O
que começou como a "maior operação contra a corrupção do mundo" e
degenerou no "maior escândalo judicial do planeta" na verdade não
passou de uma estratégia bem-sucedida dos Estados Unidos para minar a autonomia
geopolítica brasileira e acabar com a ameaça representada pelo crescimento de
empresas que colocariam em risco seus próprios interesses.
A
história foi resgatada em uma reportagem do jornal francês Le Monde deste
sábado (10/4), assinada por Nicolas Bourcier e Gaspard Estrada,
diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe
(Opalc) da universidade Sciences Po de Paris.
Tudo
começou em 2007, durante o governo de George W. Bush. As autoridades
norte-americanas estavam incomodadas pela falta de cooperação dos diplomatas
brasileiros com seu programa de combate ao terrorismo. O Itamaraty, na época,
não estava disposto a embarcar na histeria dos EUA com o assunto.
Para
contornar o desinteresse oficial, a embaixada dos EUA no Brasil passou a
investir na tentativa de criar um grupo de experts locais, simpáticos aos seus
interesses e dispostos a aprender seus métodos, "sem parecer peões"
num jogo, segundo constava em um telegrama do embaixador Clifford Sobel a que o
Le Monde teve acesso.
Sergio
Moro aprendeu os métodos norte-americanos de defender os interesses
norte-americanos fora dos EUA
Assim,
naquele ano, Sergio Moro foi convidado a participar de um encontro, financiado
pelo departamento de estado dos EUA, seu órgão de relações exteriores. O
convite foi aceito. Na ocasião, fez contato com diversos representantes do FBI,
do Departament of Justice (DOJ) e do próprio Departamento de Estado dos EUA
(equivalente ao Itamaraty).
Para
aproveitar a dianteira obtida, os EUA foram além e criaram um posto de
"conselheiro jurídico" na embaixada brasileira, que ficou a cargo de
Karine Moreno-Taxman, especialista em combate à lavagem de dinheiro e ao
terrorismo.
Por
meio do "projeto Pontes", os EUA garantiram a disseminação de seus
métodos, que consistem na criação de grupos de trabalho anticorrupção,
aplicação de sua doutrina jurídica (principalmente o sistema de recompensa para
as delações), e o compartilhamento "informal" de informações sobre os
processos, ou seja, fora dos canais oficiais. Qualquer semelhança com a
"lava jato" não é mera coincidência.
Em
2009, dois anos depois, Moreno-Taxman foi convidada a falar na conferência
anual dos agentes da Polícia Federal brasileira, em Fortaleza. Diante de mais
de 500 profissionais, a norte-americana ensinou os brasileiros a fazer o que os
EUA queriam: "Em casos de corrupção, é preciso ir atrás do 'rei' de
maneira sistemática e constante, para derrubá-lo."
"Para
que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção, é preciso que o povo
odeie essa pessoa", afirmou depois, sendo mais explícita. "A
sociedade deve sentir que ele realmente abusou de seu cargo e exigir sua
condenação", completou, para não deixar dúvidas.
O
nome do então presidente Lula não foi citado nenhuma vez, mas, segundo os
autores da reportagem, estava na cabeça de todos os presentes: na época, o
escândalo do "Mensalão" ocupava os noticiários do país.
Semente
plantada
O
PT não viu o monstro que estava sendo criado, prosseguem os autores. As
autoridades estrangeiras, com destaque para um grupo anticorrupção da OCDE,
amplamente influenciado pelos EUA, começaram a pressionar o país por leis mais
duras de combate à corrupção.
Nesse
contexto, Moro foi nomeado, em 2012, para integrar o gabinete de Rosa Weber,
recém indicada para o Supremo Tribunal Federal. Oriunda da Justiça do Trabalho,
a ministra precisava de auxiliares com expertise criminal para auxiliá-la no
julgamento. Moro, então, foi um dos responsáveis pelo polêmico voto defendendo
"flexibilizar" a necessidade de provas em casos de corrupção.
"Nos
delitos de poder, quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a
facilidade de esconder o ilícito. Esquemas velados, distribuição de documentos,
aliciamento de testemunhas. Disso decorre a maior elasticidade na admissão da
prova de acusação", afirmou a ministra em seu voto.
