"Como
em muitas outras matérias de interesse do povo, mesmo assim, o Congresso
Nacional deixa de prestar atenção ao que realmente interessa a quem o elegeu e
precisa de defesa, preferindo votar projetos de lei de acordo com o desejo da
classe social conjunturalmente mais barulhenta, preocupada exclusivamente com a
sua segurança pessoal, patrocinadora da mídia mais poderosa e acessada",
escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande
do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis
o artigo.
A
revista Mundo Jovem, da PUC/RS, já antecipou a sua edição de setembro-2015 com
esta pergunta, resumindo a resposta expressa pelo professor Rogerio Dultra dos
Santos, na entrevista por ele concedida ao mesmo periódico, com este
diagnóstico:
“No
país, pessoas são presas sem provas, são mantidas presas sem condenação e são
condenadas sem defesa. Isso acontece basicamente porque são pobres e não têm
capacidade jurídica de se defenderem. Se tivessem, dadas as arbitrariedades
próprias do sistema, dificilmente seriam presas”.
Presas
sem provas, mantidas sem condenação ou condenadas sem defesa e pobres, ou seja,
quase tudo quanto a lei, a própria Constituição Federal proíbem de forma
categórica.
Desde
a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, assinada depois da
segunda guerra e fazendo parte do ordenamento jurídico do Brasil, essas formas
de violação da liberdade das pessoas são vistas como intoleráveis. No art. 11,
por exemplo, determinou-se o seguinte:
“1.
Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente
até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em
julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias
necessárias à sua defesa.
2.
Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não
constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será
imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável
ao ato delituoso”.
Há
mais de 40 anos, quando essa declaração tinha completado 25 anos, Alceu Amoroso
Lima publicou “Os Direitos do Homem e o Homem sem Direitos” (Rio de janeiro:
Editora Francisco Alves, 1974) e, sobre a presunção de inocência, disse o seguinte:
“o princípio de presunção não é fruto de qualquer relaxamento dos laços
sociais, provocado por qualquer sentimentalismo ou liberalismo ou anarquismo
anômalos [...]. Por isso mesmo é que podemos condenar como antinaturais,
anti-históricas e anticientíficas todas as tendências ao relaxamento e ainda
mais ao desconhecimento desse princípio que parte da presunção da inocência e
não da presunção da culpa. [...] Como vimos, a Declaração dos Direitos Humanos
se baseia numa antropologia do bem comum e não do bem próprio. Parte do
reconhecimento de que o ser humano é um ser naturalmente pacífico e solidário e
só se torna belicoso e hostil por circunstâncias supervenientes. A consequência
prática dessa antropologia racional é que o texto do artigo registra. Embora os
códigos vigentes entre nós ainda registrem esse princípio, o que se vê é o
aumento da função policial em face da função judicial”.
Aos
problemas ligados, pois, às prisões de delinquentes em nosso país, é como se o
professor Alceu estivesse falando hoje, tão atual parece a análise que ele fez
ainda em meados do século passado. A/o adolescente, sob o crivo midiático
conjuntural, está sendo indiciado, processado e condenado na TV como um
criminoso comum e perigoso. A favor dele não há presunção de inocência.
Na
mesma entrevista colhida pelo “Mundo Jovem”, os dados relacionados com as
pessoas encarceradas no país, de tão repetidos e denunciados, custa crer
produzirem efeitos pouco significativos no que se relaciona com o seu urgente e
inadiável enfrentamento. Ali o professor Dultra noticia, entre outras
inconveniências, o fato de não existir relação direta entre soluções
repressivas e a diminuição da violência; o fato de, embora a legislação penal
estabelecer um preso por cela, “a administração do cárcere no Brasil achar
normal a contabilização de cinco presos por cela. Acima disso é que se
considera haver superlotação”.
Sobre
o motivo das prisões, o professor faz duas denúncias extraordinariamente
graves: “o crescente processo de privatização, que estimula artificialmente o
aumento de pessoas encarceradas, e a subordinação dos juízes criminais às
polícias militares, que realmente determinam quem vai preso no Brasil.”.
No
momento em que se discute tanto a maioridade penal diminuída para 16 anos, os
dados desta revista também são profundamente preocupantes: “a redução da
maioridade penal é uma forma de inflacionar de maneira artificial a
criminalidade. Não é uma forma de resolver nada. Segundo dados da UNICEF, de 21
milhões de adolescentes brasileiros apenas 0,013% cometeu atos contra a vida.
Na verdade, são eles, os adolescentes, que estão sendo assassinados
sistematicamente. O Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de
homicídio de adolescentes, atrás da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam
36,5% das causas de morte, por fatores externos, de adolescentes no país,
enquanto para a população total correspondem a 4,8%. [...] As estatísticas
demonstram que crianças e adolescentes não são uma ameaça real à integridade
física dos brasileiros. São, ao contrário, vítimas frequentes, especialmente de
violência sexual. Assim, o conjunto das campanhas sobre violência que centra
fogo contra as crianças e adolescentes, exigindo punição para esta faixa da
população, é desinformada e, inclusive, irresponsável”.
A
própria Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), em nota pública que pode ser acessada na internet já advertiu,
desde julho passado, ser inconstitucional a PEC da maioridade penal.
Como
em muitas outras matérias de interesse do povo, mesmo assim, o Congresso
Nacional deixa de prestar atenção ao que realmente interessa a quem o elegeu e
precisa de defesa, preferindo votar projetos de lei de acordo com o desejo da
classe social conjunturalmente mais barulhenta, preocupada exclusivamente com a
sua segurança pessoal, patrocinadora da mídia mais poderosa e acessada.
A
redução da maioridade penal, ali agora em debate, padece desse vício de origem
e, se o projeto respectivo for transformado em lei, até adolescentes,
particularmente os mais pobres, como denuncia o professor Dultra, já serão
considerados presumivelmente culpados. Se forem presas/os, ao contrário da
finalidade de qualquer pena, quando saírem da cadeia, em vez de reeducados e
ressocializados, aí sim os pregoeiros da sua punição haverão de se arrepender,
pois aí sim o risco da segurança deles será muito maior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário