A
mão que lavra a terra é a mesma que transforma os alimentos que cultivou em
doces, geleias e compotas. Da dureza à doçura, as mulheres têm papel
fundamental e estratégico na agricultura. Os versos de Cora Coralina, doceira,
poeta e agricultora, partilham a ideia de que várias mulheres convivem numa só:
“vive dentro de mim a mulher cozinheira (…); a mulher do povo (…); a mulher
roceira, (…), trabalhadeira, madrugadeira, bem parideira, bem criadeira (…)”.
Cora, também conhecida como Cora Coragem, retornou a sua terra natal aos 67
anos para começar a produzir doces. E foi aos 76 que começou a escrever.
Militou em diversas causas a favor da mulher, entre as quais o voto feminino.
Sua história é revivida repetidas vezes sem perder a força e graça na vida de
mulheres do campo.
A
reportagem é de Juliana Dias, publicada por AS-PTA, 20-08-2015.
É
o caso de Dona Juju, de 69 anos, moradora do município de Magé, Região
Metropolitana do Rio de Janeiro. De família de agricultores, nasceu e foi
criada na roça. Já foi cozinheira, costureira, garçonete, serviu cafezinho na
rádio Tupi, onde até fazia comentários no ar, mas foi na lavoura que encontrou
motivação e prazer. Ela conta das dificuldades em ser reconhecida como agricultora,
tanto pelo sindicato rural como pelas entidades governamentais de assessoria
técnica. O caminho para se manter na roça começou pelos doces. Numa cozinha
comunitária, junto com as amigas Lourdes e Guida, transformou sua colheita em
geleias e compotas.
Em
2008, vislumbrou a chance de apresentar sua produção doceira na Feira da
Agricultura Familiar e da Reforma Agrária (Fenapra), promovida pelo Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA), e que também tem o nome de Brasil Orgânico
Sustentável. Foi a partir deste evento que se aproximou do que ela chama de
“articulação”, ou seja, pessoas que incentivaram e auxiliaram a firmar os
passos no caminho escolhido: plantar e fazer doces. Uma dessas pessoas é Marcio
Mendonça, coordenador do programa de Agricultura Urbana da AS-PTA – Agricultura
Familiar e Agroecologia . “Os doces fizeram sucesso, as agricultoras venderam
muito e se sentiram empoderadas por participar de uma feira nacional. Fazem
referência até hoje a esse ocorrido”, lembra Mendonça.
Atualmente,
com a cozinha Colher de Pau, ela produz mais de 23 tipos de doces e farinhas,
como as de berinjela e quiabo. “Se me tirar da roça, não sobrevivo. É lá que
planto, colho e cozinho”, diz Juju. A amiga Guida acrescenta que “vive
aprendendo e ensinando porque todo dia aprende alguma coisa”. O ponto de
encontro dessas roceiras e doceiras é na feira, outro espaço de convívio e
reconhecimento de suas capacidades e autonomia. Como feirantes, trocam
receitas, ideias e saberes.
O
relacionamento com os fregueses é estimulante, pois se sentem valorizadas. “Sou
grata a Deus. Já fiz curso de tudo e aproveito toda a chance que tenho. A gente
fica com vontade de fazer o melhor. A feira é um lugar de troca de agricultura
e cozinha”, diz Neuza Benevides, de Guapimirim. Cecília Cantalejo, também de
Guapi, reconhece que às vezes dá um desânimo, mas logo emenda na conversa:
“Deus me dá força. Na dificuldade a gente vai aprendendo, o cliente vai
gostando e a gente fica feliz”.
Roceiras,
doceiras e poetas e gestoras do ambiente
O
escritor amazonense Aníbal Beça compara o fazer doce com o fazer poemas: “o
fruto palavra/ de doce mascavo/ repuxa viçoso/ no tacho da boca/ mel
caramelado”. O poeta português Agostinho Silva escreve que “a quem faz pão ou
poema/ só se muda o jeito à mão/ e não o tema”. Por isso, as mulheres da roça,
do doce, da feira, também são da prosa e da poesia.
Mesmo
em meio aos vários papeis que exercem no dia a dia, essas guerreiras não perdem
a força nem o riso. E se são indagadas sobre o que é ser agricultora, as
roceiras, doceiras e feirantes descobrem-se poetas. A poesia também é para
comer. Se a comida alimenta o corpo, as palavras alimentam a alma.
Na
opinião de Dona Juju, as mulheres são mais conscientes, pois são mais sensíveis
ao respeito e cuidado com a natureza. Essa consciência é destacada pela
presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea),
Maria Emília Pacheco. Ela considera as mulheres como produtoras de bens,
gestoras do ambiente e portadoras de uma lógica não destruidora da natureza.
Com isso, levantou a necessidade de empoderar as mulheres. Ela que também faz
parte do núcleo executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é
autora dos primeiros textos que reivindicam maior atenção à participação
feminina na agroecologia no Brasil.
