Aldir
nos deixa com a beleza de seus botecos imundos, bordéis escuros, santos,
orixás, campos de várzea, batucadas e crimes inconclusos
“Azar
A
esperança equilibrista
Sabe
que o show de todo artista
Tem
que continuar”
Assim
que foi lançada, em 1979, a canção “O Bêbado e a Equilibrista” teve a sua letra
publicada em forma de anúncio no jornal O Pasquim e, pela primeira vez, foi
chamada de “o hino da anistia”. Era eu então um menino mal entrado na vida,
junto com a democracia brasileira.
Os
versos de Aldir, acompanhados da melodia de João Bosco, nos empurravam pra rua
de maneira vertiginosa. Eu, minha geração, os que vieram antes e os inúmeros que
chegaram depois, devemos todos à dupla a fome de viver, o significado da
esperança e do otimismo.
Maiores
e melhores do que ninguém, souberam traduzir na linha tênue de uma canção o
otimismo de então de todos nós brasileiros.
Aquele
poeta às avessas sabia das coisas. Traduzia de maneira refinada e como poucos a
vida sacana e malandra dos subúrbios cariocas, seus personagens, atitudes e
sobressaltos. Aldir povoou nossa vida com detalhes inesquecíveis que vão desde
o torturante “band aid no calcanhar” até as falsas louras com “sardas,
sobrancelha feita a lápis, e perfume da Coty”.
Todos
eles indicativos, muito mais do que qualquer pressentimento de deboche, de uma
imensa manifestação de afeto e compaixão pelo povo desvalido e suas mazelas.
Aldir falou por todos e com todos com erudição de psiquiatra e literato e faro
de boêmio e artista.
Suas
canções, sobretudo as com João Bosco, foram e serão para todo o sempre a trilha
sonora de um país e de uma gente em busca de um prumo, de uma sorte mínima, uma
tábua de salvação em um mar de ausências e fragilidades. Repletas de cenários
desbotados, botecos imundos, bordéis escuros, santos e orixás divididos, campos
de várzea, batucadas e crimes inconclusos, Aldir foi único em nos traduzir um
país em eterna formação e degradação permanente.
Foi
um poeta como poucos e um cronista ímpar. Perseguiu, alcançou e, de certa
maneira ultrapassou, a linhagem e a verve de Noel, Wilson Batista e Geraldo
Pereira. Seus malandros passaram pelo crivo da academia sem nunca ter perdido a
natureza de seus versos.
Quase
feito um cineasta, Aldir era capaz de produzir milagres em poucas palavras,
como em “Vida Noturna”, vestida por um lindo samba-canção de João Bosco:
“Acendo um cigarro molhado de chuva até os ossos, e alguém me pede fogo – é um
dos nossos”.
O
menino de então, capturado pela beleza e perplexidade do verso, se pergunta o
que pode acontecer depois disso. E Aldir responde: “Eu sigo na chuva de mão no
bolso e sorrio, eu estou de bem comigo e isto é difícil. Eu tenho no bolso uma
carta, uma estúpida esponja de pó-de-arroz, e um retrato meu e dela, que vale
muito mais do que nós dois”.
A
tamanha beleza e engenhosidade dos versos parece ter se esgotado, quando o
autor, de um fôlego só, ainda tem repertório pra mais e captura aquele moleque
para sempre pelo resto de suas vidas: “Eu disse ao garçom que quero que ela
morra, olho as luas gêmeas dos faróis, e assobio, somos todos sós, mas hoje eu
estou de bem comigo, e isso é difícil, ah, vida noturna, eu sou a borboleta
mais vadia, na doce flor da tua hipocrisia”.
A
partir disto, passei e passamos todo o resto das nossas vidas querendo ser o
Aldir ou, ao menos, algo que se aproxime da sua capacidade de traduzir a vida
que víamos, vemos e acreditamos ser verdadeira.
Aldir
nos deixa em um outono do século XXI, no auge de uma pandemia inédita, vítima
do coronavírus. Um bichinho devastador, completamente diferente de tudo o que
sempre lutou contra. Mas, ao mesmo tempo, estranhamente parecido.
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