Mike
Davis (Fontana, 1946), sociólogo, historiador, autor de mais de uma dezena de
livros, entre os quais estão “Planeta Favela”. Vive em San Diego, Califórnia,
Estados Unidos, a pouco mais de 100 km da fronteira com Tijuana, México.
Há
três meses, disponibilizou na internet um livro sobre a gripe aviária, que
havia escrito 15 anos atrás, e que tinha distribuído todos os exemplares.
Acredita que, de forma inconsciente, não quis conservar em sua biblioteca essa
lembrança do perigo iminente. Contudo, mais uma vez, o monstro bateu à porta e,
desta vez, ganhou dimensões apocalípticas.
Mike
Davis passou este tempo fechado em sua garagem, revisando aquele trabalho e
escrevendo os novos capítulos que fazem parte de “Llega el monstruo”, livro que
já pode ser encontrado nas livrarias espanholas, publicado por Capitán Swing.
Sua leitura nos confronta com a irracionalidade da indústria de alimentos
global, as políticas criminosas das multinacionais e a ameaça de novas pragas
provocadas pelo capitalismo.
Davis
responde esta entrevista por escrito, em meados de julho, quando os Estados
Unidos ainda estão no centro da tormenta.
A
entrevista é de Josefina L. Martínez, publicada por Ctxt, 19-07-2020. A
tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em nível mundial, o
desmatamento é o golpe que rompe os muros entre a natureza selvagem e suas
enormes reservas de vírus, por um lado, e as cidades humanas superpopulosas,
por outro – Mike Davis
Muito
se falou sobre a origem do coronavírus. Como se relaciona com a agricultura
industrial e o papel das multinacionais? São estas as novas pragas do
capitalismo?
Sabemos
que o vírus pandêmico, SARS-CoV-2, originou-se nos morcegos, assim como os SARS
originais de 1992-93. Um quarto de todos os mamíferos são morcegos – cerca de
1.500 espécies – e abrigam uma incrível variedade de vírus, incluindo centenas
de coronavírus, que tem o potencial de saltar para os seres humanos, seja
diretamente ou através de um animal selvagem que atua como intermediário. Não
se conhece a cadeia de transmissão do vírus atual e, de fato, pode ser que
nunca se conheça, mas a constante expansão de cultivos e granjas em áreas
silvestres da China é provavelmente um fator central, junto com a tradição
cultural de consumir morcegos e animais exóticos.
No
caso de novas gripes - que continuam representando um risco iminente -, o
crescimento exponencial da produção industrial de porcos e frangos, no sudoeste
da Ásia e em outros lugares, ampliou enormemente esta ameaça pandêmica. Os
porcos, que podem ser hóspedes de uma dupla infecção de cepas de gripe aviária
e humana, são reatores biológicos centrais, já que os segmentos do genoma de
dois vírus podem, às vezes, se recombinar para criar híbridos monstruosos.
As
indústrias avícolas, por sua vez, atuam como aceleradores virais para a
propagação destas novas cepas. Em nível mundial, o desmatamento é o golpe que
rompe os muros entre a natureza selvagem e suas enormes reservas de vírus, por
um lado, e as cidades humanas superpopulosas, por outro.
Um
exemplo citado em meu livro é o caso da região costeira da África ocidental, a
zona de mais rápida urbanização do planeta. Tradicionalmente, as aldeias e
cidades dependiam do peixe como a principal fonte de proteínas. Mas, a partir
dos anos 1980, as frotas industriais da Europa e Japão extraíram
aproximadamente metade dos peixes do Golfo de Guiné. Os pescadores locais
perderam seus meios de vida e os preços dos peixes dispararam nos mercados
urbanos.
Simultaneamente,
as multinacionais madeireiras estavam abrindo passagem com motosserras nas
matas tropicais do Congo, Gabão e Camarões. Para manter baixos os custos da mão
de obra, contrataram caçadores para matar animais selvagens, incluindo
primatas, para alimentar as quadrilhas. Esta “carne silvestre” logo encontrou
uma enorme demanda nas cidades ávidas por proteínas, especialmente entre as
populações dos bairros pobres, que viviam em condições sanitárias terríveis.
Esta
cadeia causal – a espoliação dos recursos pesqueiros sustentáveis, o corte de
matas que rompeu as barreiras naturais entre as populações humanas e os vírus
selvagens, o aumento da caça de carne de animais silvestres em grande escala
para abastecer os mercados urbanos e o crescimento exponencial dos bairros
pobres urbanos – foi a fórmula mestre para o surgimento tanto do HIV, como do
Ebola.
