Recentemente,
passou a tramitar no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná uma demanda
judicial que ganhou destaque no cenário jurídico paranaense. Trata-se de uma
ação [1] cujo autor é um animal não humano, o cão Jack. Nos autos de reparação
de dano com pedido de tutela provisória, o animal da raça american pitbull
terrier alega ter sido vítima de elevados maus-tratos por parte de seu antigo
tutor. O cão foi resgatado por uma organização não governamental (ONG), que é
litisconsorte de Jack no polo ativo da demanda judicial. A ação põe em questão
a necessidade de animais não humanos, como Jack, acessarem a Justiça e terem
capacidade de ser parte (personalidade judiciária) reconhecida, uma vez que são
as vítimas diretas dos maus-tratos.
Apesar
desse caso ter gerado interesse e até surpresa em alguns, não é a primeira
situação jurídica em que animais não humanos figuram no polo ativo de demandas
no Judiciário. Nos últimos anos, uma grande discussão surgiu no cenário
jurídico nacional acerca da admissibilidade de demandas judiciais em que
animais figuram no polo ativo da relação processual na condição de sujeitos de
direitos fundamentais, em decorrência do princípio do acesso à Justiça e da
defesa de direitos animalísticos constitucionalmente garantidos.
Em
relação à proteção aos direitos e às garantias dos animais não humanos tem-se
que o tema é delimitado, principalmente, pelo Direito Animal, corrente jurídica
e doutrinária que visa a estabelecer um microssistema de proteção animalista.
Nas palavras do professor doutor Vicente Ataíde, o Direito Animal. "do
ponto vista do Direito positivo, pode ser conceituado como 'conjunto de regras
e princípios que estabelece os direitos fundamentais dos animais não humanos,
considerados em si mesmos, independentemente da sua função ambiental ou
ecológica'" (ATAIDE JUNIOR, 2018, p. 50).
Ainda
que os direitos dos animais estejam protegidos por lei constitucional e
infraconstitucional, a presença de um animal no polo ativo de uma demanda
processual não representa uma temática pacificada, resultando em muita
controvérsia tanto no Poder Judiciário como na sociedade brasileira. Isso
porque o sistema jurídico do Código Civil pátrio ainda enquadra os animais na
condição de "coisas móveis semoventes" (artigo 82 CC), desprovidos de
direito individual e tendo garantias de direitos somente quando tutelados por
terceiros.
No
entanto, a luta de muitos progressistas dessa área foi reconhecida e em
setembro de 2020 pela aprovação pelo Senado Federal do Projeto de Lei nº
6054/2019 [2], que visa a modificar a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes
Ambientais), descoisificando os animais e passando a tratá-los como seres
sencientes, dotados de natureza biológica e emocional. Além disso, a redação do
projeto de lei estabelece um regime jurídico especial para os animais não
humanos, reconhecendo que estes são dotados de natureza jurídica sui generis,
portanto, são considerados sujeitos de direitos despersonificados, com
garantias inerentes à tutela jurisdicional. Após a aprovação pelo Senado
Federal, o projeto de lei voltou à Câmara dos Deputados e aguarda nova
apreciação da emenda proposta pelo senadores.
Assim,
constata-se que os debates acerca da admissibilidade processual dos animais em
juízo superam a mera situação de tratá-los como coisas ou não, sendo uma das
principais controvérsias em relação à capacidade dos animais figurarem como
sujeitos ativos de demandas judiciais. Importante ressaltar que nenhuma
legislação específica precisa reconhecer expressamente a capacidade de ser
parte, pois todo sujeito de direitos deve ter acesso à Justiça, podendo
defender seus direitos perante a jurisdição.
Afinal,
como aponta Didier, "a capacidade de ser parte é a personalidade
judiciária: aptidão para, em tese, ser sujeito de uma relação jurídica
processual (processo) ou assumir uma situação jurídica processual etc.)".
Ademais, insta ressaltar a diferença entre personalidade jurídica (outorgada
pelo Poder Legislativo, como aptidão genérica para adquirir direitos e contrair
obrigações) e personalidade judiciária (capacidade de ser parte em decorrência
do princípio do acesso à Justiça — quem tem direitos tem o direito de ir a
juízo).
O
reconhecimento dos animais como sujeitos de direito advém da Constituição
Federal brasileira, que passou a considerar os animais não humanos como seres
importantes por si próprios, dotados de valor intrínseco, como fins em si mesmos,
ou seja, passou a reconhecer, implicitamente, a dignidade animal (SILVA, 2014,
p. 100-103; SARLET; FENSTERSEIFER, 2017, p. 90-114; MAROTTA, 2019, p. 105-116).
Ainda no âmbito jurídico, verifica-se que o tema de garantia de direitos
animalista é tratado no artigo 32 da Lei 9.605/1998, que tipifica os crimes
praticados contra a dignidade animal. E no disposto no Decreto nº 24.645/1934,
ainda em vigor, que reconhece os primórdios de uma capacidade dos animais serem
partes em processos judiciais, indicando terceiros que podem suprir a
representação processual nas demandas judiciais.
