O
artigo 216 do Código do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul (Lei
15.434/20) considera os animais domésticos e de estimação como sujeitos de direitos despersonificados,
que devem gozar e obter tutela jurisdicional se forem alvo de violações ou
maus-tratos. Apesar do regime jurídico especial, os animais, em grupo ou
individualmente, não podem figurar
como autores numa ação judicial contra seus tutores.
Assim,
a 3ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre decidiu que oito gatos e dois cachorros —
devidamente identificados com nome e sobrenome — não podem permanecer no polo
ativo da ação movida contra uma mulher denunciada por maltratá-los enquanto
manteve a guarda deles.
A
juíza Jane Maria Köhler Vidal, simplesmente, extinguiu a ação em relação aos
bichanos que figuram no polo ativo da ação como coautores. É que, segundo o artigo 485, inciso IV, do Código de
Processo Civil (CPC), o juiz não resolverá o mérito quando "verificar
a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e
regular do processo".
Ao
fim e ao cabo, a julgadora manteve a
entidade protetora dos animais, coautora, no polo ativo da ação, e deferiu em parte o pedido de antecipação
de tutela. Como consequência da decisão, a atual tutora, que mora no
Bairro Bom Jesus, perdeu provisoriamente a guarda dos oito animais para a fiel
depositária.
O
despacho liminar foi proferido em 24 de agosto. Da decisão, cabe recurso de agravo de instrumento ao Tribunal de
Justiça gaúcho.
Ação indenizatória
A
Associação Cão da Guarda,
entidade que ajuda cães e gatos abandonados em situação de vulnerabilidade na
Capital gaúcha, ajuizou, em seu nome e em nome dos bichanos, ação de
destituição de tutela e fixação de guarda cumulada com indenizatória em face de Maria Luíza Soares Duarte, denunciada por
frequentes maus-tratos aos "coautores". Os animais, já resgatados
pela Associação, com a ajuda da Brigada Militar, viviam acorrentados há anos, em péssimas condições sanitárias e ambientais.
Em
sede de tutela
provisória, os autores pediram que a demandada fosse compelida a
desembolsar, mensalmente, R$ 800 por três meses, no mínimo, caso perca
imediatamente a tutela sobre os animais, para tratamento veterinário. No mérito,
pediram que a tutela dos animais fosse definitivamente transferida à
Associação, que promoverá ações de adoção permanente em novas famílias.
Incapacidade processual
Ao
se pronunciar sobre a legitimidade ativa dos coautores não humanos no processo,
a juíza Jane Maria Köhler Vidal entendeu que, apesar destes receberem efetiva
tutela jurisdicional em casos de maus-tratos, não se poderia admiti-los no polo
ativo do processo, como pretende o procurador da entidade protetora.
Embora
o caput do artigo 216 da legislação gaúcha reconheça que os seres sencientes
são capazes de sentir sensações e experimentar sentimentos de forma
conscientes, advertiu a juíza, eles são sujeitos apenas de direitos
despersonificados. Em outras palavras: devem gozar e obter tutela jurisdicional
em caso de violação, já que vedado o seu tratamento como mera coisa.
"Referido
dispositivo legal, apesar de estabelecer a natureza sui generis dos animais
domésticos, não prevê a capacidade processual dessa categoria, o que nem
poderia, sob pena de inconstitucionalidade formal e material, uma vez que
compete privativamente à União legislar sobre Direito Processual, assim como
sobre Direito Civil, conforme disposto no art. 22, I, da Constituição da
República", explicou no despacho liminar.
Em
arremate, no aspecto, destacou que a negativa de aceitar animais domésticos
como sujeitos do processo não significa um retrocesso em matéria ambiental.
"Uma vez que não se está retirando dos animais domésticos o seu direito à
efetiva proteção, a qual continua assegurada não só pelo art. 225, § 1º, VII,
da Constituição da República, mas agora também, em âmbito estadual, pelos arts.
216 e 217 da Lei Estadual nº 15.434/2020."
Tutela parcialmente
concedida
Afastados
os coautores não humanos, por ilegitimidade ativa, a julgadora passou a
analisar os documentos que embasaram o pedido de tutela provisória feito pela
entidade protetora. Os autos da lavratura policial mostraram que no local
denunciado havia cães e gatos amarrados com correntes, sem proteção no pescoço,
provocando lesões. No interior da residência, objetos acumulavam-se nos cantos,
dividindo o espaço com fezes de animais. Havia pouca iluminação, potes vazios
de água e forte odor de urina no ambiente.
O
aspecto dos animais era crítico: magros, lesionados na pele e com sinais de
desidratação. Alguns ficavam expostos diretamente no piso bruto, sem nenhuma
proteção contra a umidade ou calor excessivo. A dona do local admitiu que não
vacinava os animais, pois não tinha dinheiro para bancar estes custos.
Frente
aos indícios de maus-tratos, Jane deferiu em parte a tutela, tão somente para
destituir provisoriamente a demandada da posse dos oito animais apreendido pela
Brigada Militar. Ela negou, entretanto, o pedido para compelir a ex-tutora a
custear os tratamentos veterinários.
"Esse
pleito parece estar fora da realidade, pois busca impor a requerida uma
obrigação de expressivo valor econômico quando ela não dispõe de condições de
custear a vacinação dos animais, como apontou a autoridade policial."
Jomar Martins é
correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico
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