Nos últimos 25 anos, houve
uma enorme quantidade de pesquisas e preparação para uma pandemia. Em certo
sentido, tudo foi vaticinado, mas alguns países se negaram a prestar atenção às
advertências - Mike Davis
Quinze
anos atrás, você escreveu “O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da
gripe aviária”. Desde aquele momento, muitos estudos alertaram sobre a
possibilidade de uma pandemia. Por que chegamos a este ponto quase sem nenhuma
prevenção e sem o desenvolvimento da pesquisa científica adequada para combater
este tipo de vírus?
Na
realidade, nos últimos 25 anos, houve uma enorme quantidade de pesquisas e
preparação para uma pandemia. Em certo sentido, tudo foi vaticinado, mas alguns
países se negaram a prestar atenção às advertências ou, como os Estados Unidos
sob Trump, desmantelaram deliberadamente estruturas cruciais para o alerta
precoce e o controle.
Além
disso, o Reino Unido, os Estados Unidos e alguns países europeus haviam cortado
drasticamente o gasto em saúde pública, seja por razões ideológicas ou pelas
medidas de austeridade posteriores a 2008. Nos Estados Unidos, por exemplo,
enfrentamos o surto em fins de janeiro com 60.000 profissionais da saúde a
menos do que haviam nas folhas de pagamento dos governos locais e do Estado, em
2007.
Enquanto
isso, a grande indústria farmacêutica [Big Pharma] continuou dificultando o
desenvolvimento de antivirais que são necessários com urgência, antibióticos de
nova geração e vacinas genéricas. No outono passado, o próprio Conselho de
Assessores Econômicos de Trump o advertiu de que não era possível contar com as
grandes empresas farmacêuticas em uma crise pandêmica, já que em geral haviam
abandonado o desenvolvimento de remédios para doenças infecciosas, a menos que
o governo federal interviesse com milhares de milhões de dólares em subsídios.
Por
outro lado, as empresas de biotecnologia menores, que estavam sendo precursoras
de novos medicamentos e vacinas, viram-se privadas do capital necessário para
levar suas descobertas às etapas finais de teste e produção. Após o surgimento
da SARS, em 2003, por exemplo, um consórcio de laboratórios do Texas havia
desenvolvido uma possível vacina contra o coronavírus que ninguém se dispôs a
financiar. Caso tivesse sido desenvolvida, dada a coincidência de 80% entre os
genomas da SARS-1 e a SARS-2, poderia ter sido uma base excelente para a
produção acelerada de uma vacina contra a covid-19.
Conforme a tragédia está
nos obrigando a compreender, não vivemos em uma pandemia, mas em uma era de
pandemias - Mike Davis
O
mais importante, de qualquer modo, é que a maioria dos países da Ásia oriental,
tanto os autocráticos como os democráticos, conseguiram conter a pandemia até
agora graças a planos de resposta bem preparados (um legado das anteriores
crises da SARS e da gripe aviária), uma ampla aceitação da liderança científica,
a imediata aceleração da produção de máscaras e respiradores e, um fator
central que em sua maior parte foi ignorado, a capacidade de mobilizar grandes
exércitos de trabalhadores e voluntários para responder no nível da base.
Apesar
de sua condição de nação em vias de desenvolvimento e da escassez de médicos, o
êxito do Vietnã foi notável e provavelmente seja o resultado da combinação de
laboratórios de categoria mundial (os Institutos Pasteur, em Hanói e na cidade
de Ho Chi Minh) com uma rede nacional de trabalhadores da saúde públicos, em
escala de aldeia e bairro.
O
calcanhar de Aquiles do planejamento prévio em muitos países ricos foi se
apoiar exclusivamente nos profissionais da saúde, quando uma educação pública
universal acerca das ameaças de doenças e a organização de uma reserva de
voluntários capacitados são quase tão importantes para combater as tormentas
virais. Conforme a tragédia está nos obrigando a compreender, não vivemos em
uma pandemia, mas em uma era de pandemias.
As residências de idosos
se tornaram necrotérios nos dois lados do Atlântico e são a origem de 40 a 50%
das mortes de covid-19 em muitos países – Mike Davis
O
discurso dos governos é que desta pandemia “saímos todos juntos”, mas a
realidade é que o vírus, sim, entende de racismo e capitalismo. Como esta crise
afeta os trabalhadores precários, latinos e afro-americanos?
