O
texto abaixo é de Claudia Wallin, jornalista brasileira radicada na Suécia.
Claudia é autora do livro Um país sem excelências e sem mordomias, no qual
mostra a simplicidade espartana dos políticos suecos.
Quanto
vale, data venia, um juiz?
A
dúvida é tão dilacerante quanto a atual temporada sueca de degustação do
surströmming, o arenque do Báltico fermentado que tem o inominável odor de mil
esgotos destampados.
Chamo
um magistrado sueco em busca de algum bom senso, e tento explicar o
inexplicável: no Brasil, digo a ele, juízes e procuradores da República
descumprem a Constituição ao receber vencimentos que excedem esplendidamente o
teto salarial permitido pela lei máxima do país, valendo-se de anabolizantes
como auxílio-moradia, auxílio-alimentação e auxílio-saúde.
“En
gång till”, me interrompe, atordoado, o magistrado Thed Adelswärd, especialista
em ética jurídica – “repita isso, por favor”.
“Imagine
que o anormal virou normal, nos labirintos do notório saber jurídico dos
guardiões da lei brasileira”, prossigo. “Mas no Brasil surgiu um juiz federal
que acendeu a esperança nos corações de milhões de brasileiros, que dizem não
aguentar mais a corrupção enraizada nas entranhas do governo”.
“Excelente”,
reage o magistrado sueco.
“O
juiz tem se mostrado implacável, ao encurralar integrantes do governo e levar
executivos das maiores empreiteiras do país à cadeia. Diz-se no Brasil que
pertence a uma rara safra de juízes, que encaram a magistratura como profissão
de fé”, continuo.
“Hum-hum”,
desdenha o sueco, como quem ouve uma duvidosa delação premiada.
“O
juiz chegou a batizar de “Erga Omnes” a última etapa da operação contra o que
seria o maior escândalo de corrupção da história brasileira, quiçá do mundo.
Mandou assim um recado: nada, nem ninguém, está acima da lei”, continuo.
“Correto”,
diz o magistrado, a um passo do anticlímax.
“O
problema é que acaba de ser revelado que o juiz federal, o herói da cruzada
contra a corrupção, também recebe vencimentos que ultrapassam o teto salarial
permitido pela Constituição”, relato.
Diz
o artigo 37 da Carta que funcionários públicos devem ser remunerados em parcela
única, sempre limitados ao salário do ministro do Supremo Tribunal, atualmente
de R$ 37,4 mil. Mas em abril, conforme informações do site Consultor Jurídico,
o salário do juiz chegou a R$ 77.423,66, por obra de auxílios para ajudar o
magistrado em despesas como alimentação e transporte.
“Há
ainda outros juízes que chegam a receber R$ 100 mil por mês”, digo ao juiz Thed
Adelswärd, chefe no tribunal da cidade de Lund e representante da Suécia na
Associação Internacional dos Magistrados (AIM), a maior organização mundial de
juízes.
“Isto
é imoral”, diz Adelswärd. “Se viola a Constituição do Brasil, não cabe dúvida.
Na Suécia, seria impensável. Juízes, em nosso país, sabem que têm o dever de
respeitar a Constituição, porque isso é parte fundamental do trabalho da
Justiça de um país.”
“Não
quero ser crítico em relação a nenhum juiz brasileiro, e também não me agrada
usar a palavra imoral. Mas a pergunta é – como é possível terem conseguido
obter todo esse dinheiro e tantos benefícios? – indaga-se o juiz.
“Respeito
o direito soberano de cada país de fazer as suas próprias escolhas, e é
importante que o salário de um juiz não seja baixo a ponto de tornar atraente
para ele aceitar subornos. Também conheço alguns juízes brasileiros, e eles me
dizem que a carga horária de trabalho dos magistrados brasileiros é muito
elevada. Mas para um juiz sueco, os vencimentos de um juiz brasileiro parecem
ser uma remuneração excessiva”, ele acrescenta.
O
juiz sueco não gostou do que ouviu sobre seus colegas brasileiros
Pergunto
se os tribunais suecos disponibilizam frotas de carros, para servir os
magistrados em seu trajeto de casa para o trabalho.
“É
evidente que não. Pedalo com frequência para a Corte, em minha bicicleta
Crescent de sete marchas que comprei com meu próprio salário há oito anos”, diz
Thed Adelswärd.
Pergunto
se magistrados suecos têm auxílio-moradia, auxílio-saúde, auxílio-creche,
auxílio-educação ou (como previsto na Loman, a nova Lei Orgânica da
Magistratura) auxílio-funeral.
“Absolutamente
não. Nenhum juiz sueco tem qualquer tipo de benefícios extras ou vantagens como
carros à disposição. Temos salários mensais, e é com nossos salários que
pagamos todas as nossas despesas”, enfatiza o magistrado.
Gostaria
de ser juiz no Brasil? – quero saber.
“Tenho
um excelente emprego na Suécia”, rebate diplomaticamente o juiz. “E não me
sentiria confortável em trabalhar nas condições em que parecem trabalhar os
juízes no Brasil. Em minha opinião, um juiz deve ter um padrão de vida
comparável ao dos cidadãos que deve julgar.”
