"A
nova intervenção externa do Brasil ao lado dos EUA, contra a Venezuela, apenas
repete e prolonga uma decisão de longo prazo dos militares brasileiros pela
transformação do Brasil num “Estado vassalo” 2 do império militar
norte-americano, utilizando uma ideia e expressão do General Golbery do Couto e
Silva", escreve José Luis Fiori, em artigo enviado pelo autor.
José
Luis Fiori é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia
política Internacional (PEPI), coordenador do GP da UFRJ/CNPQ “O poder global e
a geopolítica do Capitalismo”, coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e
Poder Global”, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo,
Gás e Biocombustíveis (INEEP), autor de “O Poder global e a nova geopolítica
das nações”, “História, estratégia e desenvolvimento” e “Sobre a Guerra”.
Eis
a pergunta que não cala: "quando foi que os 210 milhões de brasileiros
transferiram para esses senhores o direito de decidir seu futuro como nação,
obrigando seus filhos e netos a viverem para sempre como “vassalos” de outro
povo, sendo obrigados a morrer nas guerras travadas por um outro Estado
nacional?"
Eis
o artigo.
Os
países fortes tornam-se cada vez mais fortes, e os fracos, dia a dia, mais
fracos; as pequenas nações se veem, da noite para o dia, reduzidas à condição
humilde de estados pigmeus [...] e a equação de poder do mundo simplifica-se a
um reduzido número de termos, e nela se chega a perceber desde já apenas raras
constelações feudais de estados-barões rodeados de satélites e vassalos - Gal
Golbery do Couto e Silva, 1952, “Geopolítica e estratégia”, in “Geopolítica e
Poder”, Editora UniverCidade, Rio de Janeiro, 2003, p. 17
Segundo
Joffrey Sachs, Mike Pompeo, chefe do Departamento de Estado norte-americano, é
um ardoroso evangélico que considera que é chegada a hora do Apocalipse, da
volta de Cristo e da batalha final do “bem” contra o “mal”, que será liderada
pelos Estados Unidos, o maior de todos os povos judaico-cristãos.[1] Além
disso, Mike Pompeo é um empresário “rude e simplista”, e um homem da comunidade
de inteligência americana, ex-diretor da CIA, sem nenhuma formação diplomática,
que opera como uma espécie de ventríloquo de Donald Trump e de sua diplomacia
agressiva de desacato às pessoas e de ameaças aos países que discordam ou
competem com os Estados Unidos. De qualquer maneira, é um homem que não usa
“meias palavras” nem esconde intenções, e foi absolutamente explícito com
relação aos objetivos de sua visita-relâmpago à Base Aérea de Boa Vista, no
estado de Roraima, junto à fronteira da Venezuela, no dia 18 de setembro de
2020. Todos entenderam sua encenação eleitoral, mas ele também foi claro na sua
demonstração ostensiva de poder frente aos governos, e frente às “tropas
satélites”, que estão participando do cerco militar ao território venezuelano
que está em pleno curso.
O
cerco militar à Venezuela começou no mês de abril, com uma grande demonstração
do poder naval dos Estados Unidos no Mar do Caribe, mas depois disto, nos meses
de junho e julho, a Marinha americana realizou novas simulações de guerra e uma
grande “Operação Liberdade de Navegação”, comandada pelo Alm. Craig Fallen,
chefe do Comando Sul das Forças Armadas do Estados Unidos, “USSOUTHCOM”, com
sede na Flórida, e liderada por uma das mais modernas embarcações da Marinha
norte-americana, o destroier USS Pinckney (DDG91). Imediatamente depois, foi a
vez da “Operação Poseidon”, que já contou com a participação direta da
Colômbia, e foi realizada junto com a visita de Mike Pompeo, que antes de
aterrissar em Roraima visitou a Guiana e o Suriname, e obteve o consentimento
para utilização de seu espaço aéreo, a leste da Venezuela, pela Força Aérea dos
Estados Unidos. Por fim, a visita de Mike Pompeo coincidiu com a “Operação
Amazônia” das FFAA brasileiras, realizada entre os dias 4 e 23 de setembro,
envolvendo três mil militares trazidos de cinco comandos diferentes, juntamente
com uma bateria completa do Sistema Astros, completando o cerco pelo sul do
país vizinho.
Apesar
da data e das dimensões da operação brasileira, ela foi tratada pelas
autoridades militares locais como um exercício regular de suas FFAA, quando de
fato envolve acordos e encobre decisões que dizem respeito ao futuro de todos
os brasileiros. Mesmo quando essas decisões não sejam novas nem originais e
reproduzam a história de longo prazo das relações militares entre o Brasil e
Estados Unidos, que começou na primeira metade do século XX, são tratadas como
se fossem de exclusiva responsabilidade das Forças Armadas. Uma história longa,
mas que pode e deve ser dividida em dois grandes períodos: antes e depois de
1941.
