domingo, 25 de julho de 2010

A SUCESSÃO DO CÔNJUGE. ART. 1829, INCISO I DO CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO INÉDITA DO STJ


O art. 1829 do Código Civil, ao tratar da ordem da vocação hereditária, assim dispõe:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.

A exata interpretação do art. 1.829, inc. I, do CC/02, tem acarretado muita discussão doutrinária em virtude de sua redação ambígua. Pois agora, a Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi, relatora do Recurso Especial nº 992.749 - MS (2007/0229597-9), em uma lide que se destinava a definir se o cônjuge sobrevivente – que fora casado com o autor da herança sob o regime da separação convencional de bens – participa ou não da sucessão como herdeiro necessário, em concorrência com os descendentes do falecido, ao proferir o seu voto, trouxe alguma luz ao assunto.

Ela discorre a respeito das três correntes que se estabeleceram, interpretando o dispositivo legal de maneira completamente diferente, trazendo ao final, uma quarta corrente na qual há o entendimento de que o regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies:
(i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância.

Na disputa que trata do inventário e partilha de bens entre a segunda esposa e os filhos do primeiro casamento, em uma interpretação inédita do artigo 1.892 do Código Civil brasileiro, a ministra definiu que “não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à metade do patrimônio, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário. Se o casal firmou pacto antenupcial no sentido de não ter patrimônio comum e, se não requereu alteração do regime estipulado ou tomou outras providências no sentido de mudar a situação legal, não deve o intérprete da lei alçar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, sobe pena de clara violação ao regime de bens pactuado”.

QUATRO CORRENTES DOUTRINÁRIAS:

1 - Primeira corrente: Enunciado 270, da III Jornada de Direito Civil.

A primeira corrente deriva do Enunciado 270, da III Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, que dispõe:
“Enunciado 270
Art. 1.829: O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aqüestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.”

De acordo com esse entendimento, a sucessão do cônjuge obedeceria as seguintes regras:

(i) se os cônjuges se casaram pelo regime da comunhão universal, o sobrevivente não concorre com os filhos na sucessão, já que recebeu suficiente patrimônio em decorrência da meação (incidente, nesta hipótese, sobre todo o patrimônio do casal, independentemente da data de aquisição);

(ii) se o casamento se deu pela separação obrigatória , entendida essa como a separação legal de bens, também não concorrem cônjuge e filhos, porque isso burlaria o sistema legal;

(iii) finalmente, se o casamento tiver sido realizado na comunhão parcial (ou nos demais regimes de bens), há duas possibilidades:
(iii.1) se o falecido deixou bens particulares, o cônjuge sobrevivente participa da sucessão, porém só quanto a tais bens, excluindo-se os bens adquiridos na constância do matrimônio, porque eles já são objeto da meação;
(iii.2) se não houver bens particulares, o cônjuge sobrevivente não participa da sucessão (porquanto sua meação seria suficiente e se daria, aqui, hipótese semelhante à da comunhão universal de bens).

Para maior clareza, foi elaborado um quadro, demonstrativo das regras gerais de sucessão legítima, conforme a 1ª corrente estudada, nas hipóteses em que o falecido tenha deixado descendentes e cônjuge :

1ª Corrente

Compartilham desse entendimento ANA CRISTINA DE BARROS MONTEIRO FRANÇA PINTO (atualizadora do Curso de Direito Civil de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, Vol. 6 – 37ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 97), NEY DE MELLO ALMADA (Sucessões , São Paulo: Malheiros, 2006, p. 175), entre outros.

2 - Segunda corrente: Majoritária.

A segunda e majoritária corrente doutrinária acerca da interpretação do art. 1.829, I, do CC/02, defende uma ideia substancialmente diferente. Os partidários dessa corrente, a exemplo dos defensores do Enunciado 270 das Jornadas, separam, no casamento pela comunhão parcial, a hipótese em que o falecido tenha deixado bens particulares , e a hipótese em que ele não tenha deixado bens particulares (sempre considerando a existência de descendentes).

Se o cônjuge pré-morto não tiver deixado bens particulares, o sobrevivente não recebe nada, a título de herança.

