres dos russos. Eu
queria ir para lá e ver como funciona.
TA:
Bom, tentaram. Tentaram romper com o padrão stalinista. Mas, em vez de permitir
um controle mais solto dos trabalhadores, adicionaram uma dose alta de burocracia
política. Ela tende a sufocar a iniciativa dos trabalhadores, e também
regularam todo o sistema através de um mecanismo de mercado que gerou novas
desigualdades entre uma região e outra.
JL:
Parece que todas as revoluções terminam com um culto a uma personalidade – até
mesmo os chineses parecem necessitar de uma figura paterna. Acho que acontece
em Cuba, também, com Che e Fidel. Num comunismo estilo ocidental, teríamos de
criar uma imagem quase imaginária dos próprios trabalhadores como uma figura
paterna.
RB:
É uma ideia bem legal: a Classe Trabalhadora torna-se sua própria Heroína.
Contanto que não seja uma ilusão reconfortante, contanto que haja um poder real
nas mãos dos trabalhadores. Se um capitalista ou um burocrata manda na sua
vida, então é preciso compensar com ilusões.
YO:
As pessoas precisam confiar nelas mesmas.
TA:
Esse é o ponto vital. A classe trabalhadora deve ser incutida com um sentimento
de confiança nela mesma. E isto não tem como ser feito só via propaganda, os
trabalhadores devem se movimentar, assumir suas próprias fábricas e mandar os
capitalistas caírem fora. Isso é o que começou a acontecer em maio de 1968 na
França... Os trabalhadores começaram a sentir sua própria força.
Ouça
a entrevista na íntegra, em inglês
https://youtu.be/zYlRoG7P_FU
JL:
Mas o Partido Comunista não ficou muito contente com isso, não foi?
RB:
Não, não ficou. Com 10 milhões de trabalhadores em greve, eles poderiam ter
liderado uma dessas manifestações gigantes que aconteceram no centro de Paris e
levado a uma ocupação massiva de todos os edifícios e complexos do governo,
substituindo De Gaulle com uma nova instituição de poder popular, como a Comuna
ou os Sovietes [conselhos operários russos] originais. Isso teria iniciado uma
verdadeira revolução, mas o PC francês tinha medo. Eles preferiram negociar no
topo do que encorajar os trabalhadores a tomarem iniciativas próprias...
JL:
Ótimo, mas tem um problema sobre isso aqui [no Reino Unido], sabe. Todas as
revoluções aconteceram quando um Fidel ou um Marx ou um Lenin ou quem fosse,
que eram intelectuais, conseguiram chegar aos trabalhadores. Juntaram um bom
grupo de pessoas e os trabalhadores pareciam entender que estavam num estado de
repressão. Aqui eles ainda não acordaram, ainda acreditam que carros e
televisões são a resposta. Você deveria pegar esses estudantes da esquerda e
levá-los para conversar com os trabalhadores, você deveria envolver as crianças
em idade escolar com o Red Mole [jornal do Grupo Internacional Marxista, onde
essa entrevista foi publicada originalmente].
TA:
Você está certo, temos tentado fazer isso e devemos fazer mais. Esse novo
projeto de lei das Relações Industriais [Industrial Relations Act, tentava
centralizar negociações num sindicato formal] que o governo está tentando
introduzir está fazendo com que mais e mais trabalhadores percebam o que está
acontecendo...
JL:
Eu não acho que essa lei funcionará. Não acho que eles conseguirão fazê-la ser
cumprida. Não acho que os trabalhadores cooperarão com ela. Pensei que o governo
de [Harold] Wilson fosse um grande desapontamento, mas este [Edward] Heath é
bem pior. Os movimentos de contracultura estão sendo intimidados, os militantes
negros nem podem mais viver em suas próprias casas, e eles estão vendendo mais
armas para os sul-africanos. Como Richard Neville disse, a diferença entre
Wilson e Heath é mínima, mas é neste mínimo em que vivemos...
TA:
Não sei se penso assim; o Partido Trabalhista trouxe medidas de imigração
racistas, apoiou a guerra no Vietnã e queria criar uma nova legislação
sindical.
