Em
coluna no último dia 25, Lenio Streck novamente ataca o reconhecimento judicial
de famílias paralelas. Já respondi outro artigo dele sobre o tema; volto a
fazê-lo, reiterando que não basta dizer que se deve reconhecê-las juridicamente
quando constatados os pressupostos legais da união estável (publicidade,
continuidade, durabilidade e intuito de constituir família – que significa
manutenção de comunhão plena de vida), pois o Código Civil de 2002 é expresso
ao não reconhecer a união estável quando existentes impedimentos matrimoniais,
ressalvado o caso de pessoas casadas, mas já separadas de fato (artigo 1.723,
parágrafo 1º). Logo, só a defesa da inconstitucionalidade desta norma torna
possível a proteção jurídica das famílias paralelas sem mudança legislativa.
Foi
o que fiz naquele artigo: com base em (genuínos) princípios constitucionais,
apontei que é inconstitucional não se reconhecer judicialmente as famílias
paralelas. Junto à doutrina familiarista contemporânea, afirmei que a
Constituição federal de 1988 consagra (implicitamente) no caput do artigo 226 o
princípio da pluralidade de entidades familiares, donde não pode a lei
reconhecer apenas determinado(s) arranjo(s) familiar(es) e negar proteção
jurídica a outro(s). Assim, só fundamentação válida ante o princípio da
igualdade torna possível defender a discriminação de uma família relativamente
a outra, ou seja, somente uma fundamentação lógico-racional que justifique a
discriminação pretendida com base no critério diferenciador erigido e que seja
compatível com as demais normas constitucionais pode justificar a discriminação
tão ardorosamente defendida por Streck (ainda que eventualmente não a defenda
“politicamente”, ele o faz em sua, a meu ver, equivocada posição jurídica).
Afirmei
isto com base na hermenêutica filosófica tão cara a Streck, pois, para Gadamer,
seguir a tradição é um ato de razão [logo, compatível com a racionalidade da
isonomia], donde se (para tal hermenêutica) a tradição define a interpretação
de textos normativos, isso só ocorre se a tradição for legítima, o que em um
Estado Constitucional só acontecerá se a tradição for compatível com as normas
constitucionais. O próprio Streck fala que a história institucional deve ser
respeitada apenas quando os precedentes que a formam tenham “DNA
constitucional”. Assim, aplica-se aqui a máxima da igualdade de Alexy: quem
defende um tratamento desigual possui um ônus de argumentação justificador da
constitucionalidade da discriminação pretendida, sob pena de impor-se a
extensão do regime jurídico em questão ao grupo que se pretende discriminar –
no caso, extensão do Direito das Famílias às famílias paralelas.
Pois
bem, é aqui que (novamente) falha Streck: insiste em não trazer uma tal
fundamentação válida ante a isonomia, afirmando como dado aquilo que
evidentemente é um construído, uma conclusão: o fato de a Constituição (para
ele) “não proteger” as famílias paralelas. Indago: onde isso está a defesa da
racionalidade da tradição restritiva para justificar, perante Gadamer, a
legitimidade desta tradição? Onde está escrito na Constituição que não se
protegem as famílias paralelas? O CC/02 a proíbe textualmente, mas não a CF/88.
Assim, aplica-se a história institucional (pacífica e constitucional) do STJ:
impossibilidade jurídica só existe quando texto normativo expresso proíbe a
tutela jurídica em questão[1]. É juridicamente possível o pedido de
reconhecimento constitucional das famílias paralelas porque não há proibição
constitucional a elas, razão pela qual apenas uma fundamentação válida ante a
isonomia justificaria a discriminação pretendida – fundamentação esta não
trazida por Streck. Em dado momento ele invocou o “sentimento” da esposa
traída, para ironizar defensores(as) do princípio da afetividade, no sentido de
supostamente desconsiderarem o sentimento dela e favorecerem o da amante. Nada
mais equivocado, nova prova de que Streck nada entende sobre o conteúdo do
princípio da afetividade (que ele despreza, embora sem nunca criticar lições
concretas de qualquer obra que trabalhem o tema[2]). Não se coloca o sentimento
ou a família do(a) amante sobre o do(a) prévio(a) companheiro(a)/cônjuge, mas
se protege também o daquele(a).
