Tal como os mitos, as lendas
populares são histórias que têm raízes longínquas. Elas foram transmitidas
século após século, quer pela via oral, quer pela escrita. E aqueles que as
decoraram (“de-cor”, na acepção do que é apreendido pelo coração) e seus compiladores
contribuíram, significativamente, para resgatar uma parcela do imaginário
humano.
As fábulas por eles contadas,
portanto, não podem ser creditadas integralmente à faculdade criativa
individual, mas a uma possível interpretação de anseios do imaginário antigo de
determinados povos, sem dúvida incorporando a interferência dos múltiplos
reprodutores e compiladores. E chegaram até nós enriquecidas por elementos
fantasiosos, envolvendo quase sempre situações e seres sobrenaturais.
Há quase quatrocentos anos,
Giambattista Basile usou o dialeto napolitano para remanejar conteúdos
originários de novelas, de mitos, de jargões, de poemas cômicos, de histórias
antigas e de momentos de seu povo, principalmente aquele da região de Nápoles,
para organizar uma coletânea de histórias populares que ele intitulou de “Lo
cunto de li cunti, ovvero lo trattenemiento de peccerille” (“Conto dos contos,
o entretenimento para pequenos”), publicada postumamente à sua morte pela irmã
cantora lírica, entre 1634 e 1636.
Devemos observar que quando Basile a
escreveu, não existia a concepção de uma literatura destinada às crianças nos
moldes e na maneira como a entendemos nos dias de hoje. Na realidade,
tratava-se de histórias fantásticas inseridas num contexto histórico com forte
conteúdo moralista, destinadas a serem contadas em sociedade nos saraus de
contadores da época.
A península itálica, ao tempo de
Basile, estava sob a influência do estilo Barroco, cuja ideologia influenciou
diretamente a filosofia e a literatura. De certa forma, o Barroco fora como que
imposto pela contrarreforma da Igreja Católica, sob uma base conflitiva com o
racionalismo do período anterior, o do Renascimento. Logo, todo o rebuscamento
presente nesse momento literário é um reflexo dos conflitos entre o terreno e o
celestial, o humano e a divindade, o pecado e o perdão, o paganismo e a
religiosidade medieval. E na mesma medida em que o Renascimento valorizava o
profano e o gosto pelas satisfações mundanas, o Barroco refletia a oposição
entre os ideais de vida eterna em contraposição com a vida terrena, ou espírito
em oposição à carne.
Basile, homem de seu tempo, se inclina
claramente pelos princípios renascentistas seguindo um raciocínio lógico,
dentro de uma retórica primorosa, associado à ética cristã. No entanto, certo
“cultismo barroco” será o responsável pelo uso da linguagem rebuscada, culta,
extravagante, repleta de jogos de palavras e do emprego abusivo de figuras de
estilo. E a organização de cada composição tem por intuito sempre o convencer e
ensinar, enquanto as figuras de estilo mais comuns nos textos reforçam a
tentativa de realizar a apreensão da realidade por meio dos sentidos.
A narrativa de Basile é repleta de
seres inanimados e imaginários, que dinamizam a realidade ressaltando sempre no
estranho e no bizarro, de tal maneira que a presença constante de seres
sobrenaturais como ogros, megeras, bruxas e fadas, mergulha-nos no mais antigo
substrato pagão.
Nele, a barbárie natural das fábulas
rende-se à máxima da harmonia, mesmo quando atinge a truculência, onde o
emprego de crueldade e de injustiça caminha ao par com a ferocidade
sanguinária; no entanto, a violência jamais é gratuita e a narrativa corre rumo
a uma solução reparadora. Mesmo que esta compreenda a rápida e quase sempre
impiedosa justiça sumária do malvado, mais frequentemente da malvada, como a
fogueira o era para as bruxas no século XVII.
Por outro lado, o gênero “Amor e
Psiquê” se faz também presente em boa parte dos contos. Ora é o esposo
sobrenatural que é encontrado numa residência subterrânea, do qual não se pode
revelar o nome nem o segredo; ora os amantes evocados por pássaros, que um
ardil do rival invejoso fere ou abate; ora é o rei-serpente ou o rei-escravo,
que no escuro é um jovem belíssimo desde que a esposa não acenda uma vela
motivada pela curiosidade, rompendo o encantamento.
De todo modo, o impulso para o
maravilhoso em Basile permanece predominante, mesmo se confrontado com a
intenção moralista. E o moral da fábula está sempre implícito na vitória das
virtudes simples, das personalidades boas e no castigo das perversidades
igualmente simples e absolutas dos malvados.