Em
1997, Maria Emília atentou para a invisibilidade do trabalho da mulher na
agricultura e a importância das outras atividades produtivas que elas
desempenham na família, tais como os quintais, a criação de animais domésticos
e demais tarefas consideradas secundárias em relação às culturas comerciais. A
então presidenta do Consea propunha que os projetos agroecológicos
evidenciassem os espaços de produção em que as agricultoras assumiam papel
principal, reconhecendo-as como sujeitos produtivos.
De
acordo com Renata Souto, assessora técnica da AS-PTA que está à frente do
trabalho com as mulheres na região metropolitana do Rio de Janeiro, o programa
de Agricultura Urbana foi iniciado nos quintais das mulheres em 1999. A
proposta consistia em incentivar o uso dos quintais domésticos e outros espaços
dentro da comunidade para a prática da agricultura urbana. “O quintal é o lugar
da segurança alimentar, da tradição, da complementação da renda da família e de
estratégias de conservação da biodiversidade”, diz Renata. No lugar onde
florescem frutos e folhas que alimentam e cuidam de suas casas, florescem as
oportunidades para superar as condições desiguais das relações sociais de
gênero.
Marcio
Mendonça conta que no início a participação foi predominantemente feminina. “As
mulheres têm maior envolvimento com prática da agricultura nos quintais”,
afirma. Segundo ele o quintal, também conhecido como arredor de casa ou
terreiro, é domínio delas, expressão de sua criatividade e resistência. “Há muitos
casos em que elas são as principais responsáveis pela manutenção econômica da
família. Em especial, naqueles em que a família não segue o padrão
homem-mulher- filhos. Muitas são as chefes de família que cuidam sozinhas das
crianças. Em outras situações, vivem oprimidas dentro da própria casa na
sociedade machista. As mulheres encontram nos quintais o espaço para a
externalização dos seus sentimentos”, afirma.
Roceiras,
doceiras, poetas, gestoras do meio ambiente e empoderadas
O
feminismo é a base deste trabalho desenvolvido pela AS-PTA, que tem como ponto
de partida as experiências cotidianas, de acordo com a assessora Renata. Essa
metodologia é utilizada na região Metropolitana do Rio de Janeiro e no Polo da
Borborema, na Paraíba, onde a organização também atua. “O despertar é no dia a
dia e consideramos que dar visibilidade às experiências é o caminho inicial,
que abre as portas para todas as questões que o feminismo traz. O processo de
formação é dinâmico e contínuo”. Renata aponta a necessidade de construir e
fortalecer os espaços de diálogo e auto-organização, de onde emergem temas
comuns às mulheres, próximos de sua realidade, que abrem caminho para a
construção da autonomia e o enfrentamento dos desafios.
Na
região metropolitana do Rio de Janeiro, as cozinhas e as feiras agroecológicas
apoiadas pelo Projeto Alimentos Saudáveis nos Mercados Locais, com o Patrocínio
da Petrobras por meio do programa Petrobras Socioambiental, têm cumprido este
papel de espaço de encontro e reflexão onde se apura a dimensão social e
política da mulher na agricultura; onde elas experimentam a autonomia de
comercializar o que produzem diretamente com o consumidor e obter renda da
atividade. “Nos espaços de comercialização, elas cultivam e processam os
alimentos e se reinventam. Levam a diversidade de suas roças, a criatividade
com que cuidam de seus quintais, trocam experiências e tornam visível o seu
trabalho”. Daí a importância dos encontros coletivos com as mulheres, partindo
da experiência delas para tratar os problemas invisíveis ou ocultos.
E
mulheres que marcham, sempre em frente
Na
Paraíba, quem está à frente do trabalho com mulheres é Adriana Galvão,
assessora técnica da AS-PTA, que reforça o viés metodológico da organização
para atuar com a complexidade envolvida na presença da mulher no campo. “Essa
opção metodológica fez com que construíssemos na Paraíba um forte movimento de
mulheres. Em março desse ano, saímos nas ruas do município de Lagoa Seca com
mais de 5 mil mulheres na Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia”,
destaca. A marcha é uma atividade realizada desde 2010 pelo Polo da Borborema,
um fórum de sindicatos e organizações da agricultura familiar que congrega 14
municípios e mais de cinco mil famílias do Agreste da Borborema, que conta com
a assessoria da AS-PTA.
Na
Paraíba, o trabalho teve início em 2002 a partir de um diagnóstico sobre o
trabalho produtivo das mulheres, quando se construiu o conceito do Arredor de
casa. Em 2003, o Polo da Borborema constituiu a Comissão de Saúde e Alimentação,
espaço onde se passou a organizar o trabalho produtivo e a participação social
e política das mulheres. Adriana comenta que a instituição passou a indagar
como a agroecologia tem influenciado na superação das desigualdades. E em 2007,
a AS-PTA passou a problematizar junto à rede de agricultoras-experimentadoras
sobre as desigualdades. “O propósito é que elas se reconheçam em suas
capacidades, aprimorando suas habilidades produtivas.