Nas
duas primeiras décadas do século XX, a geração do Barão de Rio Branco, e do
presidente Hermes da Fonseca concebeu e se propôs fazer uma aliança estratégica
do Brasil com os Estados Unidos, que deveria ocorrer junto com a
recentralização do poder do Estado e a reorganização das Forças Armadas
brasileiras. O objetivo era enfrentar a competição econômica e militar da
Argentina, mais rica e poderosa e apoiada pela Inglaterra na disputa pela
hegemonia da Bacia do Prata e da própria América do Sul. Nesse período,
entretanto, os Estados Unidos estavam absorvidos pela Primeira Guerra Mundial e
sua grande crise econômica da década de 30, e deram pouca atenção aos seus
vizinhos da América do Sul. Mas isso mudou radicalmente com a entrada dos
Estados Unidos na II Guerra Mundial, em 1941, e com sua pressão sobre os países
do hemisfério para que suspendessem suas exportações para a Alemanha e a
Itália.
Foi
então que o Brasil tomou uma série de decisões que marcariam sua história
militar posterior. Primeiro, cedeu aos norte-americanos o monopólio de sua
produção de bauxita, berilo, manganês, quartzo, borracha, titânio e vários
outros minerais estratégicos para os Estados Unidos. E logo em seguida, no
mesmo ano de 1941, o governo brasileiro concedeu à Marinha americana o direito
de operar na costa brasileira, e o direito das tropas americanas de utilizarem
suas bases aéreas e navais. Finalmente foi assinado, em 22 de maio de 1942, um
Acordo Militar que garantiu o alinhamento das Forças Armadas brasileiras ao
lado dos Estados Unidos, em troca de um financiamento de U$ 200 milhões de
dólares para aquisição de equipamentos, armas e munições norte-americanas,
junto com o compromisso de desenvolver planos conjuntos de defesa e capacitação
das FFAA brasileiras.
Em
seguida, em agosto de 1942, o Brasil declarou guerra às potências do Eixo, mas
o reequipamento das suas Forças Armadas só começou a ser feito, de fato, depois
que o país garantiu o envolvimento direto de seus militares no campo de
batalha, com a criação da Força Expedicionária Brasileira, em agosto de 1943, e
com o envio de seus soldados para a Itália, em fevereiro de 1944, onde foram
situados junto ao 371o. Regimento Afro-Americano. Um ano depois, a FEB
participou da tomada do Monte Castelo, ao lado da 10a Divisão de Montanha
Estadounidense, e passou a fazer parte do IV Corpo de Exército Americano,
localizado na zona central da Itália. A FEB teve 12 mil baixas, e a maioria de
seus oficiais ficou estreitamente ligada a seus parceiros americanos depois do
retorno ao Brasil, no segundo semestre de 1945, onde muitos deles vieram a
participar do golpe militar que derrubou o presidente Vargas, em 3 outubro de
1945, e decretou o fim do Estado Novo, que os próprios militares haviam
instalado em 1937. Por fim, essa mesma geração de militares teve papel decisivo
na negociação e assinatura do grande “Acordo de Assistência Militar entre a
República do Brasil e os Estados Unidos da América”, em 15 de março de 1952.
O
novo acordo, de 1952, serviu para confirmar e consagrar o relacionamento que
havia nascido durante a Segunda Guerra, entre os militares brasileiros e
norte-americanos. A diferença era que o novo acordo assegurava uma ajuda anual
permanente de U$ 50 milhões de dólares para aquisição de armas e equipamentos
americanos, em troca do fornecimento de urânio e areias monazíticas, além de
outros minerais estratégicos. A negociação deste acordo militar foi conduzida
pelo Embaixador dos EUA e pelo Ministro de Relações Exteriores brasileiro, o
mesmo João Neves da Fontoura que depois traiu seu amigo Vargas ao denunciar, em
abril de 1954, um acordo que foi inventado e atribuído a e Vargas e Peron
visando criar um bloco geopolítico junto com o Chile, que foi chamado de ABC.
Uma ideia que nunca foi tolerada pelos Estados Unidos e, portanto, uma denúncia
que contribuiu decisivamente para a derrubada de Vargas em agosto de 54. Além
da troca de equipamento bélico por minerais estratégicos, o Acordo Militar de
1952 garantiu, nas décadas seguintes, o adestramento dos oficiais brasileiros
nas escolas militares nos EUA e da Zona do Canal do Panamá, junto com a presença
de oficiais norte-americanos nos cursos do Estado-Maior das Forças Armadas
brasileiras.
Antes
disso, entretanto, a geração militar que voltou da Itália também teve papel
importante na criação da Escola Superior de Guerra (ESG), que foi criada
segundo o modelo das War Colleges dos EUA, e que contou desde o início com a
assessoria direta dos militares americanos que passaram a ter um Oficial de
Ligação permanente dentro das dependências da própria Escola. Foi na ESG que se
formulou, na década de 50, a nova Doutrina de Segurança Nacional dos militares
brasileiros que acabou sendo transformada em Lei da República, em 1968, pelo
Decreto-Lei da Ditadura Militar, no 314/68. E foi no corpo dessa nova
“doutrina” que apareceu pela primeira vez o conceito de “inimigo interno” do
Estado brasileiro, que incluía, desde logo, todos aqueles que se opusessem à nova
subserviência internacional do Brasil. Depois de 1948, passaram pela ESG quase
todos os militares que participaram do “ultimato militar” a Vargas, em 1954; da
frustrada tentativa de impedir a posse de JK, em 1955; e finalmente, do golpe
militar de 1964, que derrubou o governo Goulart e entregou o poder do Estado
brasileiro, durante 20 anos, a essa mesma geração de soldados que se formou a
partir da década de 40 e viveu ao lado dos Estados Unidos sob a égide da Guerra
Fria.