RB:
Pode ser verdade que vivemos no mínimo de diferença entre o Partido Trabalhista
e o Conservador, mas enquanto vivermos assim seremos impotentes e incapazes de
mudar qualquer coisa. Se Heath nos forçar para fora desse mínimo, talvez ele
nos faça um grande favor sem nem pretender...
JL:
Sim, também já pensei nisso. Neste encurralar de forma que tenhamos de
descobrir o que está sendo imposto a outras pessoas. Eu fico lendo o Morning
Star [jornal comunista] para ver se há esperança, mas ele parece estar no
século 19, parece escrito para desistentes liberais de classe média.
Deveríamos
tentar alcançar os trabalhadores jovens, porque é nessa idade que você está
mais idealista e tem menos medo.
De
alguma forma, os revolucionários devem abordar os trabalhadores, porque os
trabalhadores não irão abordá-los. Mas é difícil saber por onde começar, todos
estamos segurando as pontas. A dificuldade para mim é que me tornei mais real,
me afastei da maioria das pessoas da classe trabalhadora. Você sabe que eles
gostam é de Engelbert Humperdinck [cantor pop]. São os estudantes que estão
comprando nossa música agora, e esse é o problema. Agora os Beatles são quatro
pessoas separadas, não temos mais o impacto que tínhamos quando estávamos juntos.
RB:
Agora você está tentando nadar contra a correnteza da sociedade burguesa, o que
é muito mais difícil.
JL:
Sim, eles são donos de todos os jornais e controlam toda a distribuição e
divulgação. Quando começamos havia apenas Decca, Philips e EMI que podiam
realmente produzir um álbum. Era preciso passar por toda a burocracia para
entrar no estúdio e gravar. Você estava numa posição tão humilde, não tinha
mais do que 12 horas para fazer um álbum inteiro, que é como fazíamos nos primeiros anos.
É
a mesma coisa agora; se você é um artista desconhecido, você tem sorte de ter
uma hora num estúdio. É uma hierarquia e, se você não tiver canções de sucesso,
você não será gravado outra vez. E eles controlam a distribuição. Tentamos
mudar isso com a Apple, mas no fim fomos derrotados. Eles ainda controlam tudo.
A EMI matou o nosso álbum Two Virgins porque eles não gostaram. No último disco
eles censuraram as letras das músicas impressas no encarte. Ridículos e
hipócritas da porra. Eles são obrigados a me deixar cantá-las, mas não ousam
deixar que você as leia. Insano.
RB:
Apesar de você alcançar menos pessoas agora, talvez o efeito seja mais
concentrado.
JL:
Sim, acho que pode ser verdade. Para começar, as pessoas da classe trabalhadora
reagiram contra a nossa abertura com relação a sexo. Elas têm medo da nudez,
estão reprimidas dessa forma também, além das outras. Talvez tenham pensado:
"Paul é um cara bacana, ele não faz bagunça".
E
também quando me casei com Yoko, recebemos cartas racistas horríveis, sabe, me
avisando que ela cortaria minha garganta. A maioria dessas cartas vinha de
pessoas do Exército que vivem em Aldershot [cidade no sul da Inglaterra].
Militares.
Agora
os trabalhadores são mais amigáveis conosco, então talvez isso esteja mudando.
Parece-me que os estudantes estão semiacordados, o suficiente para tentar
acordar seus irmãos trabalhadores. Se você não transmite sua própria
consciência, ela então se fecha outra vez. Por isso que é necessário que os
estudantes se envolvam com os trabalhadores e os convençam de que não estão
falando besteira. E, claro, é difícil saber o que os trabalhadores estão
realmente pensando porque a imprensa capitalista sempre cita porta-vozes como
Vic Feather [secretário geral da TUC, uma central sindical do Reino Unido, de
1969 a 1973.]
Então
a única possibilidade é falar com eles diretamente, especialmente os
trabalhadores mais jovens. Precisamos começar com eles, porque eles sabem que
são contrários. É por isso que falo de escola no álbum. Gostaria de incitar as
pessoas a quebrar paradigmas, desobedecer na escola, mostrar a língua, insultar
as autoridades.
