terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O CICLO DAS ÁGUAS


Em 1975, nos meus “bons tempos” de músico de rock, eu compus a canção Queria Ser para algumas apresentações que o íamos fazer na Casa de Cultura de Porto Alegre, em um show denominado Hoje eu Vou Fugir de Casa que a censura da época achou melhor eu trocar por Hoje eu Vou Sair de Casa, sob o fundamento de que o nome original poderia “influenciar mal” a juventude. Isso tudo, mesmo eu tendo dado longas explicações ao censor de que a música se referia a uma volta às coisas da natureza, mostrando que a letra tinha frases como “eu quero ir aonde o homem não tocou” e “quero andar descalço na beira de um rio, à margem desta vida”. Não adiantou. Ele foi irredutível e em alguns jornais da época, constou o segundo nome.

Bem. O início da letra da canção a que me referi no início, dizia: “queria ser, como o vento que passa correndo de norte a sul sem parar; queria ser, como a água dos rios que correm para o mar e se elevam aos céus; depois cair, sob a forma de chuva molhar os cabelos dos que sabem amar; eu queria ser o sol e em cada amanhecer, milhões de rostos beijar...” Estávamos no alvorecer da consciência ecológica no Brasil e a canção se referia ao ciclo natural das águas, coisa que ainda acontecia à época, eis que havia uma certa previsibilidade a respeito.

Hoje, não mais é assim. Trinta e seis anos se passaram e, assim como nós entupimos nossas artérias com gorduras e alimentos artificiais, sofrendo como consequência sérios problemas coronários, também enchemos os nossos rios, verdadeiras artérias do planeta, com sacos plásticos, garrafas pets, dejetos humanos, lixo não-biodegradável de toda sorte e criamos uma série de obstáculos para o seu fluxo natural. Derrubamos extensas áreas de florestas, cortamos as árvores de nossas cidades, destruímos as matas ciliares dos rios que tiveram seus leitos assoreados e ampliados, e eles, tendo ficado sem seu caminho naturalmente fixados ao longo de milhões de anos, acabaram ficando completamente sem controle.

O resultado nefasto está aí para todo mundo ver, consubstanciado em enchentes que acabam ceifando centenas de vidas. Agredimos o planeta, descontrolamos o clima e agora estamos pagando a conta.

O que é digno de nota nas recentes catástrofes é justamente o fato de que os proprietários de muitas das residências atingidas, obtiveram na justiça o direito de construir em lugares onde não poderiam fazê-lo. Eles não foram para aqueles locais por necessidade. Na verdade, podemos concluir que no bojo da decisão que lhes deu ganho de causa, havia implícita uma sentença de condenação à morte. Será que um dia aprenderemos a lição?

Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS

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