Finalmente, muitas fábulas partem da
situação de miséria, da fome e da falta de trabalho e das perspectivas pessoais
de muitos dos personagens. E essas situações são uma espécie de trampolim para
o salto no mavioso, um elemento de contraste com a realeza e o sobrenatural.
“Quem sabe na poesia o quanto é raro construir-se um sonho sem refugiar-se na
evasão, apreciará a manutenção dessas pontas extremas de autoconsciência que
não rechaçam a invenção de um destino, esta força da realidade que explode
inteiramente em fantasia. Melhor lição, poética e moral, as fábulas não nos
poderiam dar”, sublinha Ítalo Calvino.
A consolidação da divisão política do
território italiano em estados dominantes, resultado da aliança entre a
aristocracia e o clero, levara o povo humilde ao distanciamento da Igreja,
contribuindo para reforçar a condição de inferioridade das grandes massas
populares. Este enorme contingente isolado no imobilismo político, social e
cultural, facilitara o avanço da opressão e da miséria no território italiano,
estratificando a nobreza latifundiária num retorno a uma sociedade arcaica.
Giambattista Basilese está inserido
nos experimentos de intelectuais interessados em resgatar as tradições
culturais de seus povos, e o realiza numa linguagem capaz de revelar os grandes
tesouros da sabedoria popular.
Basile viveu em uma família numerosa,
sem muitas posses. Frequentou o ensino fundamental, mas não a universidade.
Desde jovem circulava por toda a península e, como parcela daquela juventude,
serviu ao exército veneziano. Por ele foi enviado a Candia, a ilha de Creta,
que na ocasião entrara nos objetivos guerreiros dos turcos. Lá o soldado Basile
complementou sua formação em literatura clássica.
Além disso, nos acampamentos e nos
portos, aprazia-lhe ouvir e anotar histórias fantásticas. Aos poucos começou a
traçar um caminho. Sua atenção à vida e às tradições, às pessoas comuns, às
coisas simples, reforçaram uma visão de Benedetto Croce sobre o napolitano:
"Ele era um homem de coração e cérebro, um bravo homem de retidão e grande
bondade, justo e com sede de justiça, rico de afeto, cheio de sofrimento,
arrependimentos e nostalgias". Ainda Croce: “daí um moralista que anseia
por sentimentos e valores humanos mais genuínos e busca encontrar refúgio nas
parcelas ingênuas de contos populares.”
Decepcionado e amargurado pela
pequenez dos homens pertencentes às classes sociais mais altas, embora ele
próprio fizesse parte delas, preferiu dar voz ao povo depositário de uma
sabedoria preciosa e única.
Ao retornar de Creta, viveu quase
sempre em companhia de sua irmã, a soprano Adriana Basile. Em Nápoles, governou
os feudos de vários senhores meridionais. Foi, então, feito Conde de Torrone e
representou o papel de brilhante intelectual inserido na realidade social e
literária da cidade de Nápoles, nos primeiros trinta anos do século XVII.
Sua produção literária ademais do “Lo
Cunto de li cunti”, incluiu “A musa napolitana” além de várias odes, poemas,
canções e composições para a corte.
“Lo Cunto de li cunti”, também
denominado “Pentamerone”, foi a primeira grande coleção europeia de contos
maravilhosos. O trabalho é estruturado dentro de uma história-quadro no seio da
qual se organizam cinco jornadas narrativas protagonizadas por dez contadoras.
A obra foi definida por Benedetto
Croce como "o mais velho, mais rico e artístico de todos os livros de
fábulas populares" e por Italo Calvino como “o sonho de um Shakespeare
partenoeuropeu”.
De todos os modos, “Lo Cunto de li
cunti” foi o primeiro afloramento significativo de contos maravilhosos no plano
da literatura europeia, refletindo o enraizamento da cultura napolitana no
mundo mediterrâneo.
Charles Perrault, no final do século
XVII, teve como base Basile para criar um conjunto de fábulas a serem contadas
na corte de Luís XIV, como é o caso de “A Bela Adormecida”, de “O Gato de
Botas” e da “Cinderella”. Do mesmo modo, as versões dos Irmãos Grimm para “A
Bela Adormecida” e “Rapunzel”, dentre outras, possuem uma clara influência
direta de “Lo Cunto de li cunti”.
