A
deflagração da pandemia Covid-19 no Brasil — formalmente reconhecida pelo
Ministério da Saúde como Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional
(Espin) pela Portaria nº 188/GM/MS, em 3 de fevereiro de 2020 — inaugurou um
"Direito Administrativo pandêmico", compreendido como conjunto de
regras e princípios de aplicação especial, emergencial e transitória a todos os
fatos, atos, contratos e relações envolvendo o público e o privado — em todas
esferas federativas — decorrentes direta e indiretamente da pandemia em si.
Espera-se
que as nuances desse novo Direito Administrativo pandêmico emergencial possam
levar a um aprimoramento normativo, principiológico e dogmático, inclusive em
virtude da incidência de critérios voltados ao pragmatismo, ao consequencialismo
e à efetividade no Direito Público, na linha traçada pela Lei federal nº
13.665/18, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(LINDB) [1].
A
partir do referido contexto, no universo jurídico deu-se início a uma série de
reflexões, prospecções e polêmicas as quais, concomitantes à catástrofe
humanitária desencadeada em fases, passaram a ser enfrentadas pelo Direito.
O
perscrutamento que nos interessa neste artigo de modo mais focado tende a ser
enormemente maximizado no cenário pós-pandemia, quando o caos sanitário —
esperamos — estiver razoavelmente controlado, embora já seja possível
vislumbrar indícios suficientes de uma dramática realidade que começa a se
impor: a responsabilidade civil do Estado em decorrência das deficiências ou
excessos de enfrentamento ao coronavírus, o que poderá desencadear uma série de
condenações da União Federal, estados e municípios no pagamento de indenizações
das vítimas e familiares de vítimas da pandemia [2].
É
possível observar, nos últimos meses, uma profusão de relatos e notícias que
retrata esse novo cenário, e não estamos nos referindo aqui exclusivamente às
quase 600 mil mortes ocasionadas em virtude da pandemia, muitas das quais, ao
que tudo indica, poderiam ter sido evitadas, mas igualmente a pessoas que
sobreviveram à Covid-19 e ficaram incapacitadas (síndrome do pós-Covid-19 ou
Covid-19 longo).
Incluídas
essas mortes e incapacitações de milhares de pessoas, o que haveria em comum
entre elas e, por exemplo, associações de variados segmentos do comércio —
cujas atividades econômicas foram drasticamente prejudicadas — e familiares de
servidores públicos que adoeceram em serviço [3] [4]? Por certo, o que parece
uni-los é justamente o fato administrativo referente à adequação, ou não, do enfrentamento
público da pandemia — por exemplo demora excessiva e injustificada na oferta
das vacinas — que redundou em graves e lamentáveis danos — de ordem
patrimonial, moral e coletiva — estando tais danos (ou não) ligados por nexo de
causalidade a ações ou omissões imputadas ao Estado.
Sem
dúvidas, os impactos pandêmicos são múltiplos e afetam os indivíduos e a
coletividade de modos distintos. Ademais, parece-nos imperioso endereçar que
possivelmente grande parte das consequências negativas, no grau e larga
extensão danosa testemunhadas por todos, apenas teria se materializado em
virtude de condutas comissivas ou omissivas por parte do poder público — em
todas as esferas federativas, frise-se. De fato, a conduta danosa do ente
estatal pode advir de variadas frentes: desde a ausência ou ineficácia do dever
de fiscalizar e coibir aglomerações (omissão), até a atuação orquestrada para
vinculação da aquisição de vacinas ao percebimento de vantagem indevida (ação
disfuncional) — temas que estão no radar das investigações já avançadas da CPI
da Covid-19, em trâmite conclusivo no Senado Federal.
Independentemente
da comprovação de dolo ou culpa, na linha do que prevê a teoria da
responsabilidade civil objetiva, calcada na teoria do risco administrativo [5],
o Estado brasileiro encontra-se às vésperas de assistir a um oceano de pedidos
de indenização fundados na ação ou na omissão específica durante a pandemia.
Isso porque, acima de tudo, esperava-se do Estado, por sua função primordial de
zelar pelo bem comum, políticas públicas preventivas e de enfrentamento efetivo
contra o avanço do coronavírus. Tal é o fundamento que pode ser extraído
diretamente da Constituição Federal [6], em seu artigo 37, §6º, e do artigo 43
do Código Civil [7].