Logo
depois do golpe militar de 64, as Forças Armadas brasileiras aceitaram
participar da invasão norte-americana de Santo Domingo, enviando 1.130 soldados
que se juntaram, em abril de 1965, aos 42 mil soldados utilizados pelos EUA
para derrubar o governo eleito de Juan Bosh e instalar no seu lugar o governo
de Joaquin Balaguer, que dominou a política dominicana nos 22 anos seguintes.
Além disso, e no mesmo espírito, os militares brasileiros participaram da
Operação Condor, montada em 1968 para perseguir e matar “inimigos internos” no
Cone Sul da América Latina. Esta intervenção foi a tal ponto que o embaixador
brasileiro no Chile chegou a ser chamado informalmente de “quinto membro” da
Junta Militar que comandou o sangrento golpe de estado do General Pinochet, em
setembro de 1973.
O
Acordo Militar de 1952 foi denunciado pelo General Ernesto Geisel, em 11 de
março de 1977, e foi extinto no ano seguinte, apesar de os oficiais brasileiros
seguirem sendo treinados nas academias de guerra norte-americanas nos 30 anos
que se seguiram. Entre abril de 2010 e janeiro de 2014, entretanto, o governo
brasileiro voltou a assinar três novos acordos militares na área da defesa,
compra de materiais e tecnologias bélicas, e troca de informações entre as FFAA
dos dois países. E depois do golpe “cívico-militar” de 2016, assinou um acordo
para o uso norte-americano da Base de Alcântara, e foi declarado “aliado
preferencial extra-OTAN” pelo presidente Donald Trump. E, finalmente, o atual
governo indicou um general das FFAA brasileiras para ocupar diretamente, o
posto de “subcomandante de interoperacionalidade” diretamente dentro do Comando
Sul das FFAA norte-americanas, onde foi assinado o recente Acordo de Pesquisa,
Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E, na sigla em inglês), que agora
se encontra em discussão no Congresso Nacional.
Assim,
é no contexto dessa nova “relação carnal” com os Estados Unidos que deve ser
lida, finalmente, a tal da “Operação Amazônia” dos militares brasileiros, que
foi consagrada pela visita de Mike Pompeo tendo do seu lado o “bufão bíblico”
local que comandou a fracassada “invasão humanitária” da Venezuela, de 2019.
Uma leitura das recorrências “epidemiológica” desta história permite formular
pelo menos quatro hipóteses, uma certeza e uma pergunta final.
A
primeira hipótese, é que os militares tiveram papel central em todos os golpes
de Estado da história brasileira do século XX: em 24 de outubro 1930; em 19 de
novembro de 1937; em 29 de outubro de 1945; em 24 de agosto 1954; em 31 março
de 1964; e ainda que de forma menos direta, também no golpe de estado de 31 de
agosto de 2016. A segunda hipótese, é que os acordos e relações militares entre
Brasil e Estados Unidos tiveram associação muito estreita com quase todos esses
golpes, sobretudo depois de 1940. A terceira hipóteses, é que esses acordos e
golpes militares vieram associados, quase invariavelmente, com a participação
do Brasil em intervenções externas das FFAA norte-americanas. E, finalmente, a
quarta hipótese, é que todos esses acordos e golpes militares tiveram muito mais
a ver com os interesses estratégicos dos EUA do que com as disputas políticas
internas dos próprios brasileiros.
De
qualquer maneira, para além destas constatações, fica a certeza de que a nova
intervenção externa do Brasil ao lado dos EUA, contra a Venezuela, apenas
repete e prolonga uma decisão de longo prazo dos militares brasileiros pela
transformação do Brasil num “Estado vassalo” [2] do império militar
norte-americano, utilizando uma ideia e expressão do General Golbery do Couto e
Silva.
Por
fim, fica uma pergunta: quando foi que os 210 milhões de brasileiros
transferiram para esses senhores o direito de decidir seu futuro como nação,
obrigando seus filhos e netos a viverem para sempre como “vassalos” de outro
povo, sendo obrigados a morrer nas guerras travadas por um outro Estado
nacional?
Notas:
[1]
Sachs, J. D., “America´s unholy crusade against Chine”, Aug 06, 2020
[2]
Na história dos grandes impérios clássicos, e do Império Otomano, em
particular, os “estados vassalos” foram sempre aqueles que ofereceram homenagem
e cederam seus soldados para as guerras do Sultão, ou dos imperadores em geral.
http://www.ihu.unisinos.br/603357-a-lenta-construcao-de-um-estado-vassalo-e-o-papel-dos-militares-brasileiros-artigo-de-jose-luis-fiori
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