Alguns
tribunais latino-americanos já se posicionaram progressivamente, reconhecendo
não apenas que os animais são dotados da capacidade processual para defender
direitos próprios nos tribunais [3]. No Brasil, em relação ao acesso de animais
à Justiça, tem-se que o "caso Suíça" [4] foi o primeiro precedente em
que um animal foi reconhecido como sujeito de direito dotado da capacidade
processual de ser parte. Em 19 de setembro de 2005, um grupo formado por
membros do Ministério Público, sociedades protetoras, professores e estudantes
de Direito impetrou um Habeas Corpus no Estado da Bahia em favor da
chimpanzé-fêmea de nome Suíça, que vivia em uma jaula do zoológico público daquela
cidade.
Esse
leading case criou, sob o fundamento de que o Direito não pode ser estático, a
ideia de que a lei e a interpretação judicial devem evoluir de acordo com os
novos valores sociais. Essa decisão representa o primeiro precedente judicial
do mundo moderno onde um animal não humano figurou em uma relação jurídica
processual (direito de ação) equiparado ao humano, na condição de autor e
titular de um direito material (o direito de liberdade corporal). A decisão
inaugurou uma tendência que paulatinamente se constrói na jurisprudência. Em
2016, o juiz de Direito Fernando Henrique Pinto, da 2ª Vara de Família e
Sucessões de Jacareí (SP), concedeu liminar para regulamentar a guarda
alternada de um cachorro entre seus donos [5]. Naquela decisão, o magistrado
reconheceu os animais como sujeitos de direito nas ações referentes às
desagregações familiares. Nesse sentido, manifestou-se o magistrado:
"Diante
da realidade científica, normativa e jurisprudencial, não se poderá resolver a
'partilha' de um animal (não humano) doméstico, por exemplo, por alienação
judicial e posterior divisão do produto da venda, porque ele não é mera
'coisa'. Como demonstrado, para dirimir lides relacionadas à 'posse' ou
'tutela' de tais seres terrenos, é possível e necessário juridicamente, além de
ético, se utilizar, por analogia, as disposições referentes à guarda de humano
incapaz".
Além
disso, na ação civil pública [6] proposta pelo Fórum Nacional de Defesa Animal
em face da União, com o objetivo de vetar o transporte de animais vivos, por
meio de navios, em todos os portos brasileiros, em razão das violações à
dignidade dos animais o juiz federal da 25ª Vara Federal da Subseção Judiciária
de São Paulo, ao conceder o pedido liminar asseverou: "A evolução da
civilização fez com que os animais deixassem de ser tão somente objetos de
direito e passassem a ser sujeitos de direito. (...) Assim, por esse exemplo
metafórico e caricato assenta-se bem a ideia de que o animal é sujeito de
direito, sendo sua proteção um dever jurídico e não apenas um preceito de ordem
ética".
Essas
inovações não existem senão ao lado de muita divergência entre os
doutrinadores, mas prometem ser a semente para que cada vez mais se desenvolva
uma maior proteção da tutela dos direitos animais em âmbito nacional, ainda
mais com uma legislação infraconstitucional tímida.
Embora
existam inúmeros avanços ocorridos ao longo do tempo para a concretização dos
direitos dos animais não humanos, as leis atuais ainda não têm sido suficientes
para a proteção dos animais e punição devida dos infratores. Cabendo ao
Judiciário reconhecer, proteger e garantir os direitos e garantias inerentes
aos animais, que possuem o direito de ingressar com demandas no Poder
Judiciário em decorrência do princípio do acesso à Justiça e da defesa de
direitos animalísticos constitucionalmente garantidos.
[1]
https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2020/01/30/cachorro-entra-com-acao-na-justica-contra-antigo-dono-por-maus-tratos-em-cascavel.ghtml
[2]
BRASIL. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado - PLS 6054/2019. Acrescenta
parágrafo único ao artigo 82 do Código Civil para dispor sobre a natureza
jurídica dos animais domésticos e silvestres, e dá outras providências.
[3]
http://www.direito.ufpr.br/portal/animaiscomdireitos/wp-content/uploads/2020/08/rufsm-a-capacidade-processual-dos-animais-no-br-e-al.pdf
[4]
Trecho da sentença do Habeas Corpus impetrado em favor da chimpanzé
"Suíça". In Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador, v. 1, n.
1, 2006, p. 284.
[5]
https://www.conjur.com.br/2016-fev-11/juiz-determina-guarda-compartilhada-cao-processo-divorcio
[6]
ACP 5000325-94.2017.4.03.6135, Juiz Federal Djalma Moreira Gomes, julgado em
02/02/2018.
https://www.conjur.com.br/2020-out-11/faxina-nascimento-direito-animais-demandas-judiciais
Nenhum comentário:
Postar um comentário