YO:
Somos realmente muito sortudos, porque podemos criar nossa própria realidade,
eu e John, mas sabemos que a coisa mais importante é comunicar-se com os
outros.
JL:
Quanto mais encaramos a realidade, mais percebemos que a irrealidade é a agenda
do dia. Quanto mais reais nos tornamos, mais porrada levamos, então, de certa
forma, isso nos torna mais radicais, é como ser encurralado. Mas seria melhor
se houvesse mais de nós.
YO:
Não podemos nos comunicar com as pessoas de forma tradicional, especialmente
com o establishment. Deveríamos surpreender as pessoas dizendo coisas novas de
formas completamente novas. Este tipo de comunicação pode ter um poder
fantástico, desde que você não faça só o que esperam que você faça.
RB:
Comunicação é vital para construir um movimento, mas, no fim, é impotente, a
não ser que você também tenha desenvolvido o poder do povo.
YO:
Acho muito triste quando eu penso sobre o Vietnã, onde parece não haver nenhuma
escolha além da violência. A violência tem se prolongado há séculos,
perpetuando a si mesma. Na época atual, com a comunicação tão rápida,
deveríamos criar uma tradição diferente, tradições são criadas todos os dias.
Cinco anos agora é como 100 anos antes. Estamos vivendo numa sociedade que não
tem história. Não há precedente para este tipo de sociedade, então podemos
quebrar os velhos padrões.
TA:
Nenhuma classe dominante em toda a história abriu mão do poder voluntariamente
e não vejo nenhuma mudança neste sentido.
YO:
Mas a violência não é apenas algo conceitual, sabe. Eu vi um programa sobre
esse garoto [soldado] que tinha voltado do Vietnã, ele perdeu o corpo da
cintura para baixo. Ele era só um pedaço de carne, e ele disse: "Bom, acho
que foi uma boa experiência".
JL:
Ele não queria encarar a verdade, ele não queria pensar que tudo tinha sido em
vão...
YO:
Mas imagine a violência, ela pode atingir seus filhos...
RB:
Mas, Yoko, as pessoas que lutam contra a opressão são atacadas por aquelas que
não têm interesse algum na mudança, aquelas que querem proteger seus poderes e
suas riquezas. Olhe para as pessoas em Bogside [bairro católico na periferia de
Derry] e Falls Road [a rua principal da zona oeste de Belfast, predominada pela
classe trabalhadora] na Irlanda do Norte, eles foram atacados impiedosamente
pela unidade especial da polícia porque começaram uma manifestação pelos seus
direitos. Numa noite, em agosto de 1969, sete pessoas foram mortas e milhares
arrancadas de seus lares. Eles não tinham direito de se defender?
YO:
É por isso que se deve tentar lidar com esses problemas antes de situações como
essa acontecerem.
JL:
Sim, mas o que você faz quando acontece, o que você faz?
RB:
Violência por parte do povo contra seus opressores é sempre justificada. Não
pode ser impedida.
YO:
Mas, de certa forma, essa nova música mostrou que as coisas poderiam ser
transformadas por novos canais de comunicação.
JL:
Sim, mas, como eu já disse, nada mudou de verdade.
YO:
Bom, alguma coisa mudou e mudou para melhor. Tudo o que estou dizendo é que
talvez possamos fazer uma revolução sem violência.
JL:
Mas não há como tomar o poder sem luta...
TA:
Essa é a questão crucial.
JL:
Porque, quando se trata do âmago da questão, eles não deixarão as pessoas terem
nenhum poder, eles lhes darão todos os direitos para se apresentar e dançar
para eles, mas nenhum poder real...
YO:
A questão é, mesmo depois de uma revolução, se as pessoas não tiverem nenhuma
confiança nelas mesmas, elas terão novos problemas.
JL:
Depois da revolução há a dificuldade de manter as coisas rodando, de acertar
todos os pontos de vista diferentes. É natural que revolucionários tenham
diferentes soluções, que se dividam em grupos diferentes e então aprimorem-se,
essa é a dialética, não é? Mas, ao mesmo tempo, eles precisam se unir contra o
inimigo, para solidificar a nova ordem. Eu não sei qual é a resposta;
obviamente, Mao está consciente do problema e deixa a bola rolando.