Como
se sabe, estamos inseridos em um paradigma de sociedade de risco, caracterizada
por uma maximização de riscos que demandam posturas mais veementes e proativas
por parte do poder público; dessa forma, a responsabilidade do Estado passa por
um processo expansivo que, ao fim e ao cabo, deve conferir efetividade ao
direito fundamental à boa administração [8].
De
antemão, é sabido que nem todas as pretensões dessa natureza tendem a prosperar
no universo da responsabilidade extracontratual do Estado. Pedidos de
indenização que se fundamentarem em prejuízos decorrentes de políticas públicas
de quarentena e de distanciamento social, por exemplo, são dos mais
problemáticos. Consideramos que uma diretriz geral para esses casos será o
reconhecimento de que, mesmo diante da legalidade da atuação estatal comprovada
e previamente alinhada à observância de parâmetros técnico-científicos nas
normas que impuseram paralisação de atividades [9], ainda assim poderão ocorrer
danos anormais e especiais a alguns segmentos econômicos, os quais, em tese,
comportarão o dever estatal de indenizá-los em face de específicas situações. É
possível, igualmente, que a pressão judicial sirva para eventualmente
viabilizar outras pretensões de setores do mercado, a exemplo da ausência ou
insuficiência dos benefícios fiscais concedidos (ou não) no transcurso da
pandemia, como uma compensação possível às proibições obrigatórias de
funcionamento dos estabelecimentos comerciais.
Ainda
assim, será essencial a observância de cada caso concreto, individualmente, em
função das particularidades e diferenças de cada norma restritiva editada por
diversos Estados-membros e municípios da federação.
Contudo,
tal cautela não pode levar à inobservância de variáveis consideráveis como as
sobreditas características individuais de cada norma, além do cenário político
marcado por altíssima polarização que poderá influenciar, inclusive, o
entendimento particular que o magistrado terá frente ao caso concreto. À vista
disso, as orientações dos tribunais superiores haverão de ser essenciais à
prevenção de insegurança jurídica que possa se instalar no universo jurídico
pós-pandêmico. Nesse pormenor, as recentes alterações promovidas na LINDB
certamente trazem parâmetros decisórios e consequencialistas de Direito
Público, conforme já exposto, que melhor habilitam o magistrado a decidir no
caso concreto.
Por
outro lado, a pretensão indenizatória pautada no atraso deliberado na aquisição
e distribuição de vacinas, esta, sim, poderá encontrar terreno mais fértil,
especialmente agravada pela eventualmente comprovada relação escusa entre
agentes públicos e empresas privadas em esquemas de corrupção envolvendo o
impulsionamento de fármacos e tratamentos sem eficácia garantida, em detrimento
de imunizantes que já haviam sido adquiridos e aplicados ao redor do mundo
[10].
Entendimento
semelhante poderá advir das demandas que buscarem reparação por danos causados
em virtude da negligência estatal decorrente de condições insalubres de
trabalho e má distribuição de equipamentos de proteção individual (EPI), como
máscaras adequadas e álcool em gel, aos agentes públicos.
Importa
ressaltar que o Brasil não é o único lugar do mundo onde essa nova tendência
pode ser observada: é o caso também, por exemplo, da Itália, onde foram movidas
diversas ações judiciais coletivas referentes à má gestão da pandemia, que
resultou em mortes precoces e caos sanitário. O fundamento utilizado é o de que
governos regionais, como o da Lombardia, foram negligentes na gestão da
pandemia e retardaram ao máximo a implementação da quarentena e confinamento na
região [11].
Mas
nós vamos além em nossos questionamentos: será possível buscar a
responsabilização do Estado brasileiro pelo planejamento deficitário ou
omissivo no enfrentamento à Covid-19? Isto é: a responsabilidade pode ser
reconhecida com base na ideia de que o poder público deveria prospectar
cenários, em atenção ao avanço do coronavírus no exterior e às recomendações de
especialistas, e, assim, melhor se preparar e prevenir que situações
semelhantes e inevitáveis ocorressem em solo brasileiro [12]?
Outros
questionamentos podem interessar justamente à parte adversa: em que medida os
efeitos da pandemia podem constituir hipótese de força maior? É razoável alegar
culpa exclusiva de vítima que se contaminou por estar presente em aglomeração
que não foi coibida pelo Estado? Ainda: como atribuir a compensação de culpas e
como arbitrar o grau de responsabilidade que deve ser imputado ao poder público
e ao lesado que contribuiu para o dano?
