domingo, 6 de setembro de 2009

ASSEPSIA SOCIAL

Dedicado à Dona Ivonete Rosa de Menezes

Ao me deparar com a notícia, em um primeiro momento pensei ser uma moradora de rua que estava sendo levada para um local seguro. Porém, lendo toda a reportagem, fiquei surpreso com o fato de que ela não queria ser retirada da calçada que havia escolhido para ser sua moradia. Tratava-se portanto, de uma pessoa que havia optado por viver ao ar livre e que já há alguns anos, ali residia e fazia daquele local o centro de suas atividades de recicladora. Uma situação fática que configura aquilo que em direito chamamos de domicílio, ou seja, residência com ânimo definitivo de ali permanecer.

Acontece que ela não contava com a força daquelas pessoas que possuem uma ”visão sensível” e que não querem ver outros seres ou coisas enfeando a nossa zona central, já que, como apregoam tantos beócios, “o centro é o cartão postal da cidade”. E foi fundamentado em tal princípio que muitos deles já vinham bradando contra os camelôs, os vendedores de churrasquinho, os índios, os mendigos, os cães, os catadores e outros tipos “não padronizados” que transitam pelas ruas centrais de nossa cidade.

Já vimos este filme antes. Essa sede por assepsia social, aconteceu em diversos momentos da história da humanidade, encontrando seu auge durante o regime nazista da Alemanha no século passado. Para os seguidores de tais doutrinas, todos aqueles que fogem aos padrões da normalidade, devem ser retirados e levados para lugares em que fiquem longe dos olhos da sociedade: os loucos devem ir para os hospícios, os doentes para hospitais, velhos para asilos, indigentes para albergues, criminosos para as prisões e assim por diante. O que não podem, é ficar vagando pelas ruas e ferindo o “senso estético refinado” das pessoas consideradas “normais”.

Pois finalmente, para alívio dos “cidadãos de bem”, chegou a vez da senhora Ivonete Rosa de Menezes, 55 anos, cujo erro foi ter o desplante de querer morar em uma zona nobre da cidade sem pagar aluguel ou IPTU, justamente na esquina das Ruas Venâncio Aires com Av. Rio Branco. Assim, ela foi retirada “manu militari” do seu domicílio sem ser consultada previamente. Isso porque não é admissível que alguém opte por um caminho diferente daquele que a nossa mediocridade considera ser o mais correto.
Estamos chegando lá. Agora foi a senhora Ivonete; depois serão os camelôs e vendedores ambulantes. Em seguida serão os índios, os cães e os mendigos, até que finalmente, teremos a cidade de nossos sonhos: uma cidade asséptica e isenta de qualquer mazela; uma cidade “para turista ver”. Como se pudéssemos resolver todos os nossos problemas simplesmente varrendo-os para debaixo do tapete.

Lá se foi Dona Ivonete atender ao seu compromisso urgente. Agora, não apenas uma sem-teto, mas uma sem-aba, sem-cidade, sem-dignidade, sem-proteção e o pior, sem-cidadania. Afinal, tiraram-lhe até o direito de optar por seu modo alternativo de viver.

Um aviso: cuidado senhores, pois o tapete está ficando pequeno para tanta gente.

Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS


Publicado no site
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2009/09/453820.shtml
Publicado no jornal A Razão no dia 10 de Setembro de 2.009
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