Pode
ficar em paz. Movimentos de luta pela terra, como o MST, ou de luta por
moradia, como o MTST, bem diferente do que a propaganda da direita quer passar,
são os que mais lutam pelo direito de todos terem um teto e alimento para viver
com dignidade.
Historicamente,
governos brasileiros de direita como o de Bolsonaro buscam, a todo custo,
reverter conquistas históricas da classe trabalhadora, frutos de uma árdua luta
coletiva que se desenvolve cotidianamente. Desde 2016, os ataques contra o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto (MTST) se intensificaram.
Escolhidos
como inimigos preferenciais pelos conservadores e pela classe proprietária, são
taxados como “terroristas vermelhos” e “invasores” da propriedade alheia,
buscando legitimar a violência dos patrões e do Estado contra eles. A
caracterização das organizações populares como “criminosas” não é apenas mera
bravata que expressa acirramento da ofensiva ideológica reacionária, mas uma
condição necessária a dar forma à política prática dos que visam aprofundar à
situação de terra arrasada para a população trabalhadora brasileira — e
justificar a continuidade de uma verdadeira guerra aos pobres.
Com
o aprofundamento da crise social capitalista, escancarada com a chegada da
pandemia de COVID-19, as contradições do sistema de classes vão se tornando
cada vez mais nítidas. As elites se veem obrigadas a construir um consenso em
torno da criminalização da luta popular. Qualquer protesto social militante é
condenado de partida como intolerável. Mesmo diante desse cenário, a
resistência do MST e MTST, principalmente após a eleição de Jair Bolsonaro em
2018, consegue pôr em questão esse consenso conservador, promovendo e
expandindo suas lutas, suas alianças com outros setores da sociedade, e
educando tanto sua base quanto a população em geral acerca dos objetivos e
estratégias de seus movimentos.
Com
esforço e criatividade, esses movimentos têm conseguido construir vínculos de
solidariedade com amplas camadas do povo brasileiro e conquistar a simpatia de
pessoas que não estão ligadas a essas lutas específicas. Se antes
considerava-se normal esbravejar que movimentos invasores buscavam ilegalmente
ocupar locais de “pessoas comuns”, as contradições da relação capital-trabalho
fazem com que os trabalhadores — jogados novamente ao mapa da fome, desemprego
e situação de rua — compreendam qual a verdadeira ameaça para suas vidas. E ela
tem nome: capitalismo.
O MST não quer roubar seu
sítio ou sua fazenda
Como
presidente, Jair Bolsonaro ameaçou classificar as ocupações do MST como
“terrorismo”. Assim como seus pares na extrema direita, Bolsonaro não aceita os
mais básicos direitos sociais estabelecidos pela Constituição de 1988. A
reforma agrária, objetivo principal do movimento, é, pelo menos no papel, uma
política do Estado brasileiro desde a redemocratização.
O
MST, uma das maiores e mais articuladas organizações de luta social da América
Latina, foi fundado em 1984 com o objetivo histórico de erguer a bandeira da
luta por uma reforma agrária no país – respondendo ao problema objetivo da
brutal concentração fundiária no campo brasileiro. O esforço do MST já deu
muitos frutos concretos, contribuindo diretamente para o assentamento de mais
de 400 mil famílias. Outras 120 mil continuam à espera de um pedaço de chão,
nos acampamentos organizados pelo movimento.
“Realizar a reforma agrária,
longe de ser uma demanda subversiva, é apenas uma exigência constitucional.
‘Criminoso’, portanto, não é o movimento, mas o latifúndio.”
O
MST luta por um direito, reconhecido expressamente na Constituição de 1988. O
artigo 186 afirma que a desapropriação de terras não só é permitida como
recomendada quando uma propriedade não cumpre sua função social e não atende a
uma série de requisitos, sendo eles: “aproveitamento racional e adequado;
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”
Realizar a reforma agrária, longe de ser uma demanda subversiva, é apenas uma
exigência constitucional. O que o MST e outros movimentos do campo reclamam é
que se cumpra o que o próprio ordenamento jurídico democrático brasileiro já estabelece.
“Criminoso”, portanto, não é o movimento, mas o latifúndio.
