quinta-feira, 17 de setembro de 2009

TRANSFERÊNCIAS ENTRE INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR


MEANDROS DA JUSTIÇA


Existe um conflito jurídico muito mais corriqueiro do que as pessoas pensam. Trata-se justamente do caso das transferências ex officio entre instituições de ensino de municípios diferentes.

Pois a Lei nº 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, em seu art. 49 dispõe sobre a possibilidade de transferência de alunos regulares de instituições de ensino superior para cursos afins, dispondo literalmente que “as instituições de educação superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de existência de vagas, e mediante processo seletivo”. Logo a seguir, em seu parágrafo único, estabelece que “as transferências ex officio dar-se-ão na forma da lei”, deixando claro que deveria haver uma outra lei regulamentando o direito previsto.

E foi justamente o art. 1º da Lei 9.536/97 que veio regulamentar o parágrafo único do art. 49 da Lei 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional -, assegurando a transferência ex officio entre instituições de ensino, em qualquer época do ano e independentemente de vagas, a servidor público removido no interesse do serviço, bem como a seus dependentes, nos seguintes termos:

Art. 1º - A transferência "ex officio" a que se refere o parágrafo único do art. 49 da lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, será efetivada, entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, se requerida em razão de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o município onde se situe a instituição recebedora, ou para localidade mais próxima desta.
Parágrafo único. A regra do caput não se aplica quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de confiança.

Visto assim, o direito parece cristalino, não deixando dúvidas que possam ensejar qualquer conflito. Acontece que não é assim. Seguidamente as pessoas que requerem o direito, acabam tendo seu pleito indeferido por diversos motivos. Entre eles, temos:

1. Exigência de congeneridade.

Congeneridade significa que, se a instituição de origem for privada, a instituição que irá receber o aluno também deverá sê-lo. Assim, se o requerente freqüentava em seu município de origem uma instituição privada, não poderá requerer a matricula em uma instituição pública no município de sua nova residência.

À primeira vista, não podemos identificar na legislação posta, nenhuma exigência de congeneridade. Assim, não haveria óbice à matrícula em universidade pública, mesmo que a instituição de origem seja privada.

Acontece que o Plenário do colendo STF, na data de 16.12.2004, em decisão unânime, julgou procedente, em parte, a ADIn nº 3324-7/DF (medida liminar) que questionou a transferência de militares para universidades públicas. O Plenário acompanhou o voto do relator, Min. Marco Aurélio, que decidiu dar ao art. 1º da Lei 9.536/97 interpretação conforme a CF/88, de modo a autorizar a transferência obrigatória desde que a instituição de destino seja congênere à de origem, ou seja, de pública para pública ou de privada para privada. Considerou-se, assim, que transferência de militar de universidade particular para pública é inconstitucional. (ADI 3324/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, conforme informativo nº 374 do STF).

Segundo tal corrente, entendimento diverso iria conferir privilégio sem justificativa, a determinado grupo social em detrimento do resto da sociedade, violando-se os princípios constitucionais da isonomia e da igualdade de condições para o acesso às universidades de ensino superior (Princípio da Igualdade de Acesso ao Ensino).

Assim sendo, embora reconhecendo que o art. 205 da Magna Carta de 1988 traduz a máxima da proteção que se deve dar à educação, que o estudante merece a sensibilidade de ser amparado pelo espírito do princípio constitucional referenciado e que hoje predomina em nosso ordenamento jurídico uma interpretação liberalista, cabendo ao juiz analisar e julgar a lide conforme os acontecimentos passados e futuros, não precisando ele ficar adstrito aos fatos técnicos constantes dos autos, e, sim, aos sociais que possam advir de sua decisão, os juízes, em nome da segurança jurídica, têm se rendido ao posicionamento do STJ, e estão julgando improcedentes os pleitos onde os requerentes não obedeçam ao Princípio da Congeneridade.