Quando
se fala na afetividade como princípio jurídico, destaca-se o fato segundo o
qual a família contemporânea forma-se primordialmente com base nos vínculos
afetivos de seus integrantes e não por alguma formalidade (o CC/1916
condicionava a existência jurídica da família à formalidade do casamento civil
e, segundo se interpretava, também o fazia o artigo 175 da CF/1967 e da Emenda
1 de 1969). Em seu voto no julgamento do STF que reconheceu a união homoafetiva
como entidade familiar (ADPF 132/ADI 4277), o ministro Celso de Mello citou
lição de minha autoria nesse sentido: o reconhecimento constitucional da união
estável como entidade familiar demonstra [desvela] essa circunstância,
reconhecendo o afeto como princípio jurídico no reconhecimento da família
conjugal em razão da mudança do paradigma da família contemporânea, que, de uma
entidade fechada e válida por si mesma, passou a existir em razão do amor do
casal, ante a sociedade ter dado mais relevância à felicidade e, assim, à
afetividade conjugal do que à mera formalidade do casamento civil ou qualquer
outra forma pré-concebida de família; logo, o reconhecimento do status
jurídico-familiar da união estável alçou o afeto à condição de princípio
jurídico implícito à dignidade humana no que tange às relações familiares (cf.
artigo 5º, parágrafo 2º, da CF/88), porque estas, para garantirem o direito à
felicidade e, assim, a uma vida digna, precisam ser pautadas pelo afeto e não
por meros formalismos como a do casamento civil, na medida em que é o afeto
romântico/conjugal o motivo que faz duas pessoas decidirem formar uma união
estável, a saber, uma união em comunhão plena de vida e interesses, de forma
pública, contínua e duradoura (cf. meu Manual da Homoafetividade..., 2ª Ed.,
2013, item 2.5.3).
Logo,
existindo uma união afetiva que atenda aos citados requisitos legais
caracterizadores da união estável, o princípio da afetividade demanda pelo seu
reconhecimento enquanto família conjugal. É a isso que se faz referência quando
se fala do princípio da afetividade (neste âmbito). Há na doutrina quem
diferencie afeto, enquanto sentimento (situação subjetiva), e afetividade
enquanto conduta objetivamente aferível que denota afeto; afetividade
significando, portanto, condutas pelas quais é legítimo presumir, inclusive de
forma absoluta, a existência de afeto para fins de garantir proteção jurídica à
pessoa. Pense-se na antiga posse do estado de filho (ou de casados): nome,
trato e fama; quem trata outrem como filho, o faz socialmente conhecido como
seu filho e lhe atribui seu nome assume obrigações parentais para com ele. A
boa-fé objetiva, enquanto padrão de conduta imponível imperativamente, demanda
o reconhecimento de tal pessoa como filho mesmo que o pai em questão alegue
que, subjetivamente, não tinha afeto parental (animus) para tanto. Logo, a
diferença entre boa-fé subjetiva e objetiva contribui na compreensão do
princípio da afetividade.
Aproveito
aqui para fazer uma réplica a Streck relativamente àquele outro “debate”. Após
meu citado artigo, em sua coluna seguinte ele dedicou uma nota de rodapé para
criticar minha posição:
[...]
Pindorama continua produzindo um imaginário jurídico errático e fragmentado.
