As
mudanças efetivadas em benefício do povo pobre, da revolução e do pensamento
bolivariano, são mais profundas e estão enraizadas no povo, aquele mesmo que
desceu dos morros libertando Chávez em 2002.
O
militar socialista e ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez nasceu em 1954.
Para Zé Dirceu, o livro Construindo a Comuna, de George Ciccarello-Maher, traz
importante lições para impedir mais golpes na América Latina através das
comunas: uma forma de organização democrática radical de autodefesa preparada
para defender a soberania e o resultado das urnas.
Extraído
do livro Construindo a Comuna: democracia radical na Venezuela, de George
Ciccariello-Maher (Autonomia Literária, 2020).
Ainda
me recordo, em abril de 2002, quando ouvi no rádio do carro a notícia da
tentativa bem sucedida, conforme tudo indicava, do golpe de Estado contra Hugo
Chávez. Sem vacilar disse: “se eu fosse venezuelano, pegava em armas para
defender o governo e a revolução bolivariana”.
Fiquei
chocado com a posição de alguns líderes da esquerda, mas os compreendi. Chávez,
relembravam, dera um golpe militar com certo apoio popular, contra a traição de
Carlos Andrés Peres – o CAP que, eleito presidente com um programa e promessas,
submeteu-se ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e implantou um ajuste fiscal
antipopular.
Não
esquecia o Caracazo, quando o povo desceu dos morros e se revoltou em fevereiro
de 1989. Anos depois, Chávez sabia o que fazia e já tinha o seu Movimento
Revolucionário Bolivariano (MRB). Foi preso, fracassou na rebelião, mas plantou
as sementes da sua vitória eleitoral em 1998. Na esquerda ficou a desconfiança
que pesava contra Chávez, por ele ser militar e pela tentativa de golpe em
1992, sendo que nós mesmos, do Foro de São Paulo, tínhamos opiniões diferentes
sobre ele e o seu MRB.
Autodefesa popular
Sua
avassaladora vitória na Constituinte, a retomada da Petróleos de Venezuela,
S.A. (PDVSA), a reforma agrária, a fundação do Partido Socialista Unido da
Venezuela (PSUV), não deixavam dúvida. Chávez era um dos nossos, um líder
latino-americano, que fazia jus a Simon Bolívar.
O
livro Construindo a Comuna, de George Ciccarello-Maher, é oportunidade rara
para conhecermos uma experiência radical, democrática, política, cultural,
socioeconômica: as comunas, uma forma de organização de revolução democrática,
participativa, e com conteúdo radical, que dependendo da correlação de forças e
do meio social, pode constituir apenas um coletivo político, ser produtiva, de
autodefesa, armada. É política, cultural, é poder popular.
“Surgidas
entre 1980 e 1990 como forma de autodefesa contra gangues, estas são as
guerrilhas que foram contra a própria polícia repressora de pobres e negros.”
O
livro traz lições para nós brasileiros, que enfrentamos entre 2013-16 as mesmas
estratégias de desestabilização e sabotagem; os mesmos métodos, as formas de
organização, as táticas e instrumentos que levaram ao golpe institucional em
2016 e à prisão de Lula em 2018.
Lá
houve resistência. Primeiro, em 2002, quando, impedindo o golpe, as comunas e
coletivos tiveram papel decisivo para convocar e garantir que o povo apoiasse
Chávez. Aqui faltou esta resistência popular e organizada. Ali houve não só o
apoio de parte das forças armadas depois da renúncia forçada de Chávez, mas
também da maioria do povo, que lhe deu sucessivas vitórias eleitorais e ainda
elegeu Maduro em 2013.
Lá,
como aqui, a direita derrotada nas urnas apelou para a desestabilização e
sabotagem do país entre 2014-16, período que este livro cobre. Manifestações,
panelas, trincheiras em fogo, locaute econômico, todos apoiados pelas classes
médias e pelos EUA. É o caminho para lutar neste contexto que o livro descreve,
o apoio externo de ONGs e fundações, a criação de grupos políticos de direita
como o Vem Pra Rua e MBL brasileiros; lá a “operação liberdade” e a Juventud Activa
Venezuela Unida (JAVU), apoiadas pela agência governamental Agência dos Estados
Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), pelo International
Republican Institute (IRI), National Endowment for Democracy (NED), entre
outros. Eles financiaram e treinaram a oposição na Venezuela.