O
precedente foi levado ao pé da letra pelo juiz e pelos procuradores da
"lava jato" anos depois, para acusar e condenar o ex-presidente Lula
no caso do tríplex.
Em
2013, a pressão internacional fez efeito, e o Congresso brasileiro começou a
votar a lei anticorrupção. Para não fazer feio diante da comunidade
internacional, os parlamentares acabaram incorporando mecanismos previstos no
Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), uma lei que permite que os EUA
investiguem e punam fatos ocorridos em outros países. Para especialistas, ela é
instrumento de exercício de poder econômico e político dos norte-americanos no
mundo.
Em
novembro daquele mesmo ano, o procurador geral adjunto do DOJ norte-americano,
James Cole, anunciou que o chefe da unidade do FCPA viria imediatamente para o
Brasil, com o intuito de "instruir procuradores brasileiros" sobre as
aplicações do FCPA.
Sem
apoio parlamentar e castigada pela opinião pública, Dilma Rousseff deu aval a
medidas que acabariam com os planos do PT
A
nova norma preocupou juristas já na época. O Le Monde cita uma nota de Jones
Day prevendo que a lei anticorrupção traria efeitos deletérios para a Justiça
brasileira. Ele destacou o caráter "imprevisível e contraditório" da
lei e a ausência de procedimentos de controle. Segundo o documento,
"qualquer membro do Ministério Público pode abrir uma investigação em
função de suas próprias convicções, com reduzidas possibilidades de ser
impedido por uma autoridade superior".
Dilma
Rousseff, já presidente à época, preferiu não dar razões para mais críticas ao
seu governo, que só aumentavam, e sancionou a lei, apesar dos alertas.
Em
29 de janeiro de 2014, a lei entrou em vigor. Em 17 de março, o
procurador-geral da República da época, Rodrigo Janot, chancelou a criação da
"força-tarefa" da "lava jato". Desde seu surgimento, o
grupo atraiu a atenção da imprensa, narra o jornal. "A orquestração das
prisões e o ritmo da atuação do Ministério Público e de Moro transformaram a
operação em uma verdadeira novela político-judicial sem precedentes",
afirmam Bourcier e Estrada.
Lição
aprendida
No
mesmo momento, a administração de Barack Obama nos EUA dava mostras de seu
trabalho para ampliar a aplicação do FCPA e aumentar a jurisdição dos EUA no
mundo. Leslie Caldwell, procuradora-adjunta do DOJ, afirmou em uma palestra em
novembro de 2014: "A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço
que nós prestamos à comunidade internacional, mas sim uma medida de
fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses em questões de
segurança nacional e o das nossas empresas, para que sejam competitivas
globalmente."
O
que mais preocupava os EUA era a autonomia da política externa brasileira e a
ascensão do país como uma potência econômica e geopolítica regional na América
do Sul e na África, para onde as empreiteiras brasileiras Odebrecht, Camargo
Corrêa e OAS começavam a expandir seus negócios (impulsionadas pelo plano de
criação dos "campeões nacionais" patrocinado pelo BNDES, banco
estatal de fomento empresarial).
"Se
acrescentarmos a isso as relações entre Obama e Lula, que se deterioravam, e um
aparelho do PT que desconfiava do vizinho norte-americano, podemos dizer que
tivemos muito trabalho para endireitar os rumos", afirmou ao Le Monde um
ex-membro do DOJ encarregado da relação com os latino-americanos.
A
tarefa ficou ainda mais difícil depois que Edward Snowden mostrou que a NSA
(agência de segurança dos EUA) espionava a presidente Dilma Rousseff e a
Petrobras, o que esfriou ainda mais a relação entre Brasília e Washington.
Vários
dispositivos de influência foram então ativados. Em 2015, os procuradores
brasileiros, para dar mostras de boa vontade para com os norte-americanos,
organizaram uma reunião secreta para colocá-los a par das investigações da
"lava jato" no país.
Eles
entregaram tudo o que os americanos precisavam para detonar os planos de
autonomia geopolítica brasileiros, cobrando um preço vergonhoso: que parte do
dinheiro recuperado pela aplicação do FCPA voltasse para o Brasil, especificamente
para um fundo gerido pela própria "lava jato". Os americanos,
obviamente, aceitaram a proposta.
