A
prática da busca pessoal, conhecida no Brasil como baculejo ou enquadro,
depende da existência de fundadas razões que possam ser concretamente aferidas
e justificadas a partir de indícios. Denúncia anônima, intuição policial ou
mesmo abordagens "de rotina" não são suficientes para autorizar a
medida.
Busca
pessoal precisa ser devidamente motivada e comprovada para ter validade
Marcelo Camargo/Arquivo Agência Brasil
Com
esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao
recurso em Habeas Corpus ajuizado para trancar a ação penal contra um homem que
foi abordado pela polícia em Vitória da Conquista (BA) com a justificativa de
que estava "em atitude suspeita".
No
caso, o homem pilotava sua moto com uma mochila às costas. Abordado por uma
guarnição da Polícia Militar, foi flagrado com 50 porções de maconha e 72 de
cocaína, além de uma balança digital. Foi preso e processado por tráfico de
drogas.
Ao
STJ, a defesa, feita pelo advogado Florisvaldo de Jesus Silva, do escritório
AAC Advogados Associados, argumentou que a justificativa dada pelos policiais
para a abordagem foi genérica e insuficiente, o que feriu os artigos 240,
parágrafo 2º, e 244 do Código de Processo Penal.
As
normas disciplinam as razões que justificam a busca pessoal contra cidadãos sem
autorização judicial. É preciso "fundada suspeita de que a pessoa esteja
na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de
delito".
Relator
no STJ, o ministro Rogerio Schietti propôs uma interpretação segundo a qual
esses dois fatores — fundada suspeita e posse de determinados objetos — devem
aparecer juntos para justificar uma atitude tão invasiva como a de parar e
revistar alguém em via pública.
Essa
é a maneira de evitar que a busca pessoal se converta em salvo-conduto para que
PMs façam abordagens exploratórias e aleatórias, na prática conhecida como
pesca probatória (fishing expedition).
"O
artigo 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como 'rotina' ou
'praxe' do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação
exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação
correlata", afirmou o relator no voto.
Por
unanimidade de votos, a 6ª Turma entendeu que essa motivação idônea não existiu
no caso do réu, que apenas trafegava de moto até ser parado pela polícia.
Prática
do baculejo — ou enquadro — não pode ser de rotina, nem de praxe
Standard probatório
A
ideia da 6ª Turma é, mais uma vez, impor às autoridades policiais um padrão de
conduta que esvazie a prática de pequenas violações de direitos fundamentais
que, por um motivo ou outro, acabaram sendo toleradas pelo Poder Judiciário nas
últimas décadas.
Para
o ministro Schietti, a fundada suspeita que autoriza a busca pessoal deve ser
baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível,
aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e pelas
circunstâncias do caso concreto.
Assim,
não é suficiente a existência de denúncia anônima ou intuição policial —
impressões que sejam subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira
clara e concreta.
"Ante
a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a
classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou
de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard
probatório de 'fundada suspeita' exigido pelo artigo 244 do CPP", afirmou
o ministro.
Além
disso, a descoberta de objetos ilícitos durante a abordagem também não basta
para validar a fundada suspeita anterior.
"Se
não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida ou
de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que
a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do
indivíduo, justifique a medida".
A
violação dessas regras deve resultar na ilicitude das provas, inclusive sem
prejuízo de eventual responsabilização penal dos policiais que tenham realizado
a diligência.
Ministro
Schietti citou que alvo das buscas pessoais imotivadas é, invariavelmente, a
população periférica e marginalizada
Lucas Pricken/STJ
Praxe policial
O
precedente é incisivo, como tem sido a praxe na 6ª Turma, mas não inédito. Há
julgado recente em que o colegiado absolveu homem revistado por policiais
militares porque demonstrou nervosismo excessivo ou porque guardas municipais
viram três pessoas suspeitas dentro de um carro.
O
voto do ministro Schietti ataca ainda o uso do baculejo ou enquadro como praxe
das polícias, uma conduta que se volta contra as populações vulneráveis.
"Geralmente são pessoas da periferia, mal vestidas, em locais de risco ou
até onde há certa criminalidade, mas que nem por isso perdem a titularidade de
direitos protegidos pela Constituição".
O
componente racial do trabalho policial também não é tema estranho às análises
da 6ª Turma. Segundo o relator, exigir um melhor stardard probatório das
polícias tem como um dos efeitos justamente evitar práticas que reproduzem
preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento
racial.
Além
disso, garante a sindicabilidade da abordagem e seu controle posterior e evita
a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à
privacidade e à liberdade.
"Vamos
ter de aprofundar essa reflexão", destacou o ministro Antonio Saldanha
Palheiro, ao acompanhar o voto do relator. "Não podemos inibir totalmente
a vistoria pessoal de uma pessoa que esteja suspeita. Mas o que é uma pessoa
suspeita? Tem razão o relator ao dizer que normalmente é o estereótipo que
conhecemos. Vamos ter de aprofundar, até para que quem executa as operações
policiais possa ter um balizamento".
"Não
podemos inibir totalmente a vistoria pessoal de uma pessoa que esteja
suspeita", afirmou o ministro Saldanha Palheiro
Rafael Luz/STJ
No
voto, o ministro Schietti traz dados de pesquisas sobre abordagem policial,
audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal e usa o Direito
Comparado para trazer a situação vivenciada em por outros países sobre o mesmo
tema.
"O
que se percebe, portanto, é que, a pretexto de transmitir uma sensação de
segurança à população, as agências policiais — em verdadeiros 'tribunais de
rua' — cotidianamente constrangem os famigerados 'elementos suspeitos' com base
em preconceitos estruturais, restringem indevidamente seus direitos
fundamentais, deixam-lhe graves marcas e, com isso, ainda prejudicam a imagem
da instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela",
afirmou o magistrado.
Mudança de conduta
O
ministro Schietti defende nesse julgamento e em outros que ao Poder Judiciário
está reservado um papel decisivo na mudança de cultura das agências estatais
que compõem o sistema de Justiça Criminal.
O
acórdão sobre os requisitos para busca pessoal segue a linha do que a 6ª Turma
decidiu ao fixar que o policial que invadir uma residência sem mandado judicial
deverá filmar a autorização do morador. O tema da invasão de domicílio sem
autorização judicial tem gerado inúmeros Habeas Corpus, como tem mostrado a
ConJur.
Da
mesma forma, a 6ª Turma vetou condenações baseadas exclusivamente em
reconhecimento por foto e chegou a proibir a fixação de regime fechado aos
pequenos traficantes — decisão que foi derrubada por ordem do ministro
Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
https://www.conjur.com.br/2022-abr-19/busca-pessoal-rotina-mera-suspeita-ilegal-stj
Marcelo Camargo/Arquivo Agência Brasil
Lucas Pricken/STJ
Rafael Luz/STJ
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