De qualquer maneira, a análise deve ser feita caso a caso. Podemos citar uma decisão contrária ao Principio da Congeneridade que ocorreu no caso em que o impetrante, proveniente de uma universidade particular de Brasília/DF, onde cursava Biomedicina que foi residir com sua companheira, servidora federal, em Florianópolis/SC, onde nenhum estabelecimento de ensino superior, seja público seja privado, oferecia o mesmo curso. Tratava-se de uma situação peculiar onde se questionava qual a solução mais justa. Exigir que ele se matricule num curso com afinidade objetiva e curricular numa instituição privada distante no mínimo 100 Km da Capital, ou permitir que se matriculasse numa universidade pública, localizada no domicílio do impetrante? A última solução foi considerada mais consentânea com os ditames da justiça, já que restou comprovado que o curso de Farmácia-Análises Clínicas era o que mais se assemelha ao de Biomedicina, à vista da Resolução nº 2 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, bem assim da Resolução nº 296 do Conselho Federal de Farmácia. Entendeu-se que não era razoável nem justificável que o impetrante tivesse que se deslocar a outra cidade, distante 100 Km de Florianópolis/SC para atender a exigência da congeneridade, sujeitando-o a um desgaste físico e a um gasto financeiro excessivos.

Portanto, a exigência da congeneridade deve ser mitigada quando não exista na localidade de destino instituição de ensino congênere que ofereça o curso freqüentado pelo estudante, devendo assegurar matrícula obrigatória em curso que guarde maior afinidade com o de origem, desde que este não seja ministrado em nenhum estabelecimento de ensino no novo domicílio.

No caso em tela, foi reconhecido ao requerente o direito à matrícula em universidade pública, porquanto ausente universidade privada que oferecesse o curso de Biomedicina na cidade de Florianópolis/SC, para onde foi transferida a sua companheira, assegurando-se, assim, a continuidade da sua formação universitária.

2. Remoção ou transferência a pedido ou de outras formas afins

O entendimento é de que o direito à transferência é assegurado ao servidor ou ao respectivo dependente que tenha sido removido ou transferido ex officio, não havendo garantia nos casos de remoção, transferência a pedido ou de outras formas afins que importem em mudança de domicílio e dependem de requerimento ou do interesse do servidor, o que acaba afastando o direito à transferência.

3. Diferença curricular

As instituições às vezes negam a transferência alegando a diferença curricular eis que ela encontra-se amparada no art. 207 da Constituição Federal, que dispõe sobre a autonomia didático-científica das universidades. Asseveram que a exigência de afinidade de cursos refere-se às exigências para ingresso, mesmo nome do curso e mesma titulação após a colação de grau. Muitas vezes, argumentam que não há como aproveitar as cadeiras até então cursadas, por serem currículos muito diferentes entre a universidade de origem e a nova instituição.

Como exemplo, podemos citar o caso de uma pessoa que estava regularmente matriculada no Curso de Licenciatura Plena em Química na instituição de origem que solicitou junto à Universidade do seu novo município para ser admitida para curso idêntico (Licenciatura em Química) da instituição de ensino. O pedido foi indeferido sob o argumento de não haver identidade entre os cursos.

Em tal caso foi reconhecido em sede de agravo o direito de transferência disposto no art. 1º da Lei nº 9.536/97.

A justificativa foi a de que o art. 205 da Constituição Federal dispõe sobre a proteção que se deve à educação, que se constitui como um direito de todos e dever do Estado. Portanto, o fato de estranhamente não haver a correspondência entre os currículos entre ambas as instituições, não poderia prejudicar o direito da agravante de ter acesso ao ensino superior. Por outro lado, conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, "não pode o acadêmico parar abruptamente seus estudos por motivos alheios à sua vontade e por aspectos técnicos da lei, por ter, tão-só, sido transferido para uma localidade na qual não há curso idêntico ao da instituição de origem" (REsp 983883/ES, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06.11.2007, DJ 22.11.2007 p. 224).

Assim, em observância à legislação aplicável ao caso e ao princípio constitucional do acesso à educação, foi reconhecido o direito da agravante à realização da sua matrícula no 1º (primeiro) semestre do curso de Licenciatura em Química na Universidade do seu novo município.