Por
quê?
“Porque
juízes não devem formar uma classe à parte, e sim ser parte da sociedade.
Juízes devem ser pessoas capazes de compreender a situação em que vivem os
cidadãos comuns, pois detêm o poder de julgar”, diz o magistrado sueco.
“Imagino
que isso seja mais difícil no Brasil, onde a distância entre os ricos e pobres
é gigantesca. E a enorme desigualdade de um país sempre gera uma forte
criminalidade. Um país com maior igualdade social, como a Suécia, é mais capaz
de evitar níveis desproporcionais de violência”, observa Thed Adelswärd.
“Mas
o fato de juízes e promotores terem remuneração e vantagens excessivas pode ser
muito perigoso, e criar graves problemas sociais. Porque quando os cidadãos
perdem o respeito pela Justiça, eles passam a não respeitar as leis, e a fazer
justiça com as próprias mãos”, completa ele.
Volto
à pergunta original: quanto vale um juiz?
Peço
ao magistrado para revelar seu contracheque, e informar quanto paga em impostos
neste país – onde quem ganha mais, também paga tributos mais altos.
“Ganho
acima dos demais juízes, pois sou chefe de divisão do tribunal”, ele diz.
“Em
números exatos, meu salário é de 77.900 coroas suecas (cerca de R$ 33 mil. Em
impostos, pago um total de 32,340 coroas (R$ 13,7 mil). Sobram portanto, em
valores líquidos, cerca de 45 mil coroas suecas (aproximadamente R$ 19 mil). E
aqui na Suécia, o imposto geral sobre o consumo (IVA) é de 25%”, destaca Thed
Adelswärd.
Na
Suécia, a estrutura do poder judiciário é organizada em três níveis: os
tribunais distritais (Tingsrätt), os tribunais de recursos e apelações (Hovrätt
ou Kammarrätt) e o Supremo Tribunal (Högsta domstolen).
O
salário dos juízes dos tribunais distritais varia entre 57,500 e 61 mil coroas
suecas (aproximadamente entre R$ 24,3 mil e R$ 25,8 mil).
Nos
tribunais de apelação, os magistrados suecos recebem vencimentos de 58 mil a
61,5 mil coroas suecas (o equivalente a R$ 24,6 mil e R$ 26 mil,
respectivamente). O salário médio no país é de 27,3 mil coroas suecas.
Para
os integrantes da Suprema Corte – que na Suécia não têm status de ministro, e
nenhum benefício extra atrelado ao cargo -, a remuneração é de 99,7 mil coroas
suecas (cerca de R$ 42,2 mil).
“E
os reajustes salariais dos juízes tratam normalmente da reposição da perda
inflacionária anual, em torno de 2%”, lembra Kristina Mäler, do sindicato dos
juízes da Suécia (Jusek).
Sim,
existe um sindicato dos magistrados na Suécia. É assim que os juízes suecos,
assim como os trabalhadores de qualquer outra categoria, cuidam da negociação
de seus reajustes salariais.
A
negociação dos reajustes salariais da magistratura se dá entre o sindicato
Jusek e o Domstolsverket, a autoridade estatal responsável pela organização e o
funcionamento do sistema de justiça sueco.
Enquanto
isso, no País das Maravilhas, o procurador federal Carlos André Studart Pereira
alerta: o teto salarial dos integrantes do Judiciário e do Ministério Público
virou piso.
“Juízes
e membros do Ministério Público, sem qualquer peso na consciência, recebem
remunerações estratosféricas, estando total e vergonhosamente distorcido o
regime de pagamento por subsídio, em que é vedado o acréscimo de qualquer
gratificação, adicional, abono, premo, verba de representação ou outra espécie
remuneratória”, denuncia Carlos André, que escreveu a pedido da Associação
Nacional dos Procuradores Federais (Anpaf)
“Todos
os dias temos notícias de concessão de mais benefícios. O regime de subsídio
acabou. O teto remuneratório de R$ 33.763,00 virou piso. Parcelas claramente de
caráter remuneratório são rotuladas de indenizatória para fugir do abate-teto.
Foram criadas várias espécies de auxílios: auxílio-livro, auxílio- saúde,
auxílio-educação, auxílio-transporte, auxílio-táxi etc. Por outro lado, o
indivíduo que recebe um salário mínimo tem que se virar com R$788,00 para
custear, nos termos da Constituição, “suas necessidades vitais básicas e a de
sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário,
higiene, transporte e previdência social” (artigo 7o, inciso IV, CRFB).”
O
texto completo do procurador Carlos André Studart Pereira, “O Teto Virou Piso”,
é leitura obrigatória no site Consultor Jurídico:
http://s.conjur.com.br/dl/teto-virou-piso.pdf
E
como já se perguntava o poeta satírico Juvenal na Roma antiga: ”Quis custodiet
ipsos custodes?” – ”Quem vigia os vigias?”
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