Previsto
na legislação brasileira desde 1990, o instituto da deleção premiada surgiu
como uma importante arma de investigação, mas isso mudou com o nascimento do
"lavajatismo". O Ministério Público abusou tanto da ferramenta que a
desvirtuou, tornando-a um mero meio de vingança.
Essa
avaliação é feita por duas autoridades no assunto, os advogados Antonio Augusto
Figueiredo Basto e Carlos Kauffmann, que lamentam a perda de credibilidade da
delação, resultado dos anos de abuso.
Considerado
um dos maiores especialistas em delação do país e pioneiro em negociações desse
tipo, Figueiredo Basto arquitetou alguns dos acordos essenciais para a
"lava jato", como o do doleiro Alberto Youssef — a seu ver, o mais
importante da operação — e o do dono da UTC Engenharia, Ricardo Pessoa.
Naquela
época, o advogado acreditava que muitas das críticas aos acordos de delação
eram exageradas. Hoje, ele considera que houve abusos graves da ferramenta por
parte dos lavajatistas.
"Penso
que o instituto foi rebaixado a um instrumento de vinganças e por isso caiu em
descrédito, ou seja, o problema não está na colaboração, mas nos agentes do
Estado. O descrédito é enorme! Hoje, a maioria dos colaboradores está
insatisfeita com os desdobramentos dos acordos e a total falta de compromisso
das autoridades em cumprir o estabelecido nas avenças".
O
advogado afirma que a Receita Federal, o TCU e outros órgãos de controle usam
as colaborações sem qualquer restrição e sem adesão, gerando enorme confusão e
prejuízo. Por esses motivos, ele tem reservas quanto ao futuro do instituto.
Sem espontaneidade
Alçado
a protagonista do debate público brasileiro no turbulento período lavajatista,
o acordo de delação já era previsto desde a Lei dos Crimes Hediondos, e
posteriormente foi inserido em situações específicas, tais como crimes contra a
ordem tributária, contra o sistema financeiro e extorsão mediante sequestro,
entre outros.
"Apenas
a partir de 2014, porém, a delação premiada tomou corpo em nosso sistema pela
larga e desmedida utilização ao longo da 'lava jato'. Naquela oportunidade, e
diante da ausência de regulamentação do procedimento a ser adotado para sua
efetivação, o Ministério Público criou sistemática que passou a ser utilizada
como regra absoluta para a efetivação dos acordos. A natureza e origem do
instituto, que eufemisticamente foi rebatizado de colaboração, porém, foram
subvertidos", aponta Carlos Kauffmann, ex-presidente do Tribunal de Ética
e Disciplina da OAB de São Paulo, advogado criminal e professor de Direito
Processual Penal da PUC-SP. Ele defende que em muitos dos acordos fechados pelo
consórcio de Curitiba a espontaneidade, indispensável à validade das
declarações e provas obtidas, jamais esteve presente.
"Mais
do que meio de prova, a delação se transformou em exclusivo meio de defesa e de
obtenção imediata de alvará de soltura. Várias foram as imputações
inconsistentes, com interpretação fática destinada a satisfazer os anseios dos
acusadores".
O
advogado considera que o instituto continua sendo importante, mas deve ser
utilizado em estrita observância às normas que passaram a vigorar em 2019,
respeitando-se, acima de tudo, a espontaneidade das declarações e as provas que
subsidiam os fatos.
Lei 13.964/2019
Após
anos de abusos pelos operadores da "lava jato", a Lei 13.964/2019
dedicou extensa seção à delação, logo de início definida como "negócio
jurídico processual".
Conforme
o novo regramento, ao informante que levar ao Estado informações sobre a
prática de crimes contra a Administração Pública "serão asseguradas
proteção integral contra retaliações e isenção de responsabilização civil ou
penal em relação ao relato, exceto se o informante tiver apresentado, de modo
consciente, informações ou provas falsas".
Repete-se
o mecanismo criado nos Estados Unidos, que, aos chamados whistleblowers
(colaboradores voluntários), garante proteção contra vingança ou retaliação de
delatados — que podem ser apenados em até dez anos de prisão pelo crime.
Além
disso, é garantido ao delatado o direito de falar por último em todas as fases
processuais, seguindo a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal.
O
direito do delatado a se manifestar por último foi uma das primeiras grandes
derrotas da "lava jato". Na ocasião, o STF decidiu pelo entendimento
de que réus que não são delatores devem apresentar por último suas
considerações finais nos processos, benefício que não vinha sendo concedido aos
alvos da força-tarefa. A tese vencedora foi apresentada pelo criminalista e
professor Alberto Toron, enquanto atuava na defesa do ex-presidente da
Petrobras Aldemir Bendine.
Toron
sustentou que as alegações são a última grande manifestação das partes e que o
réu delator equivale a um acusador dentro do processo, e, sem saber com
antecedência quais são os argumentos apresentados por eles, o direito à ampla
defesa fica prejudicado.
Com
esse argumento, Toron conseguiu a anulação da condenação do ex-executivo da
Petrobras, imposta em primeira instância pelo então juiz Sergio Moro.
Compliance e arbitragem
Se
os abusos em relação aos acordos de delação muitas vezes monopolizam a atenção
dos críticos, os excessos cometidos em compliance e arbitragem não são menos
problemáticos, como especialistas já apontaram na ConJur.
Figueiredo
Basto acredita, por exemplo, que o compliance é uma ferramenta indispensável
para as empresas, mas acabou se tornando um instrumento abusivo. "Basta o
clique no Google para que se estabeleça um critério absoluto sobre determinada
pessoa ou empresa, sem que se garanta o contraditório, muito menos a ampla
defesa. De outro lado, tornou-se uma pena perpétua, incompatível com nosso
sistema: basta que alguém tenha apontamentos negativos para que seja
habitualmente reprovado, na abertura de uma conta, obtenção de um empréstimo ou
de emprego, sem considerar a reabilitação".
O
advogado afirma que o compliance, nos moldes como vem sendo praticado, gera
danos colaterais irreversíveis para empresas e pessoas, embora ele acredite que
o instituto deve passar por uma fase de amadurecimento e evoluir nos próximos
anos.
O
mesmo processo de maturação deve acontecer com a arbitragem, na sua avaliação.
"O instrumento como meio de solução de conflitos tende a se aperfeiçoar e
evoluir, não vejo como retroceder, apesar de alguns percalços, as empresas
tendem a procurar uma solução rápida para a composição de seus interesses, o
que sabidamente não ocorre no Judiciário, vejo o instituto prosperando e
evoluindo, no futuro deve ocupar uma grande parcela da solução dos
conflitos".
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2022-jul-20/prevista-1990-delacao-virou-meio-vinganca-lava-jato
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