O
quintal, espaço antes invisível, passa a ser visto como um local produtivo e de
visibilidade. Mais fortalecidas, passam também a problematizar sua vida e sua
condição como mulher”, explica. Os encontros regulares com a Coordenação
Ampliada do Polo também possibilitam momentos de formação e problematização das
desigualdades. “Utilizamos instrumentos pedagógicos como a literatura de
cordel, vídeos, teatros, vídeo-novelas e dinâmicas, buscando desnaturalizar as
desigualdades e todas as formas de violência contra a mulher, com foco na
justiça social”, esclarece a assessora.
Destaca-se
ainda a atuação da AS-PTA no Comitê Ana Alice, que foi constituído para o
enfrentamento da violência contra a mulher. O nome do comitê é homenagem a uma
jovem militante que foi estuprada e assassinada em 2012, crime que será julgado
no dia 18 de agosto próximo. A participação em outras frentes de luta renova o
ânimo e as forças. Por exemplo, o Polo participou da Marcha das Margaridas, das
trabalhadoras rurais em favor do desenvolvimento sustentável com “justiça,
autonomia, igualdade e liberdade”, que ocorreu entre os dias 11 e 12 de agosto,
em Brasília.
A
assessora sinaliza as mudanças que vêm ocorrendo, entre as quais, a ocupação
feminina nos 14 sindicatos que compõem o Polo, chegando a ter participação de
50% de homens e 50% de mulheres na Coordenação Executiva do Polo. “Percebemos
que as lideranças masculinas estão sensibilizadas. Mas é um processo de luta
contínuo. A revolução não está pronta. Temos muitos avanços, ora retrocessos,
mas a marcha segue em frente”, declara. Para Marcio, coordenador do programa de
Agricultura Urbana, a visão machista prevalece na sociedade, apesar dos avanços
conquistados. “Aos poucos é preciso que as mulheres ocupem mais espaços nas
associações, nas igrejas, nas cooperativas. É preciso que os homens reconheçam
o papel das mulheres e que as próprias rompam com as relações de subjugação, de
exploração, e de falta de reconhecimento”, complementa.
Adriana
acrescenta a experiência da última Marcha que foi capaz de envolver no processo
de preparação a Secretaria de Educação para formação de professores da zona
rural. Com isso, levam-se para a sala de aula os temas pertinentes à realidade
das agricultoras. Outra parceria importante é com o Centro de Referência da
Mulher para encaminhar casos de violência doméstica. “Como resultado claro
desse trabalho, as mulheres passam a enxergar que elas têm direitos e não mais
aceitam uma vida marcada pela violência”, conclui.
Com
base em pesquisas sobre o campesinato, a presidenta do Consea, Maria Emília,
demonstrou que a distribuição do produto do trabalho tende a ser mais
igualitária nos sistemas agrícolas, como o modelo agroecológico, em que a
mulher participa das decisões do planejamento e da forma de dispor os produtos.
Ela também apontou evidências de que quando se amplia a geração de renda
familiar com presença feminina, aumenta as opções estratégicas, criando-se,
assim, condições para que elas tivessem maior autonomia e poder de decisão.
De
acordo com a pesquisadora em desenvolvimento sustentável, Emma Siliprandi, a
invisibilidade feminina na agricultura familiar está vinculada às formas como
se organiza a divisão sexual do trabalho e de poder no modelo de produção
industrial, em que o homem comanda a unidade produtiva. Embora as agricultoras
trabalhem no conjunto da atividade (preparo do solo, plantio, colheita, criação
de animais, transformação de produtos e artesanato), só são reconhecidas pelas
atividades consideradas extensão do seu papel de esposa e mãe (preparo dos
alimentos, cuidado com os filhos). E, ainda assim, como status inferior, não
tem o mesmo peso das ocupações masculinas.
O
reconhecimento da mulher na produção de alimentos vem sendo reivindicada e
discutida com maior abrangência tanto nas organizações da sociedade civil,
entidades intergovernamentais e Estado. Em junho de 2015, foi realizado o
Seminário Regional de Agroecologia na América Latina e Caribe, que resultou num
documento oficial com compromissos de fortalecer a produção familiar, camponesa
e indígena, além da segurança alimentar por meio da agroecologia. As mulheres e
os jovens foram apontados como os guardiões da biodiversidade, especialmente
das sementes e das raças crioulas.
Essa
é uma luta constante, em que as mulheres, tal como escreveu Cora Coralina, vão
descobrindo as muitas mulheres que convivem numa só. É a roceira, a doceira, a
gestora do ambiente, a empoderada, a militante, a engajada, a guerreira, a
batalhadora e vencedora, que estão sempre em marcha.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/546022-agroecologia-contra-a-invisibilidade-feminina
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