4. Abrangência do termo servidor público

Às vezes, surge o questionamento sobre se o requerente está ou não abrangido dentro do conceito de servidor público. Levando-se em conta que a lei, a exemplo do que faziam as anteriores, refere-se exclusivamente a "servidor público federal", a jurisprudência pátria vem entendendo que o mesmo direito é de ser aplicado não só aos servidores dos Estados e Municípios, mas também aos servidores das empresas estatais (pessoas jurídicas de direito privado, inclusive sob a forma de economia mista), ao entendimento de que, sendo estes equiparados, por leis especiais, a "funcionários públicos" para diversos efeitos - até mesmo penais, pois o art. 327, § 1º, do Código Penal determina expressamente que se "equipara a funcionário público para fins penais aquele que exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal" -, fazem jus também aos direitos assegurados aos funcionários públicos, entre os quais aquele referente às transferências escolares.

Neste sentido os seguintes julgados desta Corte e do Egrégio Tribunal Regional Federal da Primeira Região:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA ENSINO SUPERIOR. TRANSFERÊNCIA COMPULSÓRIA. DEPENDENTE DE FUNCIONÁRIO DE EMPRESA PÚBLICA.
Transferida ex officio a mãe do impetrante, funcionária da Caixa Econômica Federal , por extinta a agência da CEF na localidade de Alegrete/RS, possui o direito líquido e certo de ser transferido para idêntico curso na Universidade Federal de Santa Maria, única próxima daquela onde passou a desenvolver suas atividades(São Sepé).
Sentido teleológico da legislação inerente à transferência, estendido não só aos servidores estaduais e municipais, mas também aos funcionários de empresas públicas, por assentado na necessidade de continuação do curso, da preservação da unidade familiar e do princípio constitucional da igualdade.
Precedentes jurisprudenciais.
Apelação provida.
(TRF da 4ª R., AMS nº 199804010330425/RS, Quarta Turma, Rel. Des.
Federal Silvia Goraieb, DJ 04/11/1998:

MANDADO DE SEGURANÇA. EMPREGADO DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. MATRÍCULA DE ACEITAÇÃO OBRIGATÓRIA, EM VIRTUDE DE MUDANÇA DE DOMICÍLIO DECORRENTE DE TRANSFERÊNCIA NO INTERESSE DO SERVIÇO.
1. Orientação jurisprudencial amplamente majoritária nesta Corte Regional a de que a matrícula de aceitação obrigatória decorrente de mudança de domicílio de servidor público, no interesse da administração a que serve, aproveita aos servidores da administração indireta, na qual se incluem as sociedades de economia como o Banco do Brasil, equiparados, para diversos fins, mediante leis especiais, aos funcionários públicos.
2. Cuidando-se, no caso, de empregado do Banco do Brasil S.A.
movimentado no interesse do serviço da cidade de Gurupi para a de Palmas, ambas no Estado do Tocantins, faz ele jus à matrícula de aceitação obrigatória no curso de Direito da Universidade do Tocantins, mediante transferência de igual curso da Fundação Educacional de Gurupi, as duas instituições públicas de ensino superior.
3. Remessa oficial a que se nega provimento.
(TRF da 1ª R., REO 200143000006902/TO, Segunda Turma, , Rel. Des.
Federal Carlos Moreira Alves, DJ 17/06/2003:

Segundo as decisões acima, os benefícios relativos à transferência de estabelecimento de ensino, independentemente de vaga, concedidos aos funcionários públicos federais são extensivos aos servidores da administração indireta, descentralizada, já que as normas devem ser interpretadas teleologicamente, para que aspectos de ordem formal não prejudiquem o interesse do estado em garantir a unidade da família e a proteger e incentivar a educação.

Devem incidir em tais hipóteses, os princípios ditados pela Constituição Federal, entre eles, o da igualdade (art. 5º, caput), do acesso de todos à educação e ensino (art. 205), de formação e aperfeiçoamento dos servidores da União, Estados e Distrito Federal (art. 39, § 2º) e de preservação da entidade familiar (art. 226).

Conclusão

Enfim, estes são os casos mais corriqueiros de conflito entre requerentes e instituições de ensino. Tudo foi pesquisado na jurisprudência atual da Justiça Federal e espero ter colocado uma luz sobre o assunto. Tais litígios têm sido atacados através do remédio constitucional do Mandado de Segurança, eis que ele tem o condão de dar uma resposta mais rápida e efetiva para o deslinde da questão.


Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS

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