“…o
raciocínio nunca fará um homem corrigir uma opinião errônea que ele nunca
adquiriu por raciocínio.” (Jonathan Swift)[1]
O
escritor francês Louis Jacob [2], ao estudar a repressão jacobina durante a
Revolução Francesa, demonstrou que existe um método muito útil para o Estado
coonestar as suas mais abomináveis atrocidades: o slogan. O slogan é algo
destituído de conteúdo, mas com forte conotação pejorativa, que logo suscita as
paixões partidárias mais ferrenhas. Em alguns casos, o seu propósito é suscitar
o medo. Com rótulos impactantes e chavões repetidos ad nauseam, consegue-se
incutir na sociedade a necessidade não apenas da repressão estatal, mas da
repressão implacável e impiedosa.
O
terrorismo é um slogan que sempre se prestou a justificar a desprezível
política externa norte-americana. “Uma política externa que endossa intervenção
e ocupação mundiais”, denuncia o ex-senador norte-americano Ron Paul, “requer
que o povo viva em perpétuo medo de supostos inimigos”. [3]
Ter
um inimigo perpétuo é fundamental justificar a repressão estatal, interna e
externamente. Entender o terrorismo, ou aquilo que se rotula como terrorismo,
exige muito mais do que essa análise tosca e maniqueísta que procura atribuir
aos povos árabes e de religião muçulmana a eterna condição de vilões. “Se
quisermos por fim à violência”, pondera Ron Paulo, “é certo que devemos
procurar saber o que deu origem a ela, especialmente se a violência é de
natureza política.” [4]
O
judicioso Locke foi quem, com precisão cirúrgica, conseguiu entender esse tipo
de violência, cuja origem não é senão a própria repressão do Estado. Diz o
filósofo inglês, com uma linha de raciocínio impecável:
Governos
justos e moderados são por toda parte tranquilos, por toda parte seguros. Mas a
opressão fermenta, e faz os homens lutarem para se livrar de um jugo incômodo e
tirânico. Sei que sedições são frequentemente levantadas usando a religião como
pretexto, mas isso é tão verdadeiro quanto o fato de que, por causa da
religião, os súditos são muitas vezes maltratados, vivendo de forma miserável.
Creia-me, as agitações que se produzem não derivam de um ânimo peculiar desta
ou daquela igreja, mas da disposição comum a toda a humanidade, quando está a
grunhir sob um grande peso, de tentar naturalmente se livrar do jugo que pesa
sobre seu pescoço. Suponha-se que esses negócios de religião fossem deixados de
lado e que alguma outra distinção fosse feita entre os homens, baseada em suas
compleições, formas e feições, de modo que, como exemplo, aqueles que têm
cabelos pretos ou olhos cinzentos não tivessem os mesmos privilégios de outros
cidadãos, que a eles não fosse permitido comprar ou vender ou ganhar a vida por
sua profissão, que os pais não tivessem direito de governar e educar seus
filhos, que vivessem excluídos dos benefícios da lei ou então só encontrassem
juízes parciais: há alguma dúvida de que essas pessoas, discriminadas das
outras pela cor de seus cabelos e olhos e unidas por uma perseguição comum,
seriam tão perigosas para o magistrado como aquelas que se associam
simplesmente por causa da religião? Alguns procuram companhia para negócios e
lucros, já outros, na falta do que fazer, têm seus clubes, onde bebem vinho. A
vizinhança reúne alguns, a religião outros. Mas há somente uma coisa que junta
as pessoas em comoções sediciosas, e esta coisa é a opressão. [5]
Se
um Estado conduz e mantém uma política, interna e/ou externa, de perseguição e
supressão de direitos contra um determinado grupo de pessoas, escolhendo uma
determinada característica que essas pessoas têm em comum como critério de
perseguição, então essa própria condição que elas têm em comum tornará o motivo
da união delas em “grupos sediciosos”.
Peguemos
o exemplo de Locke: pessoas de olhos cinzentos. Note-se que essas pessoas irão
então abstrair todas as eventuais diferenças que, em uma situação ordinária, as
manteriam afastadas umas das outras, para levarem em conta tão somente aquele
aspecto que o governo se valeu para persegui-las e oprimi-las, e por esse
aspecto se associarão para lutarem contra a opressão. No exemplo dado, todos as
pessoas que têm “olhos cinzentos” irão se unir por esse detalhe e desconsiderarão
todo o resto: palmeirenses de olhos cinzentos, corintianos de olhos cinzentos,
judeus de olhos cinzentos, muçulmanos de olhos cinzentos, advogados, médicos,
motoqueiros, professores, brancos, negros, italianos, brasileiros, libaneses,
suecos, alemães, todos que têm olhos cinzentos se unirão contra a opressão que
lhes é imposta.
Não
fosse essa perseguição “por ter olhos cinzentos”, muito provavelmente o
palmeirense e o corintianos jamais pensariam em sentar um do lado do outro; mas
a opressão que sofrem os uniu. Agora troque “olhos cinzentos” por “árabes”,
“muçulmanos”, “palestinos” etc., e a causa do dito terrorismo, que poderíamos
muito bem chamar de reivindicação por meio de violência política, começará a
ficar mais clara. Não justificada, certamente, pois nada justifica o
assassinato de inocentes, nem mesmo o uso da violência para reclamar direitos.