Outro
paralelo – para além dos panelaços e da violência nas ruas contra petistas,
nossas bandeiras, sedes e símbolos –, foi o uso das redes sociais e das fake
news, ocultando a responsabilidade da oposição pela violência e pela falta de
gêneros de primeira necessidade.
Foi
antes da vitória de 2015 que a oposição tentou uma insurreição fracassada, mas
acabou por desorganizar a economia, já fragilizada pela queda do preço do
petróleo e pelo boicote e posterior bloqueio norte-americano, em um país
totalmente dependente do petróleo e das importações. Com Chávez morto e a
crescente insatisfação popular, o resultado era previsível. Assim, após duas
vitórias em 2013, o PSUV perdeu a maioria na Assembleia Nacional em 2015.
Quando as favelas se
organizam
O
livro estuda, revela e conta a história das comunas, do poder popular, da
autodefesa, do povo organizado, das novas formas cooperativas ou coletivas de
produção e controle popular. Surgidas entre 1980 e 1990 como forma de autodefesa
contra gangues, estas são as guerrilhas que foram contra a própria polícia
repressora de pobres e negros. Durante o processo revolucionário elas
transformaram-se em poder popular, formas de produção e organização popular.
Para
nós, que já sofremos um processo semelhante, é decisivo compreender como e
porque a revolução bolivariana, apesar da gravidade da crise econômica,
paralisação parcial do sistema econômico, bloqueio quase total pelos EUA,
sobreviveu e se mantém. Será apenas pelo apoio militar ou deve-se às raízes do
chavismo?
As
mudanças efetivadas em benefício do povo pobre, da revolução e do pensamento
bolivariano, são mais profundas e estão enraizadas no povo, aquele mesmo que
desceu dos morros libertando Chávez em 2002, que apoiou a validação do processo
político e econômico na Venezuela. Um povo que resistiu a uma tentativa de
golpe e outra de insurreições nas ruas, que construiu as comunas, que foram
decisivas para mobilizar e organizar a resistência.
“A
Venezuela, sem o chavismo e seu povo, já teria tido o mesmo destino do Iraque e
da Líbia.”
Entre
2014 e 2018, foram as comunas e o povo chavista que enfrentaram a direita
armada nas ruas e nas barricadas, que lutaram contra a tentativa de dividir o
exército e dar um golpe militar, que votaram na Constituinte de Maduro. Sem
eles, Maduro e o exército não teriam resistido à direita, que conta com o apoio
dos EUA, da Europa e do Grupo de Lima, assim como do Brasil de Jair Messias
Bolsonaro. A Venezuela, sem o chavismo e seu povo, já teria tido o mesmo
destino do Iraque e da Líbia.
O
livro é leitura obrigatória para nós, brasileiros, que seguramente enfrentamos
um processo similar e fomos derrotados, em 2013-18. Bolsonaro, seu PSL, MBL,
VPR, seus milicianos, não deixarão o poder sem resistência. Isso, sem
considerar que as Forças Armadas, a milícia, o aparato policial-judicial estão
a serviço das elites rentistas e, assim como lá, igualmente contam com o apoio
dos EUA.
Aqui
estamos vivendo o desmonte não só dos avanços sociais da era Lula como do
próprio Estado Nacional. A luta na Venezuela e aqui representa também a defesa
da nossa soberania e da nossa independência, a defesa da democracia, sempre a
primeira vítima desses golpes, como estamos vivenciando com Jair Bolsonaro.
Sobre
os autores
JOSÉ DIRCEU
Foi líder estudantil e guerrilheiro urbano na ditadura. Na democracia foi advogado, deputado, ministro da Casa Civil e um dos principais arquitetos do Partido dos Trabalhadores. Lançou recentemente sua autobiografia pela editora Geração.
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