Na
primeira parte desta coluna, procuramos destacar a importância do tema
relacionado ao tratamento jurídico dos animais. A Constituição Federal de 1988
não deixou o tema passar desapercebido, pois em seu artigo 225 prescreveu que
“todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes
e futuras gerações”, incumbindo ao Poder Público “proteger a fauna e a flora,
vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”
(parágrafo 1o, VII).
A
parte final desse dispositivo, que veda as práticas que submetam os animais a
crueldade foi interpretada pelo Supremo Tribunal Federal em duas ocasiões
emblemáticas e, com base nela, foram proibidas a “farra do boi” 1 e a “rinha de
galos” 2, eventos que tinham importância cultural local, mas que expunham
animais domésticos a crueldade.
Essa
norma constitucional tem, essencialmente, dois núcleos significativos
correlacionados entre si, sendo eles as expressões “animais” e “crueldade”. Na
investigação sobre quais animais estão protegidos, destacamos a doutrina da
senciência, que postula proteção a animais capazes de sentimento e, mais
especificamente, de sofrimento.
Pois
bem. Não cabe, nesse espaço, divagar sobre quais espécies são capazes de sentir
e, em qual grau, mas certamente as ciências biológicas exercem papel central
nessa investigação.
Do
ponto de vista lógico, a ciência poderia indicar que a capacidade de sentimento
é consubstancial a todos os animais ou, de modo diverso, que apenas parte deles
detém essa característica.
Tanto
em uma hipótese como em outra, haveríamos de nos deparar com situações
inusitadas. Não se pode, por exemplo, excluir de antemão a hipótese de que
tenham essa capacidade de sentir ratos, lagartos, cobras, baratas e aranhas,
espécies costumeira e preventivamente eliminadas por motivos diversos,
estéticos e de saúde pública. Se essas espécies estiverem albergadas pela idéia
de “animais sensíveis”, extraída da norma constitucional, práticas comuns de
prevenção de cunho sanitário ou não, haveriam de ser revistas. Seria o fim das
ratoeiras!
Contra
essa proteção talvez extremada, dois caminhos poderiam ser seguidos. O primeiro
estaria a indicar que não basta a capacidade de sentimento, pois seria
necessária, ainda, a capacidade de expressar esse sentimento. O segundo caminho
voltaria a destacar um componente cultural a restringir o escopo da vedação de
maus tratos a animais. Se for esse o caso, os precedentes mencionados deveriam
ser lidos restritivamente. Isto é, o aspecto cultural não foi relevante para
sustentar a prática da “farra do boi” e do “galismo”, mas talvez possa ser
invocado para justificar a permanência e ratoeiras nas prateleiras.
Dito
isso, podemos passar à análise do segundo núcleo de significado da regra
constitucional sob discussão (artigo 225, parágrafo 1o, VII, da CF), qual seja
a “crueldade”.
Ao
vedar tratamento cruel não se está, no que nos parece evidente, proibindo o
sacrifício de animais para servir a finalidades humanas, sendo a principal delas,
a alimentação. O que se veda é a crueldade como meio de impor dor ou como forma
de sacrifício. Nesse sentido, diversas unidades da federação adotaram leis para
regular o abate de animais destinados ao consumo. No estado de São Paulo, a Lei
7.705/92 impõe o “emprego de métodos científicos e modernos de
insensibilização” antes do abate, bem como regras de higiene e cuidados com o
animal. No Distrito Federal, com redação semelhante, vige a Lei 1.567/97. A Lei
Federal 11.794, de 8 de setembro de 2008, passou a regulamentar os
procedimentos para o uso científico de animais, adotando critérios de controle
e de fiscalização. Curiosamente, o artigo 14, parágrafo 9º, da referida lei
destaca a presença de consciência nos animais, destacando que “em programa de ensino,
sempre que forem empregados procedimentos traumáticos, vários procedimentos
poderão ser realizados num mesmo animal, desde que todos sejam executados
durante a vigência de um único anestésico e que o animal seja sacrificado antes
de recobrar a consciência”.
Deve-se
destacar, nessa linha, o Projeto de Lei 3.676/2012, de autoria do então
deputado Eliseu Padilha, que, tratando de diversos temas relacionados à
condição jurídica dos animais, busca instituir um “Estatuto dos Animais”3. No
Direito Internacional, encontra-se, com o mesmo propósito a Declaração
Universal dos Direitos dos Animais, da ONU promulgada em 27 de janeiro de 1978.
Entre os seus consideranda, a Declaração assevera que “todo o animal possui
direitos” e que o “desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e
continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a
natureza”. A Declaração estipula, outrossim, que “todos os animais nascem
iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência” (artigo 1º), que “nenhum
animal será submetido a maus-tratos e a atos cruéis” (artigo 3o), que “a
experimentação animal, que implica em sofrimento físico, é incompatível com os
direitos do animal, quer seja uma experiência médica, científica, comercial ou
qualquer outra” (artigo 8o) e que “quando o animal é criado para alimentação,
ele deve de ser alimentado, alojado, transportado e morto sem que disso resulte
para ele nem ansiedade nem dor” (artigo 9o), entre outros.
Vistos
os significados relevantes para a exegese da regra constitucional, cumpre
destacar que o sistema jurídico não excluiu os animais do elenco de bens
passíveis de apropriação por particulares. Não se impõe o vegetarianismo ou se
proíbe o funcionamento de churrascarias. Por outro lado, é forçoso convir que todo
esse aparato normativo, tampouco, equiparou animais a pedras. A verdade é que
ao menos grande parte dos animais distingue-se dos demais bens por terem
capacidade de sentimento e, por isso, destaca-se como uma categoria
juridicamente relevante. A doutrina civil, talvez intuitivamente, já distinguia
os animais, chamados semoventes, dos demais bens passíveis de apropriação
(artigo 82, CC).