Mas é justamente por chegar a esse extremo é que a reivindicação de direitos,
ou, por outras palavras, a libertação da opressão, acaba explicando essa
violência política.
A
análise do terrorismo por esse ângulo é muito mais honesta, muito mais humana,
e é muito mais elucidativa do problema do que simplesmente sair proferindo
slogans e rotulando árabes e muçulmanos de terroristas. Trata-se de realmente
querer entender, e acima de tudo solucionar o problema da violência política,
pois, como pondera Ron Paul, “a maior parte do terrorismo não é irracional, mas
orientado por queixas bem específicas”. [6] A presença, por exemplo, de
militares dos Estados Unidos nas terras desses grupos certamente é uma dessas
queixas (aliás estamos esperando até hoje fotos das armas de destruição em
massa dos iraquianos…).
A
violência política é aquela que o Estado combate de maneira mais impiedosa,
pois essa violência costuma ser voltada precisamente a demonstrar algum tipo de
violência ou opressão do próprio Estado, ou seja, algum tipo de reivindicação
de justiça e direitos por parte dos oprimidos. Se estes últimos não receberem
algum tipo de apoio, moral e material — da comunidade internacional, por
exemplo —, dificilmente aquilo que eles procuram revelar com a sua violência
política será percebido e corrigido.
“A
insurreição e a repressão”, diz Victor Hugo, “nunca lutam com armas iguais”.
[7] O Estado sempre tem a vantagem no uso da violência (até porque a
monopoliza, não?), não só a vantagem material ou numérica, mas até mesmo a
vantagem linguística: o Estado tem a vantagem de poder rotular — e coonestar —
a sua violência de modo que ela não apareça aos olhos de terceiros como
violência: estrito cumprimento do dever legal, legítima defesa, presunção de
veracidade; e o contrario sensu disso é obviamente a rotulação pejorativa da
violência daqueles que lhe opõe resistência: terrorismo, anarquismo, comunismo
etc.
Nesse
contexto, a tipificação do crime de terrorismo nada mais é do que a consagração
dessa vantagem do Estado de rotular os insurrectos. A tipificação nada resolve
o problema do terrorismo; antes, o oculta. Aliás, diz-se que o próprio Direito
Penal não resolve as causas de problema nenhum, pois, como bem escreve
Carnelutti, “o Direito Penal, à diferença desses outros institutos, combate-o
diretamente, ou seja, não operando sobre as causas do delito senão sobre o
delito mesmo“. [8]
Os
penalistas de hoje [9] adoram comentar novos tipos penais. Adoram esmiuçar as
condutas tipificadas. Parecem aqueles místicos de outrora que decifram textos
ocultos e desenterrados. Hoje os penalistas mais justificam o poder punitivo do
que o limitam, como deveria ser. E a lei de terrorismo, que é uma lei que
antecipa a punibilidade dos atos preparatórios, que criminaliza o “integrar” um
determinado grupo (o que estimula um Direito Penal do Autor), é um exemplo
sensível disso.
Não
justifico, em hipótese alguma, a violência contra inocentes, muito menos
crianças e civis indefesos. Ocorre que, enquanto o dito terrorismo continuar a
ser abordado dessa maneira puramente panfletária e partidarizada, para não
dizer desonesta, dificilmente o conflito que estamos testemunhando será
resolvido, no presente e no futuro. Aliás, a própria permanência desse conflito
por tanto tempo já é demonstração cabal de que não se tem tratado esse assunto
com a seriedade que ele merece.
[1]
SWIFT, Jonathan. Panfletos satíricos, Trad. Leonardo Fróes, Rio de Janeiro:
Topbooks, 1999, p. 461.
[2]
JACOB, Louis. Les suspects pendant la Révolution: 1789-1794, Libraire Hachette,
1952, p. 7.
[3]
PAUL, Ron. Definindo a liberdade, Trad. Tatiana Villas Boas Gabbi e Caio Márcio
Rodrigues, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2013, p. 37.
[4]
Op. cit., p. 268.
[5]
LOCKE, John. Cartas sobre a tolerância, Trad. Ari Ricardo Tank Brito, São
Paulo: Hedra, 2010, p. 83.
[6]
Op. cit., p. 268.
[7]
HUGO, Victor. Os miseráveis, Vol. II, Trad. Regina Célia de Oliveira, São
Paulo: Martin Claret, 2007, p.379.
[8]
CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Trad. Francisco José
Galvão Bruno, Campinas-SP: Bookseller, 2004, p. 72.
[9]
Aliás não só os de hoje, se tomarmos o testemunho de MONTESQUIEU: “É tão grande
a abundância de leis adotadas, e, por assim dizê-lo, naturalizadas, que por
igual oprimem a justiça e os juízes. Mas estes volumaços de leis nada são
comparados com o tremendo exército de glosadores, comentadores e compiladores; personagens
não menos fracos por sua falta de razão que fortes pela superabundância de seus
escritos.” (MONTESQUIEU. Cartas persas, Trad. Mário Barreto, São Paulo: Martin
Claret, 2009, p. 148)
https://www.conjur.com.br/2023-nov-12/nadir-mazloum-terrorismo-slogan-eua/
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