Posições ideológicas e de grupos são confundidas com possibilidades de se fazer
qualquer interpretação sobre a Constituição e as leis. Tudo pode. Diz-se
qualquer coisa sobre qualquer coisa. Um dos sintomas disso é o
pamprincipiologismo, pelo qual qualquer “valor” (sic) é transformado em
normatividade. Para que serve a lei? Para que serve a Constituição? Para os
pamprincipiologistas, nada! Sincreticamente (para dizer o menos), invoca-se
autores sem qualquer compromisso teorético, além dos sacrilégios com autores
sofisticados. Como é possível sustentar, de forma impune, que Dworkin
avalizaria a esdrúxula decisão do TJ-MA que, contra a Constituição, contra a
legislação, contra a legítima esposa e contra os filhos, deu metade da herança
para a concubina adúltera? Direito é brincadeira? Direito é um joguinho
retórico? Direito é militância? A propósito da invocação de Dworkin, lembro
apenas uma de suas máximas: Juiz não cria direito! E não julga por políticas ou
outros quetais. Parece que, em terraebrasilis, milita-se, em vez de fazer
doutrina, como é o caso do artigo Familias paralelas e poliafetivas devem ser
reconhecidas pelo Judiciário (ler aqui), no qual fui duramente criticado. Não
tenho mais paciência para esse tipo de debate que quer pessoalizar as coisas.
Minha LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo) não permite discutir com o
senso comum teórico (ou suas vulgatas). Aliás, os comentários dos leitores ao
referido artigo já “mataram” a questão. Por todos, basta ler o que escreveu
Sérgio Niemeyer. Bingo, Sérgio!
Algumas
coisas saltam aos olhos de imediato (além de comentário nenhum ter infirmado os
fundamentos jurídicos que apresentei, o mesmo valendo para essa fala agressiva
e desrespeitosa de Streck; Niemeyer falou em necessidade de alteração
legislativa, quando demonstrei que a concretização da CF/88 torna isso
desnecessário):
(i)
por acaso Streck se considera isento de militância por suas ideologias?! Sua
luta contra as interpretações que critica seria o que, atuação de ofício de um
oráculo neutro?! Quer dizer que ser puramente “ideológico” é ter uma posição
jurídica distinta daquela de Lenio Streck?! Gadamer certamente revirou-se no
túmulo por alguém que tanto invoca suas lições atribuir-se “neutralidade”...
(ii)
após a reviravolta copernicana da CF/88 no Direito das Famílias, como se pode
seriamente querer ressuscitar a anacrônica distinção entre família legítima e
ilegítima entre uniões consensuais e não opressoras entre pessoas maiores e
capazes? Essa repristinação é a consequência lógica da expressão “legítima
esposa”, expressão que parece revelar muito das pré-compreensões de Streck
sobre o tema... Ao passo que pautei minha tese em princípios, em normas
jurídicas, não em “políticas” ou “quetais”; passei longe de “dizer qualquer
coisa sobre qualquer coisa” – lembrando que Streck não se dignou a enfrentar os
fundamentos jurídicos que invoquei (tenho LEER de pessoas que assumem uma tal
postura...);
(ii.1)
sobre pré-compreensões, note-se que Streck dificilmente problematiza as suas,
algo curioso partindo de alguém que tanto invoca Heidegger e Gadamer. Onde está
o desvelamento das suas compreensões e pré-compreensões nesta sua crítica? Onde
está a explicitação da fusão de horizontes? Em lugar nenhum... Muitas de suas
posições configuram puro solipsismo justamente por ele não se dignar a fazer as
explicitações aqui apontadas...
Que
fique claro, não estou dizendo que não seria possível defender juridicamente
uma tese distinta da minha. Estou defendendo que a resposta correta, no sentido
de Dworkin (aquela que melhor se compatibiliza com as regras e princípios do
ordenamento constitucional), é a que defendo. Streck pode legitimamente
defender que a dele o seria. Ele “só” se esqueceu de apresentar uma
fundamentação minimamente adequada para tanto... como, aliás, também esqueceu
em outras oportunidades: v.g, quando ele fala criticamente que “judicializaram
o amor” (sic), onde está a análise crítica dele aos acórdãos do STJ que
reconheceram o cabimento de indenização por dano moral por abandono afetivo em
razão do dever de cuidado, imanente à parentalidade? É fácil criticar uma tese
sem refutar os fundamentos jurídicos que a embasam...