Apesar de todas estas virtudes, os
trabalhos de Giambattista Basile permaneceram até hoje pouco conhecidos. O fato
de terem sido escritos no dialeto napolitano tolheu certamente a sua recepção,
sendo que somente em 1846 houve uma primeira tradução alemã e, em 1902, foi
publicada uma tradução inglesa. E mesmo a melhor das traduções inglesas, a de
1932 e há muito esgotada, ressentia-se do fato de se basear na tradução
italiana assumidamente livre que Benedetto Croce realizara em 1925. Não
possuímos notícia de que tenham sido um dia, publicados em língua portuguesa.
No século XXI, Nancy Canepa aportou
nova tradução para a língua inglesa diretamente do texto napolitano e seguiu a
verve metafórica de Basile, mantendo sempre que possível o sabor das vigorosas
expressões idiomáticas. O resultado foi surpreendente: passagens que nas
traduções anteriores eram pesadas e sem graça, ganham agora nova vida.
Entretanto, a tradutora não é uma folclorista, escritora ou contista, e suas
interpretações baseiam-se em argumentos alheios, nada adicionando ao que uma
vez foi escrito para um público derminado, aquele do século XVII.
Giambattista Basile nasceu e escreveu
a maior parte de sua obra literária em Giuliano, na província de Nápole, cidade
que no século XVII possuía ao redor de sete mil habitantes. Minha família
também é originária de Giuliano e, de parte de meus bisavôs possuo a
ascendência Basile. No princípio do século XIX, até quando consigo buscar meus
antepassados diretos, Giuliano não passava de vinte e poucas mil almas e muitas
histórias familiares se mesclam e caminham ao encontro de um erudito e distante
pensador com título de nobreza. Teria sido Giambatista? Quem o poderia afirmar
ou negar?
Pois bem, de alguma forma, principiei
com a difícil leitura de seus primeiros contos, contrastando versões em inglês
e em italiano realizadas no final do século XIX e princípios do XX. Quando me
dei conta havia como que me tornado “herdeiro” de trinta e duas das mais representativas,
dentre as cinquenta fábulas narradas no famoso “Pentamerone”. E senti-me como
que possuído pela natureza tentacular das fábulas, descobrindo um fundo popular
de enorme riqueza, limpidez, variedade e cumplicidade entre o real e
imaginário, que fui tocado pelo desejo de comunicar aos outros as visões
insuspeitas que se abriam ao meu olhar.
Agora que o esforço terminou, posso
dizer tal qual Calvino ao selecionar a sua coletânea de “Fábulas italianas”,
que, infelizmente, passou ao largo de Basile: “As fábulas são verdadeiras!”. E
o são na medida em que sejam tomadas em seu conjunto, em sua sempre repetida e
variada casuística de vivências humanas buscando uma explicação geral da vida,
nascidas em tempos remotos e alimentadas pela lenta ruminação da consciência
popular.
Entendi também que as fábulas são uma
espécie de catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma mulher, sob o
comando do imponderável, do destino. Todos quando jovens carregamos algum
auspício, certa virtude, ou condenação; afastamo-nos da casa paterna e
submetemo-nos a provas que nos transformarão em adultos; depois, a maturidade
se aproximará num devir, como a confirmar que somos humanos.
Meu trabalho inseriu uma contribuição
pessoal, espero que adequada aos textos de Giambatista Basile. O conto mágico
ou maravilhoso é aqui representado numa versão que me parece mais significativa
para os dias de hoje, onde, sendo o espírito geral mantido, a linguagem é menos
rebuscada, o texto aliviado tanto quanto possível de repetições. Confesso
também que fui obrigado a reduzir o tom da linguagem, a descolorir, a enxugar
aquilo que era demasiado pesado, mas atento ao contar, ao refinamento e à
harmonia de cada página reescrita. E em nosso trabalho, a história-quadro (
primeira e última) engloba trinta outras fábulas.
Tudo isso para dizer que decidi
tornar-me um elo da cadeia sem fim pela qual as fábulas se perpetuam. Como toda
fábula popular vale pela urdidura e por aquilo que nela se tece, por aquele
tanto de novo que a ela sempre é agregado ao passar de boca em boca, de caneta
a caneta.
Enfim, esse livro nasceu com a
intenção precisa de tornar acessível a todos os leitores o mundo fantástico
contido em textos barrocos. Por sorte nossa, a fábula goza de grande
traduzibilidade que é privilégio e limite da narrativa.
O livro “O Conto dos Contos” está
publicado neste site com livre acesso: https://www.proust.com.br/conto-dos-contos
Referências: 1 e 3: Calvino I.,
Fábulas Italianas. Cia. Das Letras, 2006/ 2. Croce B., A Poesia. Edições UFRGS,
1967.

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