TRADUÇÃO
PEDRO CASTRO
Há
150 anos, o estrondo dos canhões nas barricadas da Comuna de Paris despertaram
a classe operária mundial para a luta contra a exploração. Publicado
originalmente na Rabochaya Gazeta, em 1911, o revolucionário Vladimir Lênin
resgata a imortalidade de uma das primeiras tentativas de um levante da classe
trabalhadora para criar o socialismo.
Já
se passaram quarenta anos desde a proclamação da Comuna de Paris. Seguindo a
tradição, o proletariado francês honrou a data com comícios e manifestações em
memória dos homens da revolução de 18 de março de 1871. No final de maio
voltarão a levar coroas de flores às tumbas dos communards fuzilados durante a
terrível “semana de maio” e a jurar, diante delas, que lutarão sem descanso até
o triunfo completo de suas ideias, até dar por cumprida a obra por eles legada.
Por
que o proletariado – não apenas o francês como o de todo o mundo – honra os
combatentes da Comuna e seus precursores? Qual é a herança da Comuna?
A
Comuna de Paris surgiu de forma espontânea; ninguém a preparou de modo
consciente ou sistemático. A terrível guerra contra a Alemanha, os sofrimentos
das privações impostas pelo cerco militar, o desemprego operário e a ruína da
pequena burguesia; a indignação das massas contra as classes superiores e
contra as autoridades, que haviam demonstrado uma incapacidade absoluta; a
surda efervescência no seio da classe operária, descontente de sua situação e
ansiosa por um novo regime social; a composição reacionária da Assembleia
Nacional, que fazia temer os destinos da República, foram as causas que
concorreram com outras muitas para impulsionar a população parisiense para a
revolução do 18 de março, que colocou de improviso o poder nas mãos da Guarda
Nacional, em mãos da classe operária e da pequena burguesia, que havia se unido
a ela.
Foi
um acontecimento histórico sem precedentes. Até então, o poder estava, em
geral, nas mãos dos grandes proprietários de terra e dos capitalistas, quer
dizer, de seus mandatários, que constituíam o chamado governo. Depois da
revolução de 18 de março, quando o governo do senhor Adolphe Thiers fugiu de
Paris com suas tropas, sua polícia e seus funcionários, o povo tomou o controle
da situação, e o poder passou para as mãos do proletariado. Porém, na sociedade
moderna, o proletariado, avassalado no campo econômico pelo Capital, não pode
dominar na política se não romper as correntes que o amarram ao Capital. Daí
que o movimento da Comuna deveria adquirir inevitavelmente um matiz socialista,
isto é, deveria tender ao aniquilamento do domínio da burguesia, da dominação
do capital e à destruição das próprias bases do regime social contemporâneo.
A
princípio, tratou-se de um movimento heterogêneo e confuso. A ele somaram-se
também os patriotas e nacionalistas, na esperança de que a Comuna reiniciaria a
guerra contra os alemães e levasse a um desenlace venturoso. Apoiaram-no também
os pequenos lojistas, em perigo de arruinamento se não se adiasse o pagamento
dos títulos vencidos e dos aluguéis – adiamento este que lhes era negado pelo
governo, mas que a Comuna lhes concedeu. Por último, no começo também
simpatizaram em certa medida com os movimentos republicanos burgueses,
temerosos de que a reacionária Assembleia Nacional (os ruralistas, os violentos
latifundiários) restabelecessem a monarquia. Porém, o papel fundamental nesse
movimento foi desempenhado, naturalmente, pelos operários (sobretudo os
artesãos parisienses), entre os quais se havia espalhado, nos últimos anos do
Segundo Império da França, uma intensa propaganda socialista –muitos deles,
inclusive, eram filiados à Internacional comunista.
Somente
os operários revelaram-se fiéis à Comuna até o seu fim. Os republicanos
burgueses e a pequena burguesia não tardaram em apartar-se dela: uns
assustaram-se com o caráter revolucionário socialista do movimento, com seu
caráter proletário; outros se afastaram quando viram que a Comuna estava inevitavelmente
condenada à derrota. Apenas os proletários franceses apoiaram seu governo sem
temor nem vacilo; só eles lutaram e morreram por ele, quer dizer, pela
emancipação da classe operária, por um futuro melhor para os trabalhadores.
Abandonada
por seus aliados de outrora e sem poder contar com nenhum apoio, a Comuna
precisava ser derrotada. Toda a burguesia francesa, todos os latifundiários,
especuladores da bolsa e fabricantes, todos os grandes e pequenos ladrões,
todos os exploradores uniram-se contra ela. Com a ajuda de Bismarck (que pôs em
liberdade 100 mil soldados franceses, prisioneiros dos alemães, para esmagar a
Paris revolucionária), essa coalizão burguesa logrou confrontar com o
proletariado parisiense os camponeses atrasados e a pequena burguesia de
províncias e cercar metade de Paris com um anel de ferro – a outra metade havia
sido cercada pelo exército alemão. Em algumas cidades importantes da França
(Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Dijon e outras) os operários também tentaram
tomar o poder, proclamar a Comuna e acudir Paris. Tais intentos, porém, logo
fracassaram, e Paris, que havia sido o primeiro local a desfraldar a bandeira
da insurreição proletária, ficou abandonada à sua própria sorte, condenada a
uma morte certa.
