Em
janeiro de 1898, Émile Zola publicou seu famoso "J'accuse", no qual,
em forma de carta aberta, acusava o Exército e os generais da França de fraude
no processo Dreyfus. Acusava também a elaboração de uma minuciosa campanha
midiática mentirosa, colocando toda a população contra o capitão supostamente
traidor.
Os
fatos dados ocorridos na Curitiba de 2015, em certa medida, fazem lembrar os da
virada do século 19 para o século 20. A anterior cruzada contra um suposto
traidor agora é vista como a cruzada contra a corrupção, esquecendo-se que a
própria ideia de cruzada é errada em seus fundamentos.
Pode-se
hoje, sim, apontar pela evidente ilegitimidade que se desenha na alcunhada
operação "lava jato". Antes de tudo, e por precaução, deve-se anotar
o que se entende pela diferença entre ilegalidade e ilegitimidade. Muitos que
ignoram tal diferença afirmam que apenas o que se mostra ilegal poderia ser
motivo de reforma por tribunais.
Esquecem-se,
estes, que na dogmática moderna ganham importância, também, os princípios. E
são estes, sim, que regem a dinâmica de um processo justo, e não mais somente a
lei. Somente sob essa leitura é que se pode esperar e entender criticamente as
atitudes de determinada autoridade.
Um
processo penal deve guiar-se, assim, por princípios, como o da presunção da
inocência, do devido processo legal, da proporcionalidade, entre outros, e não
só por uma alegada formulação legal. E é por isso que, mesmo que algumas
decisões de um determinado juiz se guiem por algo que está previsto em lei (e
que, portanto, não incidiriam em ilegalidade), podem elas ser tidas por
ilegítimas e passíveis de revisão.
A
deflagração da 14ª etapa da operação "lava jato" incide, justamente,
nesse pecado. Mesmo sem ingresso em duvidosas leituras sobre a delação premiada
ou por um pragmatismo qualquer, deve-se pensar na racionalidade do feito.
Mostra-se
por demais questionável a necessidade de novas prisões em um momento já tão
distante do início das investigações. A lei pode aceitar essas determinações,
mas elas são simplesmente ilegítimas, pois desnecessárias sob uma leitura
racional.
Esse
estado de coisas chega a ponto tal que, na busca de sustentação para as novas
prisões, simplesmente se fez uso lateral (e não declarado) da conhecida teoria
do domínio do fato.
Essa
teoria, no dizer do jurista alemão Claus Roxin, seu próprio idealizador, não
serve para dizer que apontar a responsabilidade penal em casos empresariais. O
que antes já era objetável, agora se mostra inadmissível. O fim, que nunca
justifica os meios, agora se equivoca também em suas premissas. Seria, talvez,
o caso de se acusar o errático e ilegítimo procedimento.
Fala-se
mais. Afirma-se que "a falta de qualquer providência", por parte dos
dirigentes das empresas, no sentido de que impedir o resultado supostamente
criminoso "é indicativo do envolvimento da cúpula diretiva." Pior.
Menciona-se a suposição de que "parece inviável" que o esquema
criminoso "fosse desconhecido pelos presidentes das duas
empreiteiras".
A
suposição lastreada, em tese, no papel dos dirigentes presume um dever de
vigilância que beira um Direito Penal da omissão, o qual se mostra para além do
ilegítimo. Enfim, parece pretender-se utilizar, na busca de uma punição
antecipada, recursos que, sozinhos, são carecedores de legitimidade.
Ao
simplesmente se deixar de lado todo um suporte que deve acompanhar as
construções omissivas, beira-se, mesmo, para mais do que ilegitimidade, e sim,
real ilegalidade de prisões, ancoradas, unicamente, em presunções, e não em
provas. Essa, a nova carta aberta.
Artigo
publicado originalmente pelo jornal Folha de S.Paulo.
http://www.conjur.com.br/2015-jun-28/renato-silvira-investigacao-lava-jato-fere-principios-basicos
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