Os
diferentes países, é claro, diferem amplamente em relação ao acesso a uma
atenção médica, os indicadores da desigualdade de renda e os legados
estruturais da discriminação racial e étnica. Entre as nações de alta renda, os
Estados Unidos são a que tem a pior pontuação nas três categorias. Mas mesmo em
países com atenção médica universal e níveis de desigualdade muito menores, há
populações vulneráveis que ficaram desprotegidas e, muitas vezes, invisíveis na
crise atual.
As
residências de idosos se tornaram necrotérios nos dois lados do Atlântico e são
a origem de 40 a 50% das mortes de covid-19 em muitos países. Nos Estados
Unidos, onde o número de vítimas deste tipo já supera os 50.000, estima-se que
a metade são afro-americanos. Aqui é onde as vidas dos negros parecem importar
menos.
Se
os especialistas em saúde pública sabiam que estas instalações rapidamente se
tornariam focos de infecção, por que os governos nacionais e locais não criaram
imediatamente grupos de trabalho especiais para intervir? E por que as ONGs e
os partidos políticos progressistas não fizeram disto uma demanda incisiva? As
mesmas perguntas, é claro, deveríamos nos fazer sobre os cárceres, prisões e
campos de refugiados. A atitude fundamentalmente passiva das autoridades,
acredito, só pode ser caracterizada como descaso criminoso.
A
crise também permitiu visibilizar a importância dos “trabalhadores essenciais”
para o funcionamento da sociedade. E são os mais expostos ao contágio.
Aqueles
que agora nós reconhecemos como “trabalhadores essenciais” diante da pandemia
incluem desde pesquisadores científicos até zeladores e cuidadoras em
domicílios. Além de todas as categorias do setor da saúde, milhões de pessoas
que trabalham na agricultura e na indústria frigorífica, na venda e
distribuição de alimentos, em serviços públicos como o transporte, a vigilância
e a saúde, e na indústria logística (armazenamento e distribuição). Estes são
justamente os setores que têm as maiores porcentagens de trabalhadores pertencentes
a minorias com salários baixos, imigrantes recentes e empregados temporários.
Nos
Estados Unidos, quase a metade destes trabalhadores são negros, latinos e
asiáticos e, salvo que pertençam a um sindicato, é pouco provável que tenham um
seguro médico adequado (ou que tenham algum). Muitos passam longos períodos sem
receber tratamento por doenças que teriam sido atendidas de forma rotineira, se
tivessem seguro médico e, portanto, sofrem doenças crônicas como a asma e a
diabetes.
Seus
trabalhos estão entre os mais perigosos, tendem a trabalhar jornadas mais
longas e, no caso dos que possuem renda baixa, vivem nas piores condições de
moradia. Há seis meses, enfrentam o maior grau de exposição à ameaça do
coronavírus, geralmente sem equipamentos de proteção e sem o direito de
reclamar contra as precárias condições de trabalho.
Estes
trabalhadores foram completamente traídos pela Administração de Seguridade e
Saúde Ocupacional (OSHA) – uma agência do Departamento de Trabalho dos Estados
Unidos –, que se negou a implementar normas obrigatórias para proteger os
trabalhadores e atender milhares de queixas apresentadas de forma oficial. Por
isso, a indústria frigorífica no Meio-Oeste, onde a maioria dos trabalhadores
pertence a minorias ou são novos imigrantes, foi tão devastada pela covid-19. E
por isso os trabalhadores norte-americanos fizeram greve ou organizaram
protestos furiosos em mais de 500 ocasiões, a partir de abril.
Até
o fim do ano, a economia norte-americana se parecerá ainda mais com a sociedade
capitalista pura e dura descrita por Fritz Lang, em seu famoso filme Metrópolis
- Mike Davis
Neste
contexto, que papel desempenham empresas como a Amazon?
O
alvo de protestos com frequência foi a Amazon, a máxima especuladora com a
pandemia, e que violou notoriamente os direitos dos trabalhadores. O patrimônio
pessoal de Jeff Bezos aumentou em astronômicos 33 bilhões de dólares, entre
março e abril, enquanto a empresa se tornou uma via fundamental para a entrega
de alimentos e fornecimentos básicos para as famílias confinadas em seus lares.
Ao mesmo tempo, apressou-se a ocupar de forma permanente os espaços vazios
deixados pelo fechamento de tantos milhares de pequenos negócios varejistas
(uma estimativa comum na imprensa internacional especializada é que um quarto
das pequenas lojas afetadas na Europa e Estados Unidos nunca voltarão a abrir).