Toda
terra deve cumprir uma função social, ou seja, ter sua utilização correta,
condizente com o bem-estar social coletivo. O Estado, portanto, pode intervir
no título de tal propriedade privada caso ela não esteja cumprindo sua devida
função. O que acontece é que muitas terras, concentradas na mão de
latifundiários que promovem a especulação imobiliária, são improdutivas
justamente para que a riqueza dos proprietários aumente cada vez mais, às
custas de privações e sofrimentos para as famílias trabalhadoras.
Nas
últimas décadas, uma parte do latifúndio improdutivo tem se convertido em
agronegócio, e embora isso tenha se mostrado um grande negócio para os donos de
terra, o mesmo não pode ser dito para os despossuídos. Como sempre, os lucros
são privatizados, mas os prejuízos recaem nas costas dos que não tem nada:
desmatamento e destruição do solo, envenenamento por agrotóxicos, grilagem e
expulsão de camponeses de suas terras, invasão de territórios indígenas. O
capital avança pelo campo, e o remodela a sua própria imagem, destruindo formas
tradicionais de vida comunitária, proletarizando o campesinato e devastando o
meio ambiente.
A
aliança entre fazendeiros, capital financeiro internacional, grandes projetos
de energia e mineração, produz uma modernização não só muito mal distribuída
como furiosamente violenta, enriquecendo uns poucos e empobrecendo as duas
fontes originais de toda a riqueza: o trabalhador e a terra. Mas esses interesses
são poderosos o bastante para capturar o poder político, daí a força da
“bancada do boi” e sua influência nas decisões do executivo (basta olhar para o
orçamento). Diante do abandono do Estado em relação aos mais pobres, não resta
outra alternativa à população que não a organização militante, a ação coletiva
e a luta confrontacional por direitos.
A luta prática em meio ao
limite institucional
No
Brasil, sob o infortúnio de contar com uma classe dominante particularmente
autoritária e conservadora, estar na lei não significa que será aplicado.
Apesar da letra da Constituição, a concentração de terras cresce e o número de
desapropriações diminui. Em virtude da força do poder do dinheiro, o
agronegócio é dono do país — não só dono das terras, como do parlamento. A
propriedade privada, não a lei (para nem falar do povo), é quem reina soberana.
Em 2010, latifúndios representavam 40% das grandes propriedades rurais
brasileiras. Em 2015, aproximadamente 228 milhões de hectares estavam
abandonados ou fora da sua função social, logo, aptos para a desapropriação.
“A dívida do setor com o
Estado brasileiro chegou a mais de R$ 700 bilhões em 2022, totalizando 22,4% do
PIB nacional (R$ 1,5 trilhão).”
Para
quem é descrito como o “motor da economia brasileira” por empresários do campo
e parte da mídia brasileira, o agronegócio exibe uma potência decepcionante. É
muita propaganda para pouco vigor. Para além das regalias do financiamento
estatal a juros baixíssimos, o agronegócio sequer consegue pagar suas dívidas,
que sempre precisam ser renegociadas com uma boa dose de subsídio público,
alongamento de prazos, ampliação de benefícios e coisas tais. A dívida do setor
com o Estado brasileiro chegou a mais de R$ 700 bilhões em 2022, totalizando
22,4% do PIB nacional (R$ 1,5 trilhão), segundo a própria Associação Nacional
de Defesa dos Agricultores (Andaterra). Tampouco o agronegócio gera empregos. O
censo agropecuário de 2017 feito pelo IBGE também registra que apesar de ocupar
77% da área de todos os estabelecimentos agropecuários brasileiros, o
agronegócio emprega apenas 33% dos trabalhadores do setor, enquanto a grande
maioria (67%) trabalha na agricultura familiar.
Em
meio a uma crise econômica sem precedentes, e as porteiras generosamente
abertas para deixar passar uma boiada de políticas econômicas neoliberais
passando, a inflação vai esvaziando o prato de comida na mesa das famílias
trabalhadoras: já são perto de 20 milhões de brasileiros atingidos pela fome, e
cerca de 55,2% da população em estado de insegurança alimentar (de acordo com o
Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia, da Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). A
desapropriação de terras improdutivas, o assentamento de famílias e a
disponibilização de recursos para a produção agroecológica e formação de
cooperativas no campo são todos elementos cruciais para o fortalecimento da agricultura
familiar e, consequentemente, para a erradicação da fome no país novamente.