Para
que uma revolução social triunfe, são necessárias pelo menos duas condições: um
alto desenvolvimento das forças produtivas e um proletariado preparado para
tal. Contudo, em 1871, nenhuma dessas condições estava dada. O capitalismo
francês encontrava-se ainda pouco desenvolvido; a França era, então,
fundamentalmente um país de pequena burguesia (artesãos, camponeses, lojistas
etc.). Da mesma forma, não existia um partido operário; a classe operária não
tinha preparação nem havia passado por um grande treinamento e, em sua massa,
sequer tinha uma noção totalmente clara de quais eram seus objetivos nem como
se poderia alcançá-los. Não havia uma organização política séria do
proletariado nem sindicatos e cooperativas fortes…
Mas
o que faltou à Comuna foi, principalmente, tempo, isto é, possibilidade para
perceber a situação das coisas e empreender a realização de seu programa. Não
teve tempo para iniciar essa tarefa quando o governo, entrincheirado em
Versalhes e apoiado por toda a burguesia, iniciou as operações militares contra
Paris. A Comuna teve de pensar, antes de tudo, em sua própria defesa. E até seu
fim, que ocorreu na semana de 21 a 28 de maio, não houve tempo para pensar com
seriedade em outra coisa.
Por
certo, mesmo com essas condições tão desfavoráveis e à brevidade de sua
existência, a Comuna teve tempo de aplicar algumas medidas que caracterizam
bastante seus verdadeiros sentido e objetivo. Substituiu o exército permanente,
instrumento cego em mãos das classes dominantes, pelo armamento de todo o povo;
proclamou a separação da Igreja do Estado; suprimiu a subvenção ao culto (o
soldo que o Estado pagava aos padres) e deu um caráter estritamente laico à
instrução pública, com o que desferiu um rude golpe aos soldados de batina.
Pouco
foi o que se pôde fazer no terreno puramente social. Esse pouco, porém, mostra
com suficiente clareza seu caráter de governo popular, de governo operário: o
trabalho noturno fpo abolido nas padarias, o sistema das multas foi extinto –
essa exploração consagrada pela lei, com que se vitimavam os operários – e,
finalmente, foi promulgado o famoso decreto de entrega de todas as fábricas e
oficinas abandonadas ou paralisadas por seus donos às cooperativas operárias,
com o objetivo de retomar a produção. E, para sublinhar, seu caráter de governo
autenticamente democrático, proletário, a Comuna dispôs que a remuneração de
todos os funcionários administrativos e do governo não fosse superior ao
salário normal de um operário, nem passasse em nenhum caso dos 6 mil francos
anuais (menos de 200 rublos ao mês).
Todas
essas medidas mostravam eloquentemente que a Comuna constituía uma ameaça de
morte ao Velho Mundo, baseado no avassalamento e na exploração. Essa era a
razão pela qual a sociedade burguesa não podia dormir tranquilamente enquanto o
ajuntamento de Paris ostentasse a bandeira vermelha do proletariado. E, quando
a força organizada do governo pôde, afinal, dominar a força mal organizada da
revolução, os generais bonapartistas, esses mesmos generais derrotados pelos
alemães mas com atitudes garbosas frente a seus compatriotas vencidos, esses
Rennenkampf e Méller-Zakomelski franceses fizeram uma matança como nunca vista
em Paris. Cerca de 30 mil parisienses foram mortos pela soldadesca enfurecida;
uns 45 mil foram detidos, executados logo muitos e desterrados ou enviados a
trabalhos forçados milhares deles. No total, Paris perdeu 100 mil filhos, entre
os quais se encontravam os melhores operários de todos os ofícios.
A
burguesia estava satisfeita. “Agora o socialismo acabou, por um longo tempo!”,
dizia seu sanguinário chefe, o diminuto Adolphe Thiers, quando ele e seus
generais afogaram em sangue a sublevação do proletariado de Paris. Mas de nada
serviram os grunhidos desses corvos burgueses. Não passariam ainda seis anos da
derrocada da Comuna, enquanto se achavam muitos de seus lutadores em presídio
ou no exílio, quando na França iniciou-se um novo movimento operário. A nova
geração socialista, enriquecida com a experiência de seus predecessores e em
absoluto desencorajada pela derrota que sofreram, recolheu a bandeira caída das
mãos dos combatentes da Comuna e levou-a adiante com firmeza e valentia aos
gritos de “Viva a revolução social! Viva a Comuna!”. E três ou quatro anos mais
tarde um novo partido operário e a agitação que levantará no país obrigaram as
classes dominantes a pôr em liberdade os communards que o governo ainda
mantinha presos.
Honram
a memória dos combatentes da Comuna não só os operários franceses, senão também
o proletariado de todo o mundo, pois ela não lutou apenas por um objetivo local
ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora,
de todos os humilhados e ofendidos. Como combatente de vanguarda da revolução
social, a Comuna ganhou a empatia onde quer que o proletariado sofra e lute. A
epopeia de sua vida e de sua morte, o exemplo de um governo operário que
conquistou e reteve em suas mãos durante mais de dois meses a capital do mundo
e o espetáculo da heróica luta do proletariado e seus padecimentos depois da
derrota têm levantado até hoje a moral de milhões de operários, têm alentado
suas esperanças e têm conquistado sua simpatia para o socialismo. O troar dos
canhões de Paris despertou de seu sono profundo às camadas mais atrasadas do
proletariado e deu um impulso à propaganda socialista revolucionária em todas
as partes. Por isso não morreu a causa da Comuna, por isso segue vivendo até
hoje em cada um de nós.
A
causa da Comuna é a causa da revolução social, é a causa da completa
emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado
mundial. E, nesse sentido, é imortal.
Sobre os autores
VLADIMIR LÊNIN
foi um dos principais
revolucionários comunistas do século XX e teórico político russo que serviu
como chefe de governo da Rússia Soviética de 1917 a 1924 e da União Soviética
de 1922 até sua morte.
https://jacobin.com.br/2021/03/em-memoria-da-comuna/
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