Contudo, se o autor da herança tiver deixado bens particulares, o cônjuge herda, nas proporções fixadas pela Lei (arts. 1.830, 1.832 e 1.837), não apenas os bens particulares, mas todo o acervo hereditário .

MARIA HELENA DINIZ defende essa tese com os seguintes fundamentos (Curso de Direito Civil Brasileiro , v. 6: direito das sucessões – 20ª ed. rev. e atual. de acordo com o Novo Código Civil – São Paulo: Saraiva, 2006, p. 124 e ss.):

i) a herança é indivisível, deferindo-se como um todo unitário (art. 1.791). Assim, não há sentido em dividi-la apenas nas hipóteses em que o cônjuge concorre, na sucessão;

ii) se o cônjuge sobrevivente for ascendente dos demais herdeiros, terá a garantia de 1/4 da herança. Essa garantia é incompatível com sua quase-exclusão, na hipótese em que o falecido tiver deixado poucos bens;

iii) o cônjuge supérstite é herdeiro necessário, e não há sentido em lhe garantir a legítima se ele não herdará, no futuro, esse patrimônio;

iv) em um regime de separação convencional , as partes podem firmar pacto antenupcial disciplinando a comunicação dos aquestos, e não obstante o cônjuge sobrevivente os herdará. Não há sentido em restringir tal direito apenas na comunhão parcial;

v ) meação e herança são institutos diversos. No falecimento, a meação do falecido passa a integrar seu patrimônio, não havendo razão para destacá-la para fins de herança.

Para os defensores dessa corrente, o quadro supra referido ficaria da seguinte forma (sempre na hipótese de o falecido ter deixado bens particulares e filhos):

2ª Corrente

3 - Terceira corrente: Interpretação invertida.

A terceira corrente que se formou para a interpretação do art. 1.829, I, do CC/02, inverte as ideias defendidas pelas anteriores. Encabeçada por MARIA BERENICE DIAS, defende que a sucessão do cônjuge fica excluída na hipótese de o falecido ter deixado bens particulares (“Ponto final”. Disponível em: , acesso em 22 set. 2009).

Enquanto os defensores da primeira e da segunda correntes apenas reconheciam, ao cônjuge casado pelo regime de comunhão parcial de bens, o direito à sucessão na hipótese de o falecido ter deixado bens particulares , esta terceira linha de pensamento defende que só há sucessão na hipótese em que ele não os deixou, concorrendo o cônjuge sobrevivente com os descendentes, na herança dos bens comuns.

Quanto ao regime de separação de bens, destaca que a restrição somente é imposta aos cônjuges casados pelo regime da separação legal de bens, concluindo que na separação convencional, o cônjuge sobrevivente herdará em concorrência com os descendentes.

Pelo sistema defendido por esta corrente, o quadro, para as hipóteses em que o falecido deixou bens particulares e filhos, ficaria da seguinte forma:

3ª Corrente

4 – A doutrina e a sucessão do cônjuge casado no regime da separação de bens.

No tocante à separação de bens, muito embora a doutrina predominante, por meio das três correntes especificadas, posicione-se no sentido de que o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da separação convencional de bens ostenta a condição de herdeiro concorrente, há entendimento em sentido contrário, que tem à testa o saudoso Prof. MIGUEL REALE (in Estudos Preliminares do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 61/64), que assevera serem “duas são as hipóteses de separação obrigatória:
uma delas é a prevista no parágrafo único do art. 1.641, abrangendo vários casos; a outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando pela separação de bens. A obrigatoriedade da separação de bens é uma consequência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão 'separação obrigatória' aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do art. 1.641.” Dessa forma, a separação obrigatória a que se refere o art. 1.829, I, do CC/02, é gênero do que são espécies a separação convencional e a legal. Com base nisso, conclui que em hipótese alguma, seja na separação legal, seja na separação convencional, o cônjuge será herdeiro necessário do autor da herança.

5 – Interpretando o inc. I do art. 1.829 do CC/02.