Inúmeras
são as reflexões decorrentes da problemática enfrentada no presente artigo, sem
que seja possível, ainda, predefinir standards e parâmetros decisórios
aplicáveis à casuística. No entanto, de antemão, podemos concluir que um dos
temas mais incandescentes do Brasil pós-pandemia seguramente será a
responsabilidade civil do Estado ou Direito de Danos relativo às ações e
omissões estatais perpetradas pelos entes públicos no transcurso do
enfrentamento da pandemia da Covid-19.
[1]
Nesse sentido, cf. OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Direito
Administrativo Pandêmico: transformações e influências jurídico-normativas em
tempos de Covid-19, a ser publicado no próximo Boletim Direitos na pandemia n.
15 do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – CEPEDISA,
futuramente disponibilizado em https://cepedisa.org.br/.
[2]
A temática foi enfrentada em RÊGO MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do et al.
(Coords.), Coronavírus e responsabilidade civil: impactos contratuais e
extracontratuais. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.
[3]
O GLOBO. Perda na pandemia: bares entram na Justiça em busca de indenização e
atraem outros setores. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/economia/perda-na-pandemia-bares-entram-na-justica-em-busca-de-indenizacao-atraem-outros-setores-25058329?utm_source=aplicativoOGlobo.
Acesso em: 24 ago. 2021.
[4]
O GLOBO. Família de PM vítima da Covid-19 quer indenização do Estado do Rio
após infecção durante o serviço. Disponível em:
https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/familia-de-pm-vitima-da-Covid-19-quer-indenizacao-do-estado-do-rio-apos-infeccao-durante-o-servico.html?utm_source=aplicativoOGlobo&utm_medium=aplicativo&utm_campaign=compartilhar.
Acesso em: 24 ago. 2021.
[5]
Nesse sentido: "Não há dúvida de que a responsabilidade objetiva resultou
de acentuado processo evolutivo, passando a conferir maior benefício ao lesado,
por estar dispensado de provar alguns elementos que dificultam o surgimento do
direito à reparação dos prejuízos, como, por exemplo, a identificação do
agente, a culpa deste na conduta administrativa, a falta do serviço etc. [...]
Diante disso, passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria
que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior
quantidade de poderes haveria de corresponder um risco maior". In:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. São
Paulo: Atlas, 2018.
[6]
In verbis: "Artigo 37, §6º - As pessoas jurídicas de direito público e as
de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que
seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".
[7]
In verbis: "Artigo 43 - As pessoas jurídicas de direito público interno
são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade
causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do
dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo".
[8]
OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Responsabilidade civil do Estado:
reflexões a partir do direito fundamental à boa administração pública. Revista
dos Tribunais, São Paulo, v.97, n.876, p. 44-51, out. 2008.
[9]
Nesse sentido: "Como a finalidade da atuação dos entes federativos é
comum, a solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se
pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e
nas recomendações da Organização Mundial da Saúde". SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL. ADI 6.341/DF. Rel. Min. Marco Aurélio.
[10]
UOL. Vitamedic gastou R$ 717 mil para divulgar kit Covid, diz executivo a CPI.
Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/08/11/medicos-pro-governo-foram-patrocinados-por-empresa-que-lucrou-com-kit-Covid.htm.
Acesso em: 26 ago. 2021.
[11]
NEXO. A onda de processos movidos por vítimas da pandemia na Itália. Disponível
em:
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/06/13/A-onda-de-processos-movidos-por-v%C3%ADtimas-da-pandemia-na-It%C3%A1lia.
Acesso em: 29 ago. 2021.
[12]
Nesse sentido: "Se compararmos as curvas da Covid-19 na Europa e no
Brasil, é possível reparar que estamos alguns meses atrasados nos eventos [...]
De acordo com os especialistas [...], o Brasil apresenta falhas nesse momento
de preparação para conter uma eventual segunda onda da Covid-19". In: BBC
BRASIL. Covid-19: as lições que Brasil pode aprender com segunda onda de casos
na Europa. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54714682.
Acesso em: 29 ago. 2021.
Gustavo Henrique Justino de Oliveira
é professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da USP e no IDP
(Brasília-DF), árbitro, consultor, advogado especialista em Direito Público e
fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.
Matheus Teixeira Moreira é
advogado e coordenador
jurídico no escritório Justino de Oliveira Advogados.
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2021-set-05/publico-pragmatico-covid-19-irresponsabilidade-civil-estado-brasil
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