sábado, 4 de fevereiro de 2012

A FICÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (PINHEIRINHO)




No nosso ordenamento jurídico anterior à atual Constituição Federal e ao novo Código Civil, o direito à propriedade privada reinava absoluto e de forma quase ilimitada. Acontece que com o advento destes dois novos e importantes diplomas legislativos, ele teve restringido o seu alcance, eis que agora, encontra (ou deveria encontrar) limites na denominada função social da propriedade, instrumento colocado à disposição do estado para adapta-lo a uma realidade na qual deve preponderar a dignidade da pessoa humana.

A Função Social da Propriedade é um princípio que está vinculado a um projeto de sociedade mais igualitária, significando que ela deve se submeter ao interesse da coletividade. Assim, a propriedade urbana somente irá cumprir a sua função social quando, além de estar em conformidade com o plano diretor, for utilizada para satisfazer as necessidades dos habitantes da cidade, estando intimamente ligada ao direito à moradia digna acessível a todos, base essencial para que a população atinja de maneira mais rápida e ampla os demais direitos, entre eles a saúde, a educação, o transporte, os serviços públicos, o meio ambiente, o saneamento ambiental, o trabalho, o lazer e a cultura, tudo conforme prevê a atual constituição e cuja totalidade acaba concretizando a denominada dignidade da pessoa humana, erigida hoje a uma espécie de princípio basilar vinculado umbilicalmente aos direitos fundamentais.

Em suma, função social da propriedade é a prevalência do interesse comum sobre o interesse individual, fazendo que ela tenha seu uso condicionado ao bem-estar social. Caso não traga a melhoria da qualidade de vida da população e não esteja em condições ambientalmente sustentáveis, não será ela merecedora da proteção do estado.

Todos os operadores do direito ficaram entusiasmados com o alcance do referido princípio, sentindo que estavam diante de um instrumento que finalmente iria colocar freios na voracidade imobiliária, sempre pronta a utilizar a propriedade tão somente para fins de suas detestáveis especulações com o objetivo de obter lucros exorbitantes. Parecia que estávamos diante de um avanço civilizacional sem precedentes, eis que estávamos deixando o campo do mero direito para avançarmos para o âmbito da tão almejada justiça. Sim, porque os princípios são os elos mágicos que fazem com que a lei deixe de ser apenas conjunto de palavras frias e sem alma perdidas nos códigos e se transforme em justiça. E o princípio da função social em simbiose com tantos outros contidos na constituição federal como o da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial nos faziam antever um novo mundo, um mundo em que reinaria finalmente a justiça social. Voltávamos a acreditar em utopias.

Até que no alvorecer do dia 22 de janeiro de 2.012, acordamos sobressaltados com as imagens vindas de um local denominado Pinheirinho na cidade paulista de São José dos Campos, terreno pertencente à massa falida do especulador libanês Naji Nahas e de sua empresa Selecta.

As cenas chegavam céleres e assustadoras mostrando a tropa da polícia militar com cavalaria e helicópteros, como se fosse uma operação de guerra contra um inimigo externo, sitiando o local onde residiam há quase oito anos, mais de mil e quinhentas famílias que haviam erguido a duras penas suas casas. Ali, com um alto grau de violência temperada com sprays de pimenta, bombas e balas de borracha, configurando uma cena chocante para os olhos de quem assistia o cenário dantesco, deram um tiro no meio da testa do dispositivo constitucional que tanto nos orgulhava e emocionava. Naquele momento, sucumbia diante dos olhos do mundo um dos princípios que parecia ter vindo para finalmente trazer equilíbrio à questão da propriedade, sempre concentrada na mão de minorias.

Fruto de uma equivocada decisão conjunta do poder executivo e judiciário local, foi atingida a dignidade das pessoas, o direito ao mínimo existencial no qual naturalmente está incluído o direito à moradia e, em nome da especulação imobiliária, se transformava aquilo que deveria ser uma função em uma mera FICÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

Era a brutalidade de aparatos armados em um macabro concerto com interesses mesquinhos que teimam em permear alguns órgãos estatais, deitando por terra de forma covarde a luminosidade de uma idéia proveniente de algumas poucas mentes privilegiadas, resultado de séculos de evolução da humanidade.

Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS



Publicado no Portal de Luis Nassif




Publicado no Portal Mídia Independente







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