Assim,
conquanto os animais possam ser apropriados pelo homem, tornando-se, na
perspectiva civilista, sua propriedade, há todo um complexo normativo pronto a
proteger animais contra agressões injustas dos próprios seres humanos. Essa
proteção é sui generis e não se explica pelas categorias consagradas do abuso
de direito ou da função social. O abuso de direito, tomado pela perspectiva
objetiva (que considera a boa-fé) ou subjetiva (que considera a intenção do seu
titular), é figura criada sob a perspectiva de alteridade. Isto é, não posso
exercer meu direito de forma a lesar terceiros. De modo análogo, quando se tem
em mente a função social, a limitação ao exercício de direitos dá-se em prol da
coletividade.
O
que se vê, no direito dos animais, não é propriamente uma coisa nem outra. Os
animais não são postos a salvo da crueldade porque isso pode prejudicar um
terceiro considerado individualmente ou porque isso viola os interesses da
coletividade. Ao contrário, ainda que a imposição de sofrimento possa contar
com o apoio de grupos sociais mais ou menos amplos, como visto nos dois arestos
relativos à rinha de galos e à farra do boi, tal fato pode ser, no caso
concreto, irrelevante. Isso significa que, quando há salvaguarda, ela é
contramajoritária e tem em perspectiva o próprio bem estar animal.
A
única conclusão possível, portanto, é que há animais aos quais se defere uma espécie
de valia intrínseca ou dignidade. A proteção desses animais existe como um fim
em si mesmo, e não como um postulado de interesse geral abstrato. Essa
dignidade é, evidentemente, diversa daquela reconhecida aos seres humanos4, já
que estes não são passíveis de apropriação por outrem no estágio atual do
Direito.
A
questão ainda pode ser abordada sob outra perspectiva para fins de reflexão.
Uma visão antropocêntrica e utilitarista poderia levar a conclusões amplamente
diversas, argumentando, por exemplo, que o sacrifício do animal, em eventos
culturais ou desportivos, não muda a natureza das coisas, já que, sem dor, eles
poderiam ser sacrificados de qualquer modo para a alimentação humana. Ocorre
que o sofrimento deles, nestas situações, gera a maximização do bem estar do
ser humano, que pode divertir-se e lucrar a despeito do que se passa com o
animal. Empregos seriam gerados com atividades relacionadas, por exemplo, à
rinha de galo ou à farra do boi. Mas, essa, como vimos, não foi a solução dada
pela Constituição Federal, na interpretação que lhe deu o STF, que muito
claramente vedou o sofrimento nessas hipóteses. Quando reconhecemos que o bem
estar de certos animais também interessa, o que estamos fazendo é justamente
colocá-lo a salvo de uma apropriação ilimitada, por seu valor intrínseco, e
independentemente dos benefícios que possam ser distribuídos aos seres humanos.
É
de se perguntar, portanto, se os animais não representam uma categoria
destacada entre os bens, uma categoria com certa dignidade. A experiência de
alguns países vem dizendo que sim. O art. 515-14 do Código Civil francês, a
partir de 16 de fevereiro de 2015, passou a estabelecer que “os animais são
seres vivos dotados de sensibilidade” e, sob a proteção da lei, são submetidos
ao regime dos bens. O artigo 90 do Código Civil alemão destaca que “animais não
são coisas”, sendo protegidos por leis especiais e aplicando-se-lhes as regras
das coisas com as modificações necessárias.
Há,
é verdade, quem busque dar aos animais condição mais elevada do que essa,
postulando o reconhecimento de personalidade jurídica a eles. As iniciativas
são sérias e, dado o propósito desta coluna, remeteremos o leitor ao excelente
texto do professor Gunther Teubner (Rights of Non-humans), disponível em site
mantido pelo professor Otávio Luiz Rodrigues Júnior5 e ao Projeto de Lei
7.991/2012, de autoria do então Deputado Eliseu Padilha6. O Projeto de Lei
6.799/2013, proposto pelo deputado Ricardo Izar, de modo similar, procura
estabelecer que “os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica
sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem
gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu
tratamento como coisa”.
Todas
essas questões, como se vê, estão sendo apresentadas pela atual dinâmica social
e certamente devem encontrar respostas por um Direito Civil que se pretenda
contemporâneo.
1 STF, RE 153531, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado
em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP-00013 EMENT VOL-01902-02 PP-00388)
2 STF, ADI 1856, Rel. Min.
CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2011, DJe-198 DIVULG
13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-02 PP-00275 RTJ VOL-00220-
PP-00018 RT v. 101, n. 915, 2012, p. 379-413)
3
Vide detalhes em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=541122,
acesso em 4.4.15.
4
“Há, evidentemente, diferenças importantes entre seres humanos e outros
animais, e tais diferenças devem dar origem a outras tantas nos direitos de
cada um. O reconhecimento desse fato evidente, entretanto, não impede o
argumento em defesa da extensão do princípio básico da igualdade a animais não
humanos” (SINGER, Peter. Libertação Animal. Trad. Marly Winckler e Marcelo
Brandão Cipolla, São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2013, p. 18).
5
Disponível em http://www.direitocontemporaneo.com/?page_id=139, acesso em
4.4.15.
6
Disponível em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=622728,
acesso em 4.4.15.
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
Nenhum comentário:
Postar um comentário