A
crise perfeita
Vendo
seu apoio parlamentar derreter, em 2015 Dilma decidiu chamar Lula para compor
seu governo, uma manobra derradeira para tentar salvar sua coalizão de governo,
conforme classificou o jornal. Foi quando o escândalo explodiu: Moro autorizou
a divulgação ilegal da interceptação ilegal de um telefonema entre Lula e
Dilma, informando a Globo, no que veio a cimentar o clima político para a
posterior deposição da presidente em um processo de impeachment. Moro, depois,
pediu escusas pela série de ilegalidades, e o caso ficou por isso mesmo.
Os
EUA estavam de olho nas turbulências. Leslie Backshies, chefe da unidade
internacional do FBI e encarregada, a partir de 2014, de ajudar a "lava
jato" no país, afirmou que "os agentes devem estar cientes de todas
as ramificações políticas potenciais desses casos, de como casos de corrupção
internacional podem ter efeitos importantes e influenciar as eleições e cenário
econômico". "Além de conversas regulares de negócios, os supervisores
do FBI se reúnem trimestralmente com os advogados do DoJ para revisar possíveis
processos judiciais e as possíveis consequências."
Assim,
foi com conhecimento de causa que as autoridades norte-americanas celebraram
acordo de "colaboração" com a Odebrecht, em 2016. O documento previa
o reconhecimento de atos de corrupção não apenas no Brasil, mas em outros
países nos quais a empresa tivesse negócios. Como a empreiteira relutava, os
magistrados ordenaram ao Citibank, que administrava o dinheiro da empresa nos
EUA, que desse um prazo de 30 dias para encerrar as contas da Odebrecht. Em
caso de recusa do acordo, os valores depositados nessas contas seriam colocados
em liquidação judicial, situação que excluiria o conglomerado do sistema
financeiro internacional, levando, inevitavelmente, à falência. A Odebrecht
aceitou a "colaboração".
A
"lava jato" estava confiante de sua vantagem, apesar de ter ascendido
sem a menor consideração pelas normas do Direito. "Quando Lula foi
condenado por 'corrupção passiva e lavagem de dinheiro', em 12 de julho de 2017,
poucos relatos jornalísticos explicaram que a condeação teve base em 'fatos
indeterminados'", destacou o jornal.
Depois
de condenar Lula e tirá-lo de jogo nas eleições de 2018, Sergio Moro colheu os
louros de seu trabalho ao aceitar ser ministro da Justiça do novo presidente
Jair Bolsonaro. Enquanto isso, os norte-americanos puderam se gabar de pôr fim
aos esquemas de corrupção da Petrobras e da Odebrecht, junto com a capacidade
de influência e projeção político-econômica brasileiras na América Latina e na
África. Os procuradores da "lava jato" ficaram com o prêmio de
administrar parte da multa imposta pelos EUA à Petrobras e à Odebrecht, na
forma de fundações de Direito privado dirigida por eles próprios em parceria
com a Transparência Internacional.
Conversão
lucrativa
A
recompensa que Sergio Moro escolheu para si também foi o início do fim de seu
processo de canonização. Depois da eleição de Bolsonaro, veio à tona o
escândalo da criação do fundo da Petrobras. O ministro Alexandre de Moraes
frustrou os planos dos procuradores ao determinar a dissolução do fundo e
direcionar o dinheiro para outras finalidades.
Em
maio de 2019, o The Intercept Brasil começou a divulgar conversas de Telegram
entre procuradores e Moro, hackeadas por Walter Delgatti e apreendidas pela
Polícia Federal sob o comando do próprio Moro, enquanto ministro da Justiça.
Elas mostram, entre outros escândalos, como Moro orientou os procuradores, e
como estes últimos informaram os EUA e a Suíça sobre as investigações e
combinaram a divisão do dinheiro.
Depois
de pedir demissão do Ministério, Moro seguiu o mesmo caminho lucrativo de
outros ex-agentes do DOJ e passou a trabalhar para o setor privado, valendo-se
de seu conhecimento privilegiado sobre o sistema judiciário brasileiro em casos
célebres para emitir consultorias, um posto normalmente bastante lucrativo. A
Alvarez e Marsal, que o contratou, é administradora da recuperação judicial da
Odebrecht.
https://www.conjur.com.br/2021-abr-10/jornal-frances-mostra-eua-usaram-moro-lava-jato

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