É uma tarde tranquila de inverno, com reflexos do sol sob
as árvores. Caminho pela Cuesta de Moyano, detendo-me nas banquinhas de livros
de segunda mão que a esta hora estão abertas. São poucas e isso me entristece.
Um dia com tão boa temperatura, uma hora agradável, e não há quase ninguém
aqui. Paro para olhar os balcões, converso com os livreiros. Em todos, encontro
poucas esperanças de que isso tudo sobreviva. Uma veterana, experiente no
negócio, diz que “nos restam dois telediarios”,* e eu compartilho do
pessimismo. Acabarão colocando aqui, suponho, bares de tapas ou algum tipo de
artesanato de rua; e então, seguramente, o lugar estará cheio. No momento, a
falta de interesse do público, a indiferença dos políticos, os tempos que
passam, tudo isso sentencia a médio prazo esta joia da cultura madrilena; este
paraíso dos leitores onde, pelo preço de duas cervejas, é possível levar, se se
escolhe com cuidado, duas ou três boas edições de livros espetaculares. Aqui
não há desculpas no sentido de que um livro é caro. Enquanto existir lugares
como este, quem não lê não é porque não pode. É porque não quer.
Sou um velho caçador de livros, com todos os modos e
instintos para ser. De modo que, nesta tarde, como sempre, movo-me pelas bancas
com olhos atentos e dedos rápidos para encher minha bolsa, tão disposto quanto
no dia em que, há cinquenta anos, cheguei em Madrid e comecei, livro a livro, a
construir a trincheira em que vivo e sobrevivo: a biblioteca que cresceu pouco
a pouco, primeiro para reconstruir a dos meus avós e meu pai, e logo se
tornando mais pessoal e própria. A que me permitiu compreender o mundo complexo
e violento pelo qual caminhei desde muito jovem e que, agora, multiplicada em
centenas de estantes e milhares de livros, me permite digerir o quanto vivi. A
que, combinada com aquilo que recordo e imagino, me ajuda a contar histórias e
interpretar o mundo. Inclusive, a suportá-lo quando não me agrada. Essa
biblioteca que é lugar de trabalho, refúgio e, como disse muitas vezes,
analgésico: do tipo que não elimina as causas da dor, mas ajuda a suportá-la.
Nesta idade, como digo, é puro instinto. Necessidade
compulsiva, ainda que já tenha este ou aquele título em uma edição diferente.
Ler o velho papel que outros já leram, tocar as páginas tocadas por outras
mãos, encher a bolsa que eu costumo trazer quando venho aqui: Círculo de
Lectores, Editorial Molino, Colección Reno, Austral, etc. Já não sinto, claro,
a emoção dos primeiros anos; essa vibração quase física de encontrar um título
procurado ou descobrir outros que piscavam pra mim, prometendo fazer parte de
minha vida e até mesmo muda-la: El diablo enamorado, Cuadros de viaje, La
flecha de oro, Vidas paralelas, Sistema de la naturaleza, El buen soldado… Mas
o impulso, a necessidade de acumular livros como a pega que busca objetos
brilhantes pro seu ninho, isso não mudou. Sigo caçando, rápido, apaixonado,
cheio de alegria. Então, em casa, esvazio a bolsa para colocar cada um em seu
lugar com a companhia que lhe corresponda. Como esses quatro de Graham Greene
que acabo de comprar por dez euros, ainda que já os tenha em outras edições,
apenas porque o ex libris ali colocado faz pensar que sua proprietária — uma
mulher, talvez já morta —, fosse quem fosse, sorriria consolada se me visse
resgatá-los.
Às vezes, alguém que vê minha biblioteca pergunta se já li
todos esses livros. A resposta é sempre a mesma: alguns sim, outros não; mas
preciso que todos eles estejam aí. Uma biblioteca é memória, companhia e
projeto de futuro, ainda que esse projeto não chegue a se completar jamais. Uma
biblioteca mobilia, e define, uma vida. Estranho é não perceber o coração e a
cabeça de um ser humano depois de um olhar minucioso sobre os livros que tem em
casa, ou os que não tem. Por isso, não me lamento por aqueles que não lerei.
Cumprem sua função, inclusive ali, quietos, silenciosos, alinhados com seus
títulos em suas lombadas. Posso abri-los, folheá-los, percorrê-los devagar,
coloca-los na mochila para uma viagem. E ainda que eu jamais chegue a ler
muitos deles, terão cumprido sua missão. Sua nobre tarefa. Quando compreendi
que nunca leria todos os livros que gostaria de ler, e aceitei essa realidade
com resignada melancolia, mudou minha vida de leitor. Fez-se mais plena e
madura, do mesmo modo em que, na primeira guerra que eu conheci, reconhecer que
eu também poderia morrer mudou minha forma de ver o mundo. Os livros que eu
nunca lerei me definem e me enriquecem tanto como aqueles que eu li. Estão ali,
e eles sabem quem eu sei. Se sobreviverem ao tempo, ao fogo, à água, ao
desastre, à estupidez humana, um dia serão de outra pessoa. E graças a mim, que
tive o privilégio de resgatá-los de seus milhares de naufrágios, unindo-os à
minha vida.
..
Arturo Pérez-Reverte foi jornalista correspondente de
guerra e, em 1994, abandonou sua carreira para se dedicar exclusivamente à
literatura. É, desde 2003, membro da Real Academia Española.
Este ensaio, ‘Libros que nunca leeré’, foi originalmente
publicado em espanhol nas páginas da XLSemanal. Com toda sua gentileza, don
Arturo Pérez-Reverte autorizou a tradução e publicação de seu ensaio aqui em
nosso Estado da Arte. Tradução de Gilberto Morbach.

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