A
defesa de movimentos como o MST é uma pauta fundamental de todo socialista.
Deslocar o centro do debate para a questão da soberania alimentar, e do direito
universal à comida de qualidade, significa não apenas fortalecer a luta contra
as mazelas do agronegócio, mas garantir a sobrevivência material dos
trabalhadores pobres, para que possam seguir lutando por dias melhores. Agindo
no limite do institucional, o movimento trava o bom combate pela conquista do
devido e adequado uso social da terra. O já famoso boné vermelho, que traz um
casal camponês com o punho ao alto e os contornos do Brasil ao fundo, é
emblemático como imagem do país que podemos ser, mas é também uma questão de
urgência prática para todos que querem ver uma classe trabalhadora forte e
confiante, disposta a disputar e conquistar o poder político.
Não, o MTST não vai ocupar
sua casa ou apartamento
Afunção
social não apenas se estende para as propriedades rurais, mas também urbanas. A
regulamentação se dá principalmente através do Estatuto da Cidade, que
determina políticas de desenvolvimento urbano para promoção do desenvolvimento
das funções sociais da cidade. Mas para além de qualquer lógica de direitos e
bem estar coletivo, o mercado imobiliário se mostra um protagonista feroz, e
nada “urbano”, na disputa pelo destino dos territórios e pela própria
conformação do espaço público, deformando a cara das nossas cidades.
O
centro da cidade de São Paulo, a cidade mais rica do país, é uma das áreas onde
tal processo de gentrificação se torna mais nítido, por ser um dos locais com
maior concentração de prédios abandonados no Brasil. Enquanto isso, a população
de rua na cidade aumentou em cerca de 31,4% no ano de 2021.
“A maneira eficaz que o povo
trabalhador encontrou para fazer valer seus direitos é ocupando ‘imóveis vazios
e abandonados de grandes proprietários, em geral com dívidas milionárias com o
Poder Público’.”
É
esse mapa de desigualdade que explica o aparecimento de movimentos como o MTST,
que travam o combate por moradia digna, pressionando o Estado a cumprir as leis
de função social e destinar áreas ociosas para a moradia social. Esses
movimentos não “roubam” a casa de ninguém — “ao contrário, o Movimento
conquista casas para pessoas que não têm”. A maneira eficaz que o povo
trabalhador encontrou para fazer valer seus direitos é ocupando “imóveis vazios
e abandonados de grandes proprietários, em geral com dívidas milionárias com o
Poder Público”. Nada mais justo, já que “esses imóveis ocupados estão em
situação ilegal, por não cumprirem a função social exigida pela Constituição e
o Estatuto das Cidades”, diz Guilherme Boulos, coordenador do MTST, sobre a
falsa concepção de que o movimento quer “invadir a casa da gente”.
Do projeto à vitória
Enão
é só ocupar: o MTST acompanha de perto as iniciativas de moradia estatal e faz
questão de lutar por melhorias em cada projeto. Como muitas vezes cabe a
construtoras definir o local de novas construções de moradias populares, o
movimento permanece atento para que as moradias sejam feitas com a melhor
qualidade possível e tamanho digno para uma vida de boa qualidade – e isso
envolve a luta para além do projeto, mapeando terrenos e supervisionando obras.
O
Brasil possui um dos maiores números de trabalhadores do continente, com 80% da
população habitando cidades metropolitanas. Logo, capitais urbanas são a maior
expressão das contradições da luta de classes. O déficit habitacional no país,
segundo o Instituto João Pinheiro, é de 5,8 milhões. Números de 2018 mostram,
em contraste, que mais de 6 milhões de imóveis encontram-se desocupados ao
redor do país. Há, portanto, mais moradias vazias do que pessoas morando nas
ruas. É neste contexto que o MTST aplica sua tática de ocupações pontuais e
planejadas.
Ao
contrário do discurso da extrema direita, as ocupações dos trabalhadores
sem-teto não são obras de vagabundos, ou tramadas por indivíduos desocupados.