(iii)
não afirmei que Dworkin concordaria com minha tese. Eu disse foi que o romance
em cadeia dworkiano admite inovações na história institucional no novo capítulo
escrito pelo Judiciário no julgamento do caso concreto. O fiz para responder à
crítica de Streck no sentido de necessidade de respeito à história
institucional. Como é basilar, a vinculação a precedentes não é absoluta, ela
admite o overruling (a superação) do entendimento anterior quando haja razões
jurídicas que o justifiquem e eu trouxe fundamentos que acredito justificarem a
superação da tradição jurídica aparentemente ainda majoritária de não
reconhecimento das famílias paralelas. Especialmente quando falamos de pensão
(verba alimentar): se para Streck nossa Constituição Cidadã admite uma “teoria
do cada um com o seu problema” (!) para, como critica Maria Berenice Dias,
falar-se à amante que sabia do relacionamento anterior de seu amásio um sonoro
“bem feito!” e (acrescento) permitir-se que ela morra de fome (reitero: verba alimentar),
não considero isso compatível com o espírito emancipatório, inclusivo e plural
de nossa Constituição Federal.
(iv)
não concordar com Lenio Streck não significa não levar o Direito a sério... A
lei (constitucional ou infraconstitucional) existe para ser cumprida, mas desde
a superação do in claris cessat interpretatio deveria estar claro que norma é
fruto da interpretação de textos normativos, respeitados os limites semânticos
do texto (e não os há aqui, cf. supra), donde o fato de eu ter uma interpretação
constitucional distinta da de Streck não me faz deixar de levar o Direito a
sério. Então, falta um mínimo de respeito a este em suas críticas a pensamentos
distintos...
Acredito
no debate doutrinário (e debato no mesmo tom daqueles com quem dialogo).
Juristas devem dialogar entre si e, quando discordam, devem explicitar os
motivos da discordância, para que o(a) leitor(a) possa ter melhores condições
de ter uma conclusão oriunda de uma análise o mais completa possível dos pontos
envolvidos. Dworkin agradeceu mais de uma vez aos seus críticos, embora
continuasse deles discordando. Parece que Streck precisa de um pouco dessa
humildade quando critica entendimentos distintos dos seus – e não há
“pessoalização” em citar um artigo, explicar seus fundamentos e criticá-lo.
Logo, Streck precisa parar de se sentir perseguido por leitores que o
criticam...
Em
suma, não há fundamento lógico-racional que justifique a discriminação da
família paralela relativamente à família prévia. Isso não implica privilegiar o
sentimento daquela relativamente ao desta, mas reconhecer que, existente
faticamente uma família consensual e não opressora entre maiores e capazes, não
cabe ao Estado discriminá-la, devendo este tratá-las isonomicamente ou, no
mínimo, garantir que o(a) companheiro(a) que dependia do(a) adúltero(a) não
morra de fome, garantindo-lhe verba alimentar previdenciária (se o caso).
[1]
V.g., REsp 827.962/RS, MS 14.050/DF, AR 3.387/RS, REsp 820.475/RJ, RMS
13.684/DF e REsp 220.983/SP.
[2]
Recomendo: “Princípio da Afetividade no Direito de Família” (Ricardo Lucas
Calderon, Ed. Renovar) e “A Tutela Jurídica da Afetividade” (Romualdo Baptista
dos Santos, Ed. Juruá).
Paulo
Roberto Iotti Vecchiatti é advogado e professor. Mestre em Direito
Constitucional. Autor do livro Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade
Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais
Homoafetivos (2a Ed., São Paulo: Ed. Método, 2013).
Fonte. Revista Consultor Jurídico
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2015-jul-05/paulo-vecchiatti-familias-paralelas-possuem-protecao-constitucional

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