RB:
O perigo é que, uma vez criado um estado revolucionário, uma nova burocracia
conservadora tende a se formar ao redor dele. Esse perigo parece aumentar
quando a revolução é isolada pelo imperialismo e há escassez de materiais.
JL:
Assim que o novo poder domina, eles precisam estabelecer um novo status quo só
para manter as indústrias e os trens funcionando.
RB:
Sim, mas uma burocracia repressora não necessariamente faz funcionar indústrias
e trens de uma forma melhor que os trabalhadores poderiam sob um sistema de
democracia revolucionária.
JL:
Sim, mas todos temos instintos burgueses dentro de nós, todos nos cansamos e
sentimos a necessidade de relaxar um pouco. Como você mantém tudo funcionando e
mantém o fervor revolucionário aceso depois de ter alcançado o que você se
propôs a alcançar? Claro que Mao conseguiu segurar lá na China, mas o que
acontecerá depois que Mao partir? Ele também usa o culto à personalidade.
Talvez isso seja algo necessário, como eu disse, todos precisam de uma figura
paterna.
Mas
eu estou lendo Khrushchev Remembers [memórias de Nikita Khrushchev, líder
soviético que implementou políticas de “desestalinização” da URSS]. Eu sei que
ele é meio jovem, mas ele parece achar que ter feito uma religião ao redor de
uma pessoa foi ruim; esta não parece ser parte da ideia comunista fundamental.
Mas as pessoas não deixam de ser pessoas, essa é a dificuldade.
Se
tomássemos o poder na Grã-Bretanha, então teríamos o trabalho de limpar a
burguesia e manter as pessoas num estado de mente revolucionário.
RB:
Na Grã-Bretanha, se não conseguirmos criar um novo governo popular – e aqui
isso basicamente significaria ter o poder nas mãos dos trabalhadores – um
governo realmente controlado pelas massas e que responda às massas, então não
poderíamos fazer a revolução em primeiro lugar. Só um governo que realmente
pertença aos trabalhadores, até nas raízes, poderia destruir o estado burguês.
YO:
Por isso será diferente quando a geração mais jovem assumir.
JL:
Eu acho que não precisa de muito para fazer os jovens seguirem adiante. Seria
preciso lhes dar um governo livre para poder atacar os conselhos locais ou
destruir as autoridades escolares, assim como os estudantes que romperam com a
repressão nas universidades. Já está acontecendo, mas as pessoas precisam se
unir mais.
E
as mulheres também são muito importantes, não podemos ter uma revolução que não
envolva e liberte as mulheres. É tão sutil a forma com que ensinam a
superioridade masculina.
Eu
levei um tempo para perceber que a minha masculinidade estava excluindo Yoko em
certas áreas. Ela é uma ativista roxa pela liberdade das mulheres e me mostrou
rapidamente onde eu estava errado, mesmo quando eu achava que estava apenas
agindo naturalmente. Por isso sempre me interesso em saber como os
autoproclamados radicais tratam as mulheres.
RB:
Sempre houve pelo menos o mesmo tanto de machismo na esquerda do que em
qualquer outro lugar – embora a ascensão do movimento pela liberdade das
mulheres tenha ajudado a resolver isso.
JL:
É ridículo. Como se pode falar sobre poder para o povo se não perceber que o
povo tem dois sexos.
YO:
Não há como amar alguém sem estar numa posição de igualdade com essa pessoa.
Muitas mulheres se apegam a homens por medo ou insegurança, e isso não é amor,
basicamente é o motivo pelo qual algumas mulheres odeiam homens...
JL:
E vice-versa…
YO:
Então se você possui uma escrava dentro de casa, como você espera fazer a
revolução fora dela? O problema para as mulheres é que se tentamos ser livres,
então naturalmente nos tornamos solitárias, porque muitas mulheres estão
dispostas a se escravizarem, e os homens geralmente preferem isso. Então você
sempre corre o risco: "Será que vou perder o meu homem?" É muito
triste.
JL:
Claro, Yoko já era bem ligada ao movimento de liberação das mulheres antes de
eu conhecê-la. Ela teve de batalhar pelo seu caminho em um mundo de homens – o
mundo da arte é completamente dominado por homens – então ela estava cheia de
fervor revolucionário quando nos conhecemos. Nunca houve dúvida: tínhamos de
ter uma relação 50-50 ou não havia relação, eu aprendi rapidamente. Ela
escreveu um artigo sobre mulheres na revista Nova mais de dois anos atrás no
qual ela dizia: "As mulheres são os pretos do mundo".
RB:
Claro que todos vivemos em um país imperialista que explora o Terceiro Mundo, e
até mesmo a nossa cultura está envolvida nisso. Houve um tempo em que as
músicas dos Beatles estavam direto na Voice of America [rádio oficial do
governo americano]...
JL:
Os russos diziam que éramos robôs capitalistas, o que éramos, suponho...
RB:
Eles foram bem idiotas em não ver que era algo diferente.
YO:
Vamos encarar esse fato: os Beatles foram a música folk do século 20 dentro do
contexto capitalista; eles não podiam fazer nada diferente se quisessem se
comunicar dentro desse contexto.
RB:
Eu estava trabalhando em Cuba quando Sgt. Pepper foi lançado e foi assim que
eles começaram a tocar rock na rádio pela primeira vez.
JL:
Bom, espero que eles vejam que o rock and roll não é a mesma coisa que a
Coca-Cola. À medida que nos afastamos do sonho isso deve ficar mais fácil: é
por isso que eu estou fazendo declarações cada vez mais pesadas agora, e
tentando sacudir a imagem de adolescente da moda.
Quero
atingir as pessoas certas, e quero dizer o que tenho a dizer de forma simples e
direta.
RB:
Seu último álbum me pareceu muito simples de início, mas as letras, os ritmos e
as melodias se juntam numa complexidade que é percebida aos poucos. Como a
faixa “My mummy's dead” [“Minha mamãe está morta”], que ecoa a canção de ninar
“Three blind mice” e trata de um trauma de infância.
JL:
O tom que faz isso; foi este tipo de sensação, quase como um poema haiku no
Japão, que eu acho fantástico. Obviamente, quando você se livra de toda uma
seção de ilusões da sua mente, o que resta é uma grande precisão.
Yoko
estava me mostrando alguns desses haiku no original. A diferença entre eles e
[Henry Wadsworth] Longfellow [poeta americano] é imensa. No lugar de um longo
poema todo florido, o haiku diria "flor amarela em tigela branca na tábua
de madeira", o que lhe dá o retrato completo, na verdade...
TA:
Como você acha que podemos destruir o sistema capitalista aqui na Grã-Bretanha,
John?
JL:
Acho que só conscientizando os trabalhadores da real situação infeliz em que
estão, destruindo o sonho que os circunda. Eles acham que estão num país
maravilhoso, com liberdade de expressão. Eles têm carros e televisões e não
querem pensar que tem algo a mais para viver. Eles estão preparados para deixar
que os chefes mandem neles, para ver suas crianças fodidas pela formação que
recebem na escola. Eles estão sonhando o sonho de outra pessoa, nem é deles
mesmos. Eles deveriam perceber que os negros e os irlandeses estão sendo
intimados e reprimidos e que eles serão os próximos.
Assim
que começarem a se conscientizar de tudo isso, podemos começar a fazer algo. Os
trabalhadores podem começar a assumir o controle. Assim como Marx disse:
"A cada qual, segundo suas necessidades". Acho que isso funcionaria
bem aqui. Mas também teríamos de infiltrar o Exército, porque eles são bem
treinados para matar a todos nós.
Precisamos
começar tudo isso a partir de onde somos oprimidos nós mesmos. Acho que é
falso, vazio, dar aos outros enquanto a sua própria necessidade é grande. A
ideia não é reconfortar as pessoas, não é fazê-las se sentir melhor, mas
fazê-las se sentir pior, para constantemente encararem as degradações e
humilhações às quais são submetidas para conseguir o que chamam de um salário
digno.
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