Os
democratas, com exceção de Elizabeth Warren, não abordaram os problemas que o
crescente monopólio da Amazon representa. Durante as duas guerras mundiais do
século passado, impuseram-se com êxito impostos aos “lucros extraordinários”
das principais empresas na indústria armamentista, mas os dirigentes democratas
se negam a considerar uma regulamentação similar para a Amazon ou para as
grandes empresas farmacêuticas. Até o fim do ano, a economia norte-americana se
parecerá ainda mais com a sociedade capitalista pura e dura descrita por Fritz
Lang, em seu famoso filme “Metrópolis”.
Em
seu livro “Planeta Favela”, analisa esse fenômeno das gigantescas metrópoles,
onde a superpopulação e a aglomeração são a normalidade. Pode haver direito à
saúde nestas condições da geografia urbana capitalista?
Desde
inícios do século XX, houve um debate essencial e recorrente sobre como
controlar as epidemias em nível mundial. A posição estadunidense, apoiada pelos
enormes recursos da Fundação Rockefeller, centrou-se em travar guerras contra
doenças específicas, com recursos massivos centrados no desenvolvimento e na
distribuição de vacinas. Estas cruzadas pelas vacinas tiveram grandes êxitos
(varíola e poliomielite) e também grandes fracassos (malária e HIV). Esse
enfoque baseado em intervenções técnicas específicas para cada doença salvou
vidas, mas deixa em seu lugar as condições sociais que promovem as doenças.
A
outra vertente no debate deu prioridade ao investimento em infraestruturas de
atenção primária à saúde nas regiões e países mais pobres. Inspira-se nas
ideias da “medicina social” propostas pelo grande patologista alemão Rudolf
Virchow, nos anos 1880, e amplamente adotadas no século XX por partidos da
esquerda, assim como por um amplo espectro de reformadores que desejavam
reorientar a medicina para a prevenção de doenças, junto com reformas sociais
radicais.
Atualmente, 1,5 bilhão de
pessoas vive em favelas na África, sul da Ásia e América Latina, que são
perfeitas incubadoras da doença - Mike Davis
Durante
grande parte do pós-guerra, a Organização Mundial da Saúde foi dominada pelos
Estados Unidos e o paradigma Rockefeller, mas os defensores da medicina social
obtiveram uma importante vitória em 1978, quando a OMS emitiu a “Declaração de
Alma-Ata”, na qual se afirmava que o acesso a serviços sanitários de qualidade
era um direito humano universal. Adotou-se um plano de campanha que destacava a
importância da participação da comunidade e de um enfoque na base para
conseguir “saúde para todos no ano 2000”. Contudo, a contrarrevolução
neoliberal que seguiu à eleição de Margaret Thatcher e Ronald Reagan tornou
esta declaração letra morta.
A
covid-19 está revelando até que ponto há duas humanidades imunologicamente
diferenciadas. Nas nações ricas, cerca de um quarto da população cai na
categoria de alto risco em razão da idade e os problemas de saúde crônicos,
muitas vezes, relacionados com a raça e a pobreza. Por outro lado, nos países
com renda baixa e em muitos países com renda média, de metade a três quartos da
população se encontra em situação de risco. O cofator mais importante é a
diminuição da imunidade devido à desnutrição, as infecções gastrointestinais
generalizadas e as doenças descontroladas e não tratadas como a malária e a
tuberculose.
Atualmente,
1,5 bilhão de pessoas vive em favelas na África, sul da Ásia e América Latina,
que são perfeitas incubadoras da doença. Sabemos que lá a pandemia está fora de
controle, mas em grande medida permanece invisível nas atuais estatísticas
fragmentadas. E se a Europa mostra certa disposição em compartilhar eventuais
estoques de vacinas com os países pobres, a administração Trump demonstrou,
recentemente, com a compra de todos os estoques mundiais do medicamento
Remdesivir, que não tem a intenção de compartilhar nada. América first
significa África em último lugar.
Nas
últimas campanhas, a corrente progressista do Partido Democrata, em grande
medida, ignorou estas questões da saúde e a pobreza em nível mundial. Também
desapontou as expectativas de seus simpatizantes. Esta semana, anunciou-se que
as negociações entre os setores de Biden e Sanders deram lugar a uma plataforma
democrata que está muito abaixo do “Seguro médico universal”, a demanda central
da campanha de Sanders, apesar de a pandemia e o colapso econômico demonstrarem
um milhão de vezes sua urgente necessidade.
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