Os números do pós-pandemia não mentem: milhares perderam suas casas em todo
território brasileiro porque não conseguem conciliar as despesas habitacionais
com o custo de vida por causa dos baixos salários — e são justamente essas
pessoas que vão engrossar as fileiras do movimento. Como os salários têm
estagnado, e a renda das famílias trabalhadoras diminuído, mas os preços dos
bens necessários para viver continuar a aumentar, muitas vezes essas famílias
se vêem forçadas a escolher entre pagar o teto ou a comida. As políticas
econômicas preferidas pela classe proprietária, e intensificadas desde o golpe
de 2016, tornam insustentável que um trabalhador que receba o salário mínimo,
de pouco mais de R$ 1.000, consiga arcar com as despesas necessárias para
manter as despesas da casa — água, luz, gás, aluguel.
“A agudização da luta de
classes nas principais capitais do país explicita o caráter de urgência de
movimentos como o MTST.”
Frequentemente,
restam duas opções: se endividar com empréstimos bancários ou não pagar as
contas. Em virtude do desemprego desenfreado no pós-pandemia, o MTST lançou a
campanha “Contrate Quem Luta”, uma ação realizada para facilitar a contratação
de membros do movimento nos mais diversos tipos de serviço. A campanha não só é
inspiradora no âmbito da luta popular, mas faz algo esquecido por parte da
esquerda há um tempo: o aproveitamento das ferramentas tecnológicas de massa.
Entrando em contato com um número disponibilizado pelo grupo, o receptor recebe
um catálogo com todas as profissões realizadas pelos militantes. Em entrevista à
imprensa, diversos trabalhadores engajados no movimento afirmaram só
conseguirem organizar suas contas após o projeto.
A
opressão contra os trabalhadores sem-teto não para nas medidas econômicas, mas
se estende a perseguições, ameaças, ataques físicos e desapiedada repressão
estatal. Em um trecho de seu livro, Boulos descreve um relato de violência
policial em uma ocupação em Osasco. A área havia sido ocupada um ano antes e
era cercada de prédios abandonados, sem qualquer função social.
“O
major responsável pela operação disse secamente que era um despejo. ‘Mas não
fomos notificados, major!’. ‘Não importa. Vocês têm dez minutos’. E assim foi.
Em dez minutos, a tropa avançou pelo terreno e começou a arrombar a porta dos
barracos. Pedi um tempo ao major para fazer uma reunião com os moradores e
explicar o que estava acontecendo. Ele deu o tempo. Mas, quando mal tínhamos
feito uma roda e começado a falar, jogaram uma bomba de gás lacrimogêneo em
cima das pessoas. Idosos, grávidas, crianças de colo… todos correram tentando
se proteger. Era apenas o começo de um dia de terror.”
Todas
as conquistas do MTST são parte de uma luta quase secular envolvendo ocupações,
manifestações, assembleias e reuniões de negociação com órgãos de Estado e
privados. Diante dos ataques sofridos às ocupações e militantes, o preconceito
joga a favor do grupo social minoritário que deseja maximizar seus lucros,
mesmo que isso signifique que a maioria das pessoas não tenha um teto para
morar. Fortalecer o MTST e os movimentos de lutas populares por moradia e
direito à cidade é uma responsabilidade de todo socialista. A agudização da
luta de classes nas principais capitais do país explicita o caráter de urgência
de movimentos como o MTST. Só a luta muda a vida. Sem o MTST, não há dúvidas, a
tarefa seria bem mais difícil.
Sobre
os autores
SOFIA SCHURIG
É editora-chefe da revista O Sabiá, assistente editorial na Jacobin Brasil e estagiária no site Núcleo Jornalismo.
MARCELO
BAMONTE
é jornalista, editor e tradutor.
https://jacobin.com.br/2022/10/os-socialistas-nao-vao-ocupar-minha-casa-e-invadir-meu-sitio/
SOFIA SCHURIG
É editora-chefe da revista O Sabiá, assistente editorial na Jacobin Brasil e estagiária no site Núcleo Jornalismo.
é jornalista, editor e tradutor.
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