De início, torna-se impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia da vontade, da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé. A eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica.

Até o advento da Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio), considerada a importância dos reflexos do elemento histórico na interpretação da lei, vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal.

A partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02.

Assim, quando os nubentes silenciam a respeito de qual regime de bens irão adotar, a lei presume que será o da comunhão parcial, pelo qual se comunicam os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, consideradas as exceções legais previstas no art. 1.659 do CC/02. Se em vida os cônjuges assumiram, por vontade própria, o regime da comunhão parcial de bens, na morte de um deles, deve essa vontade permanecer respeitada, sob pena de ocorrer, por ocasião do óbito, o retorno ao antigo regime legal: o da comunhão universal, em que todo acervo patrimonial, adquirido na constância ou anteriormente ao casamento, é considerado para efeitos de meação.

A permanecer a interpretação conferida pela doutrina majoritária de que o cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial herda em concorrência com os descendentes, inclusive no tocante aos bens particulares, teremos no Direito das Sucessões, na verdade, a transmutação do regime escolhido em vida –comunhão parcial de bens – nos moldes do Direito Patrimonial de Família, para o da comunhão universal, somente possível de ser celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública. Não se pode ter após a morte o que não se queria em vida. A adoção do entendimento de que o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da comunhão parcial de bens concorre com os descendentes do falecido a todo o acervo hereditário, viola, além do mais, a essência do próprio regime estipulado.

Por tudo isso, a melhor interpretação é aquela que prima pela valorização da vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida como na morte dos cônjuges. Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja ou não bens particulares, partilháveis, estes, unicamente entre os descendentes.

A separação de bens, que pode ser convencional ou legal, em ambas as hipóteses é obrigatória, porquanto na primeira, os nubentes se obrigam por meio de pacto antenupcial – contrato solene – lavrado por escritura pública, enquanto na segunda, a obrigação é imposta por meio de previsão legal.

Sob essa perspectiva, o regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies:

(i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância.

Dessa forma, não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, salvo previsão diversa no pacto antenupcial, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário.

Entendimento em sentido diverso, suscitaria clara antinomia entre os arts. 1.829, inc. I, e 1.687, do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, entre uma interpretação que torna ausente de significado o art. 1.687 do CC/02, e outra que conjuga e torna complementares os citados dispositivos, não é crível que seja conferida preferência à primeira solução. Importante mencionar, no tocante ao caráter balizador do regime matrimonial de bens no que concerne ao direito sucessório, julgado desta 3ª Turma, do qual se extraem as seguintes ponderações:

“(...) o regime matrimonial de bens atua como elemento direcionador do direito de herança concorrente do cônjuge.
(...)
O regramento sucessório é de suma importância enquanto complexo de ordem pública, em virtude de seus reflexos no organismo familiar e no âmbito social, que vão além do simples direito individual à pertença de bens.” (RMS 22.684/RJ, de minha relatoria, DJ de 28/5/2007.)

Com as considerações acima, inaugura-se uma quarta linha de interpretação, segundo a qual, o quadro, para as hipóteses em que o falecido deixou bens particulares e filhos, ficaria da seguinte forma:

4ª Corrente

Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS

2 comentários:

Unknown disse...

Boa noite amigo jorge , acredito que hoje o snhor já deva ser um brilhante advogado , com todas estas informações que colocou a nossa disposição . nos ajuda a tirar muitas dúvidas ,desde de já eu lhe agradeço e lhe parabenizo por obter essas informações da sua página no site .

Unknown disse...

O amigo pode me ajudar , por favor ; Fiquei viúvo em 12-03-2014, éramos casados no regime comunhão parcial de bens ,os pais da falecida estão em óbito , não tivemos filhos , ela só deixou uma irmã , porém adulta , ela comprou um terreno a prestação antes de casarmos , a irmã tem algum direito no imóvel ou na benfeitoria realizada ,a mesma entrou com embargo de terceiro através de um advogado , questinado o meu inventário , colocando-se como a única herdeira o amigo acha que isso procede , ela terá alguma resposta positiva ? desde de já o meu muito obrigado !